Quatro crises e um programa

Cada ponto do programa deve ser entendido como o impulso às lutas concretas dos diferentes segmentos que se chocam com o capital em uma de suas facetas, um impulso que aponte para o futuro contra as amarras aparentemente insuperáveis do presente.

Foto: Randy Laybourne (Unsplash)

Por Mauro Luis Iasi

“A teoria sem a prática de nada serve,
a prática sem teoria é cega.”
Lênin

Antes de refletir sobre a natureza do programa revolucionário para o Brasil, devemos relembrar alguns pressupostos.

Tanto a estratégia quanto a tática derivam de uma leitura da realidade. No entanto, tal leitura se dá em dimensões qualitativamente diferentes. Enquanto a estratégia pressupõe o conhecimento histórico da formação social em que atuamos, a tática é a necessária mediação da estratégia no tempo presente.

A estratégia deve se fundamentar no preciso estudo da formação social, seu desenvolvimento histórico, a natureza particular do desenvolvimento do modo de produção capitalista, no nosso caso de um capitalismo dependente e subordinado ao imperialismo, do Estado burguês e da luta de classes. Mas, e isso é fundamental, a estratégia não tem os olhos voltados para o passado, ela mira em um determinado ponto no devir. Não se trata do objetivo final, mas do caminho traçado de como chegar a este objetivo, portanto, a estratégia implica na objetividade da análise e nas intenções dos sujeitos históricos.

A tática, mais precisamente o conjunto das táticas, não pode operar em um ponto futuro, ela é a mediação da estratégia no terreno concreto da história, naquilo que chamamos de trama conjuntural, numa determinada correlação de forças, num certo momento da luta de classes.

Daí podem derivar dois erros fundamentais que acabam criando enormes problemas para nosso programa e nossa ação política. De um lado, traduzir mecanicamente uma estratégia para as ações táticas, o que leva ao discurso doutrinário e messiânico. De outro, ficar preso aos limites do presente e perder de vista a dimensão estratégica, o que leva à toda sorte de reformismos e, no limite, à conciliação de classes. No primeiro caso temos o esquerdismo, no segundo a acomodação aos limites da sociedade capitalista e a perda da perspectiva revolucionária.

A questão do programa se insere neste delicado dilema. Ele não pode ser a mera afirmação de nossos objetivos estratégicos, nem pode ser um conjunto de respostas pontuais para os diferentes problemas da classe trabalhadora diante de uma determinada conjuntura. O programa é a expressão concreta da estratégia mediado pelas táticas, isto é, ao mesmo tempo que dialoga com as necessidades reais da classe trabalhadora, o faz apontando para as determinações históricas das contradições vividas por nossa classe e para nossas intenções futuras.

De maneira sucinta e meramente introdutória, pensemos nosso país e seus dilemas no sentido que aqui apontamos. Enquanto militante comprometido com a estratégia de meu partido, penso que no Brasil confluem quatro crises particulares que em seu conjunto expressam as contradições principais a serem enfrentadas em nosso esforço coletivo de chegar ao programa da revolução brasileira.

A primeira crise é aquela que se encontra na base do modo de produção e reprodução da vida, em mudanças significativas no padrão de acumulação, nas relações de trabalho e contratualidade, na relação entre produção, circulação e consumo. Na base desta crise está a chamada reestruturação produtiva e uma nova morfologia da classe trabalhadora, mas suas encontramos suas determinações mais profundas na alteração qualitativa da composição orgânica do capital, investindo cada vez mais proporcionalmente em capital constante do que em capital variável (Mészáros, 2002; Antunes, 1999).

Esta crise se expressa não apenas no desemprego de forma mais visível, mas também nas condições contratuais, na intensificação brutal do trabalho e consequente adoecimento dos trabalhadores, como também na subjetividade da classe fragmentada e serializada, submetida à reificação e à alienação, na impossibilidade da reprodução da vida que não seja subordinada ao capital.

A segunda crise é aquela derivada do crescimento do capitalismo no campo e na formação de uma nova estrutura agrária. Aquilo que eufemisticamente se chama de “agronegócio”, nada mais é que o capitalismo no campo em sua fase monopolista, altamente concentrado, expropriador e predatório. A ele se soma a extração acelerada de matérias primas e recursos necessários ao ritmo da produção de mercadorias.

Quando vemos as duas crises em conjunto podemos constatar que elas resultam na intensificação das expropriações, nos termos que são apresentados por Boschetti, Fontes, Bering e outros (2018), produzindo uma intensificação extrema da formação de uma superpopulação relativa. A expropriação no campo tinha um significado no longevo modelo econômico brasileiro, o de formar o exército industrial de reserva, condição básica para a exploração pelos monopólios transnacionais. Nas condições atuais, do novo padrão de acumulação no campo e nas cidades, o que era um fator de desenvolvimento, torna-se um entrave.

Esta contradição vista em conjunto nos leva às duas outras crises: a ecológica e a urbana.

Tanto o padrão de acumulação urbano industrial, como o crescimento do monopólio capitalista no campo, implicam em um ritmo acelerado de mercadorias e a compressão do tempo de produção, circulação e consumo. O resultado imediato de tal fato é a rápida deterioração ambiental, uma vez que o sistema produtivo retira recursos da natureza em um ritmo muito maior do que esta é capaz de se recuperar, produzindo mudanças catastróficas nos biomas, no clima e na vida humana.

Da mesma forma, as expropriações, seja pela alteração da composição orgânica do capital, seja pela crescente expulsão dos trabalhadores do campo, em um contexto de subordinação real do trabalho ao capital, promovem uma hipertrofia do espaço urbano com todos os problemas que daí derivam. Se Lefebvre está certo, e creio que está, em chamar a cidade de “cidade do capital”, a cidade de hoje é a cidade da crise do capital plenamente desenvolvido. É no espaço urbano que as três primeiras crises encontram sua síntese e revelam seu caráter destruidor. A cidade é a expressão concreta da crise causada pelo monopólio capitalista na agricultura, da crise de superacumulação e superprodução do capital industrial e da crise ambiental, com agravantes na realidade urbana uma vez que a cidade da crise do capital afeta diretamente a reprodução da vida, a moradia, a saúde, o saneamento, a alimentação, o lazer, a cultura, as relações afetivas e todas as áreas.

A crise em seu conjunto, como crise do capital em seu máximo ponto de desenvolvimento, deve ser compreendida ainda pelo caráter cada vez mais parasitário do capital, da predominância do capital fictício e do capital portador de juros e daquilo que Mészáros (2002) denomina de “ativação dos seus limites últimos”.

Como podemos ver, as quatro crises estão interconectadas profundamente. Mas, ao que estão interconectadas? A crise da acumulação capitalista, a crise agrária, a crise ambiental e a crise urbana são a manifestação da crise do modo de produção capitalista e, por consequência, do capitalismo dependente e subordinado ao imperialismo. Mas, uma vez feita esta constatação, qual seria a conclusão necessária?

Vejamos o problema mais de perto. Caio Prado Jr. (1978) afirmava que um programa não pode ser meramente a expressão do desejo, ou da constatação de uma injustiça e, portanto, da busca moral.  Para o marxista brasileiro do PCB, o programa só pode derivar das contradições objetivas presentes em determinada formação social e, mais do que isto, “sua potencialidade em projeção para o futuro” (1978, p.20). Isto significa que cada elemento do programa é uma resposta a uma determinada contradição objetiva que real ou potencialmente encontra expressão na ação de sujeitos sociais, caso contrário é um mero desejo metafísico.

Desta forma, todos os problemas que se apresentam em nossa formação social, na conjuntura presente, seja a violência no campo, a fome, a violência nas cidades e suas formas mais perversas como o racismo, a homofobia e a violência contra a mulher, a crise nas políticas públicas, na saúde, na educação, o descaso total com a cultura,  a intensificação brutal do trabalho e a crescente perda de direitos, as mudanças climáticas e a degradação ambiental, o ultraje histórico contra os povos originários, a destruição da esperança dos jovens, o crescimento assustador do irracionalismo religioso e/ou fascista, tudo enfim, está articulado de uma maneira ou de outra às quatro crises aqui apontadas.

Voltando a Caio Prado Jr., uma estratégia revolucionária e seu programa, devem se fundamentar nas “questões pendentes e as soluções possíveis”, tendo como critério o fato que certas ações agem no sentido de reforçar a conservação do quadro em que estas questões estão presentes, ou, ao contrário, possam significar a “aceleração do processo histórico, sua marcha para frente”. Dito de outra forma, o programa é a maneira pela qual o objetivo estratégico de uma vanguarda pode converter-se em motor de luta concreta de toda uma classe.

Nesta direção, devemos começar por constatar que as crises descritas e suas determinações, assim como as diversas questões que delas derivam, são expressão do capitalismo plenamente desenvolvido nas condições da subordinação imperialista e dependente. Neste sentido, o que hoje se apresenta como especulações abstratas e metafísicas, nos termos de Caio Prado Jr., são as ações que visam o desenvolvimento do capitalismo como solução para as questões apresentadas. Desenvolver o capitalismo agravará a crise do trabalho, a crise agrária, a crise urbana e a crise ecológica.

Neste sentido é que definimos a estratégia e a natureza de nosso programa como socialistas, não apenas como uma meta aberta ao devir, mas por que se ele quiser responder às questões objetivamente colocadas tanto uma como o outro devem ser, necessariamente, anticapitalistas. Diante disto, as mediações táticas e a objetivação do programa se tornam, ou deveriam se tornar, o centro de nossa preocupação.

Um dos problemas, talvez o central, é que a conjuntura atual fez romper a conexão entre a constatação anticapitalista e a meta estratégica socialista, o que em outros momentos da história estava mais evidente. Isto se deve, em grande medida por causa das experiências em transição socialista e seus revezes, a ofensiva ideológica das classes dominantes e a desconstrução da classe trabalhadora diante de suas derrotas.

Isto posto, o plano tático deve ter por centro o árduo trabalho de reconstrução da classe como sujeito, entendida na sua pluralidade e diversidade. Uma vez que o capital se apresenta como força negativa universal, está dada a possibilidade da humanidade, tendo por núcleo os trabalhadores, unificar todos os segmentos que vivem a crise do capital nas mais diferentes formas particulares. Mas, para isso, é necessário que se apresentem respostas às questões objetivas colocadas pelas crises e é neste aspecto que o caráter anticapitalista deve se apresentar no corpo das demandas concretas daqueles que compõe nosso sujeito em construção.

Não podemos neste espaço listar exaustivamente cada uma destas questões, uma vez que estamos convictos que programas revolucionários não são feitos nas redes sociais. O caráter geral deve denotar nossa direção de desmercantilizar a vida em todas as esferas essenciais, indicando os pontos concretos nos quais o capital subordina a vida e as necessidades humanas ao processo de valorização e ameaça a existência da humanidade. Cada ponto do programa deve ser entendido como o impulso às lutas concretas dos diferentes segmentos que se chocam com o capital em uma de suas facetas, um impulso que aponte para o futuro contra as amarras aparentemente insuperáveis do presente.

Em uma entrevista recente, José Dirceu, afirmou que governar o Brasil já é revolucionário. Com a devida consideração que o personagem merece, devo apresentar minha discordância. Governar o Brasil é muito difícil e, sem dúvida, manter-se no governo exige muita habilidade, mas o caráter revolucionário ou não de um governo ou de qualquer ação política deve ser julgado pelo fato de reforçar o existente ou ser um impulso às lutas que são germes das transformações necessárias. O governo de conciliação de classes, seu programa e, fundamentalmente, sua estratégia, respondem às questões colocadas pelas crises indicadas com ações programáticas que tem por eixo central gerar as condições para que a acumulação capitalista possa seguir, gerando crescimento de arrecadação que uma vez descontados os recursos que mantêm esta acumulação possam, paulatinamente,  amenizar as manifestações mais agudas da miséria e atenuar, como se fosse possível, os efeitos deletérios do capitalismo sobre a sociedade e o meio ambiente.

No lado oposto do acomodacionismo conciliador, vemos num amplo leque da esquerda, dentro e fora do PT, a mera apresentação da meta socialista em contraste com a acomodação à ordem do capital, num esforço eticamente louvável e politicamente pouco eficaz. Para piorar, no momento em que são obrigadas a dar respostas táticas concretas, acabam escorregando para o desvio oposto limitando suas propostas e respostas aos limites do imediatamente possível. Por isso é que todo esquerdista tende a ser um reformista frustrado e sua crítica é mais uma autocrítica daquilo que, na prática, ele não consegue ir além.

Nosso desafio é compreender que as dimensões diferentes exigem tanto a firmeza estratégica quanto a flexibilidade tática, como defendia Lênin (tão citado e tão mal compreendido). Fica, então, aqui a metáfora que Sílvio Rodriguez nos apresenta em sua música Fábula de os três hermanos. Na canção, meu mestre cubano, nos conta que o primeiro irmão, mais velho, com medo de errar andava sempre olhando para o chão e as pedras do caminho, por isso ficou “escravo da cautela” e não pode ir longe com sua visão curta. O segundo irmão, tentando evitar o erro do mais velho, mirou longe no horizonte e, inevitavelmente, tropeçou nas pedras e buracos do caminho, ficando revoltado por não conseguir chegar onde via. O terceiro, o menor deles, tentou manter um olho no horizonte e o outro na caminhada, mas por tentar ver tudo acabou não sabendo o que via e ficou vesgo. E acabaram-se os irmãos. Silvio insiste durante toda a canção: “dime lo que piensas tu”?

Eu penso que sozinho… ninguém consegue.

Referências
ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a negação e a firmação do trabalho.  São Paulo: Boitempo, 1999.
BOSCHETTI, I. (org.) Expropriação e direitos no capitalismo. São Paulo: Cortez, 2018.
DEO, A. DEL ROIO, M.,  MAZZEO, A. C. (orgs) Lênin, teoria e prática revolucionária. Marília (SP): Oficina Universitária, Unesp, 2015.
LENIN, V. I. O que fazer? Problemas candentes de nosso tempo. São Paulo: Boitempo, 2020.
LENIN, V. I. Esquerdismo, doença infantil do comunismo. São Paulo: Expressão Popular, 2014.
MÉSZÁROS, I. Para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2002.
PRADO JR, C. A revolução brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1978.
RODRIGUEZ, S. Fábula de los tres hermanos. In: Rabo de nube, Habana/Cuba, 1980.


Confira o Café Bolchevique, coluna mensal de Mauro Iasi na TV Boitempo:


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Mauro Iasi professor aposentado da Escola de Serviço Social da UFRJ, professor convidado do programa de pós-graduação em Serviço Social da PUC de São Paulo, educador popular e militante do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente. Na TV Boitempo, apresenta o Café Bolchevique, um encontro mensal para discutir conceitos-chave da tradição marxista a partir de reflexões sobre a conjuntura.

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