Viva Lélia Gonzalez!
Leci Brandão escreve sobre o legado de Lélia Gonzalez e a publicação de "Festas populares no Brasil".
Mãe Filhinha e Isaltina, da Irmandade da Boa Morte, Cachoeira-BA (1972).
Foto de Maureen Bisilliat / acervo Instituto Moreira Salles / Festas populares no Brasil (Boitempo, 2024)
Por Leci Brandão
Em 2019, Angela Davis esteve no Brasil a convite da Boitempo e, diante de um grande público, no qual eu me incluía, questionou por que precisávamos buscar uma referência nos Estados Unidos. “Eu aprendo mais com Lélia Gonzalez do que vocês jamais aprenderão comigo”, disse ela. Esse episódio me veio à memória assim que recebi o convite para escrever algumas palavras sobre a importância da publicação deste Festas populares no Brasil e de sua autora.
Tive a honra de conhecer Lélia quando ela era professora na Universidade Gama Filho, no Rio de Janeiro. Eu iniciava minha carreira musical e ainda me dividia entre o trabalho no departamento pessoal da universidade e os palcos de festivais. Ela, sempre generosa, me incentivava a seguir na música. Segui acompanhando sua trajetória política e acadêmica, com especial interesse em seus posicionamentos diante de temas que me são caros desde sempre: as religiões de matriz africana, as escolas de samba e o protagonismo das mulheres negras. Aliás, ela não apenas falou sobre as mudanças nas escolas de samba, como ajudou a fundar uma: o Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo (G.R.A.N.E.S. Quilombo).
Lélia era assim. Lélia estudou, interpretou e refletiu sobre o Brasil em diversos aspectos. Abordou temas complexos sem perder a simplicidade. Lélia falava para ser compreendida, e isso diz muito sobre seu propósito ao atuar na academia, no movimento negro e em todos os lugares por onde andou. Lélia se tornou referência porque seu pensamento era absolutamente singular e ecoava em cada um e cada uma de nós, negros e negras, que vivíamos e ainda vivemos, no dia a dia, o que ela foi capaz de conceituar.
Não podemos deixar de mencionar, contudo, como uma historiadora, filósofa, antropóloga, pesquisadora e intelectual da grandeza de Lélia ainda não tem o reconhecimento à altura de seu brilhantismo. São vários os fatores que poderiam explicar essa tentativa de apagamento, mas o principal deles talvez seja o fato de ela ter ousado falar sobre nosso povo pelo lado de dentro, como protagonista, não como objeto de estudo. Ela também ousou apontar a importância fundamental das mulheres negras para a criação e a manutenção dos terreiros de candomblé, de umbanda, e das escolas
de samba como territórios de resistência. As falas de Lélia destoavam de todos os discursos que se faziam até então na academia. E destoavam porque eram absolutamente verdadeiras; porque Lélia não distinguia academia, militância, cultura e política. Ela concebia a luta e a construção de uma sociedade sem racismo em todas as dimensões. Enquanto a maioria dos intelectuais da época ainda explicava a sociedade brasileira pelo mito da democracia racial, Lélia escancarava que vivíamos em uma sociedade extremamente desigual e que essa desigualdade se assentava no racismo. Foi ela a primeira a nos dizer que a luta da mulher negra era diferente da luta de mulheres brancas.
Lélia era ímpar e sempre teve uma postura comprometida com o que defendia. Felizmente sua obra hoje está começando a receber o devido reconhecimento. E, como ela mesma certa vez escreveu sobre
a mulher negra, “taí, mais firme que nunca, trabalhando como sempre, segurando as pontas de sua família como sempre e, como sempre, muito cheia de axé”. Viva Lélia Gonzalez!
Após mais de três décadas de sua produção original, o livro Festas populares no Brasil, de Lélia Gonzalez, chega às livrarias de todo o país pela editora Boitempo. Trata-se do único livro que a pensadora, acadêmica e militante do movimento negro brasileiro, publicou em vida exclusivamente como autora. Escrita em 1987, a obra apresenta registros fotográficos de festas populares do Brasil de norte a sul com textos informativos que apresentam as marcas da herança africana na cultura brasileira, a integração entre o profano e o sagrado e a reinvenção das tradições religiosas na formação do imaginário cultural brasileiro.
Premiada internacionalmente na época de sua publicação, a obra continua pouco citada e pouco conhecida no Brasil, inclusive por nunca ter ido ao mercado livreiro. Como argumenta Raquel Barreto, no prefácio à nova edição da obra, esse esquecimento não é fortuito, mas sim um capítulo do violento apagamento da sua produção intelectual. Como forma de se contrapor a esse processo, a nova edição da Boitempo, em formato capa dura e brochura, apresenta o texto integral de Lélia e novas imagens, textos e documentos. São mais de cem imagens dos fotógrafos Walter Firmo, Januário Garcia, Maureen Bisilliat e Marcel Gautherot, entre outros, com posfácio de Leda Maria Martins, prefácio de Raquel Barreto, prólogo de Leci Brandão, texto de orelha de Sueli Carneiro, quarta capa de Angela Davis, Leci Brandão e Zezé Motta, e projeto gráfico de Casa Rex. A publicação de Festas populares no Brasil tem apoio do Instituto Memorial Lélia Gonzalez, do Instituto Ibirapitanga e do Instituto Moreira Salles (IMS).
E, para celebrar o lançamento do livro e o legado intelectual de Lélia, a Boitempo e o Sesc promovem a exposição Lélia em nós: festas populares e amefricanidade, mostra com artistas consagrados e contemporâneos com curadoria de Glaucea Britto e Raquel Barreto, no Sesc Vila Mariana de 27 de junho a 24 de novembro.
Com cinco eixos temáticos, a mostra reúne pinturas, fotografias e instalações de Walter Firmo, Adenor Gondim, Heitor dos Prazeres, Nelson Sargento, Raquel Trindade, Maria Auxiliadora e Alberto Pitta, e apresenta 12 trabalhos inéditos de artistas contemporâneos como Coletivo Lentes Malungas, Eneida Sanches, Lidia Lisboa, Lita Cerqueira, Manuela Navas, Maurício Pazz, Rafael Galante e Rainha Favelada.
Deixe um comentário