Diário de Paris (II)

Na praça da República, em Paris, algumas dezenas de milhares de pessoas se manifestaram em apoio à nova Frente Popular e, sobretudo, contra a extrema-direita. No palco, estavam os principais representantes dos partidos que compõem a aliança. No discurso de quase todos, a mesma constatação: ainda que a tarefa seja difícil, ainda estamos em tempo de cortar o pavio antes que ele chegue à dinamite.

Foto: Florian Pépellin (Wikimedia Commons)

Por Fabio Querido

24 de junho

Em entrevista coletiva, Jordan Barbella explicitou as principais linhas do programa do RN, sem especificar os custos e, sobretudo, de onde sairá o dinheiro. Ao lado das renúncias no plano econômico, cujas medidas foram condicionadas aos resultados de uma “auditoria completa” das contas públicas, Bardella reafirmou a dimensão xenófoba e racista do seu programa de governo. Sob a cobertura da noção de “prioridade nacional”, promessas clássicas do RN foram mais uma vez colocadas na mesa: a imposição de limites drásticos à imigração, o fim da Ajuda Médica de Estado (a AME, voltada aos estrangeiros em situação ilegal), a proibição de que “franceses de origem estrangeira” – portadores de dupla nacionalidade – acedam a certos cargos do serviço público, a preferência aos franceses de souche no acesso aos programas sociais etc.

Simultaneamente, o candidato a Primeiro-Ministro reforçou a intenção de abolir, ou, ao menos, de relativizar, o “direito de solo” – em função do qual os filhos de estrangeiros nascidos na França têm direito à nacionalização a partir dos 18 anos de idade –, em benefício do “direito de sangue”. Daí o foco nas “origens” das pessoas, na esteira das quais se estabelecem os “verdadeiros” franceses, em oposição aos “franceses de papel”, segundo os termos de Jean-Pierre Tanguy, deputado e candidato à reeleição pelo RN.

O pano de fundo não declarado aqui é a teoria da “grande substituição”, formulada pelo polemista de extrema-direita Renaud Camus (1946-), segundo a qual a população de etnia francesa – e, mais geralmente, europeia – estaria sendo suplantada demográfica e culturalmente por povos não europeus, cuja taxa de natalidade é superior.

Nessa chave, os problemas fundamentais da França, em especial o da segurança pública, podem ser atribuídos a um corpo “externo” à nação, aos que se insubordinam à identidade nacional “petrifricada” desde as suas origens imaginadas. Uma tal concepção de “preferência nacional” só foi instaurada na história da República francesa em uma ocasião: no regime colaboracionista de Vichy, liderado pelo Marechal Pétain, entre 1940 e 1944. Não é preciso dizer muito mais…

25 de junho

É bastante sintomático do debate francês o modo como a questão do antissemitismo se tornou uma das clivagens fundamentais da vida política. Historicamente ligada à esquerda, desde o affaire Dreyfus, na virada para o século XX, a crítica ao antissemitismo vem sendo sequestrada pela direita e pela extrema-direita, numa mutação que diz mais sobre o estado da política no presente do que sobre qualquer essencialização étnica e/ou religiosa vinculada ao passado.

Para a direita e a extrema-direita contemporâneas, o judaísmo é projetado como particularidade que, ao longo do tempo, soube se assimilar aos valores “universalistas” da República: os judeus tornaram-se cidadãos como quaisquer outros. Que esse processo coincida, em geral, com a instauração do Estado de Israel, não é um mero detalhe. São os novos pretensos resistentes antissemitas que se apressam em identificar judaísmo e sionismo, acusando toda crítica ao segundo de preconceito contra o primeiro. No fundo, é como se criticar Israel equivalesse a colocar em questão uma certa ideia do que é, ou deveria ser, a própria nação francesa.

Está armado, assim, um cenário em que o “comunitarismo” antinacional e antirrepublicano, outrora atribuído aos judeus, se torna atributo dos árabes e muçulmanos. Ao defender a causa palestina, a esquerda francesa não estaria senão explicitando o seu pendor antinacional, torpedeando o universalismo francês por meio da importação das premissas de um antirracismo fora do lugar no país.

26 de junho

Faltam 4 dias para o primeiro turno de uma das eleições mais importantes (se não a mais importante) da V República francesa, fundada em 1958 sob os ditames do General De Gaulle. No modo desespero, e cada vez mais isolado, Macron chegou mesmo a vaticinar que uma eventual vitória seja do RN ou da nova Frente Popular levaria o país a uma “guerra civil”.

Em entrevista à BFMTV, o conhecido – nem sempre pelas melhores razões – filósofo Alain Finkielkraut afirmou que, “pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial a questão judaica está no coração da vida política francesa”. Mas o problema não está no RN, a despeito de seu DNA antissemita. Para Finkielkraut, a causa do mal-estar se encontra na “extrema-esquerda”, cuja vitória precisa ser evitada a todo custo, inclusive votando, se necessário, no RN contra a nova Frente Popular.

27 de junho

Em ato político da “esquerda da esquerda” em Lilas, nos arredores de Paris, uma constatação foi unânime: embora importante, a mobilização popular ainda não está à altura dos desafios que virão pela frente, independentemente do resultado das eleições. Olivier Besancenot, porta-voz do NPA, fustigou o bate-cabeça público dos líderes da nova Frente Popular em torno do eventual futuro primeiro-ministro. “Eles fazem cálculos políticos e propagam suas ambições pessoais como se não estivéssemos em uma situação excepcional, inédita”.

Sobre as questões de fundo, uma indagação decisiva atravessou os debates: como compreender a adesão das classes populares à extrema-direita, considerando tanto a cólera social legítima quanto as posições racistas e/ou xenófobas que a acompanham? Ou seja: como oferecer uma alternativa igualitária e solidária à expressão de um descontentamento que, embora estruturalmente compreensível, erra o alvo, atribuindo a certas camadas sociais o que decorre do próprio capitalismo neoliberal?

Para um problema sistêmico, a resposta precisa ser sistêmica. A simples propagação dos valores da República não é mais suficiente para barrar a extrema-direita. O desafio é o de restituir as mediações políticas, sociais e culturais entre o diagnóstico estrutural e a dinâmica conjuntural/concreta. A esperança da esquerda anticapitalista é de que uma eventual vitória da nova Frente Popular engendre uma nova dinâmica política, capaz de colocar a conjuntura diante das exigências da estrutura.

28 de junho

Pela primeira vez, as estimativas eleitorais indicam uma possibilidade expressiva de que o RN consiga a maioria absoluta de deputados após o segundo turno. Tal cenário forçaria Emannuel Macron a aceitar a nomeação de Jordan Barbella ao posto de primeiro-ministro.

Nas coabitações anteriores, mesmo sem a direção do governo, o presidente da República se manteve no controle das questões de defesa e de relações estrangeiras. Desta vez, porém, uma eventual situação como essa seria imprevisível, e não estariam descartados conflitos institucionais. Aproveitando-se da indefinição da Constituição a respeito das coabitações, Marine Le Pen afirmou em entrevista que a condição de chefe das Forças Armadas, reservada ao presidente, seria apenas um “título honorífico”, uma vez que o controle dos rumos do governo, inclusive no que se refere à defesa e/ou à segurança nacional, ficaria de fato e de direito nas mãos do primeiro-ministro.

Com isso, Le Pen e o RN buscam forçar uma situação semelhante a um parlamentarismo puro sangue, no qual ao chefe do Estado é reservado um papel meramente decorativo. E, caso isso não ocorra, os culpados do bloqueio já estariam precificados: Emannuel Macron e, caso seja chamado a arbitrar, a Corte constitucional. Será o início do fim da V República, essa mistura única de presidencialismo e parlamentarismo que sempre funcionou em torno das maiorias absolutas dos blocos de centro-esquerda ou da direita tradicionais? Macron queria dinamitar a clivagem esquerda/direita pelo centro. O RN tentará fazê-lo pela extrema-direita.

29 de junho

A um dia do primeiro turno, o maior jornal francês, Le Monde, apela em editorial a faire barrage ao RN. O cotidiano repudia a “equivalência falaciosa entre a NFP [nova Frente Popular] e o RN estabelecida pelo estado-maior do campo Macron”. Para Le Monde, na hipótese de um segundo turno entre 3 candidatos, o aspirante do “arco republicano” em pior posição – quer seja da NFP ou da ala macronista imune à denúncia cínica dos dois “extremos” – deveria desistir em favor daquele mais bem classificado.

Assinado pelo diretor do jornal, Jérome Fenoglio, o editorial não economiza nas palavras para acentuar a gravidade do momento: “Em todos [os] domínios, como em suas relações com as potências estrangeiras, com a Europa, [ou] como em sua visão da evolução dos costumes, o RN se inscreve em uma história que segue um curso oposto àquele que tem conduzido a França desde a revolução. Ceder-lhe uma parcela de poder é nada menos do que assumir o risco da destruição, pouco a pouco, de tudo o que foi construído, conquistado, em mais de dois séculos e meio”.

30 de junho

Divulgados os resultados do primeiro turno das eleições, a sensação é ambivalente. Ela é amarga porque, como aventavam as pesquisas, o RN e seus aliados do grupo LR de Eric Ciotti recolheram cerca de 33% dos votos, algo nunca visto em eleições nacionais francesas. Embora um pouco abaixo das previsões, o fato é inescapável: a extrema-direita chegou na dianteira numa eleição que definirá o futuro da França. No entanto, talvez em função das previsões não muito animadoras das últimas semanas, o desgosto não anula por completo o sentimento de que o pior ainda pode ser evitado. A nova Frente Popular ficou com nada desprezíveis 28,1% dos votos, acima dos 25,7% conquistados pela NUPES nas legislativas de 2022. Enquanto isso, o bloco presidencial angariou cerca de 20% dos sufrágios, e LR e seus aliados, 10%.

No geral, a expressiva taxa de participação, de 67%, a mais alta em eleições legislativas desde 1997, não alterou, portanto, o cenário que começou a se aventar a partir da dissolução da Assembleia Nacional por Emmanuel Macron no dia 9 de junho. Numa eleição como essa, porém, mais importante do que o total de votos é a quantidade de vitórias em cada um dos 577 distritos. Dentre os 76 deputados eleitos já no primeiro turno, 39 são do RN/Ciotti, 32 da nova Frente Popular (dos quais 20 de LFI) e 2 do bloco presidencial. Dos 1122 que se qualificaram para o segundo turno, 398 são do RN/Ciotti, 341 da nova Frente Popular, 260 do Juntos pela República e 57 de LR.

Nada está definido, como se vê. Tanto mais porque, em mais de 300 casos, o segundo turno será “triangular”, ou seja, entre três concorrentes. Em 4 deles, 4 candidatos disputarão o voto dos eleitores. E é aqui que as peças começaram a se mover tão logo foram divulgadas as primeiras estimativas. O ponto é a disposição, ou não, dos partidos e/ou coalizões em retirar da disputa do segundo turno os terceiros (ou quartos) colocados em benefício de outro mais bem posicionado, a fim de evitar o que é visto como mal maior.

E nesse quesito, o movimento mais importante – sem que se saiba o seu impacto eleitoral efetivo – foi dado pelo bloco presidencial. À diferença da equalização dos dois “extremos” propalada na campanha eleitoral, tanto o primeiro-ministro Gabriel Attal quanto Emmanuel Macron garantiram que os candidatos da coalizão Juntos pela República que se classificaram para o segundo turno em terceiro lugar vão se retirar da disputa em favor dos candidatos com maior possibilidade de bater o RN. A orientação valerá até mesmo para membros da LFI, mas, nesse caso, a possibilidade será avaliada caso por caso. O critério? O respeito aos “valores da República”, petição de princípio de geometria bem variável.

Os partidos da nova Frente Popular, quanto a eles, já haviam feito o mesmo movimento ainda antes do primeiro turno, à exceção de LFI, que o fez hoje, sem qualquer ambiguidade e apesar da rejeição visceral ao “macronismo”. “O que está em jogo é a França. É a República. É a nossa ideia de vida em comum”, afirmou Jean-Luc Mélenchon em pronunciamento após a divulgação das estimativas.

Os tenores de LR (formalmente, ainda sob controle de Eric Ciotti) que se recusaram a se aventurar na aliança com o RN divulgaram, em nota, que o partido não dará consigna de voto para o segundo turno nas disputas das quais não participará. A nota mal esconde, entretanto, qual é o inimigo maior. Embora o texto fustigue o “programa demagógico do RN”, que levará “ao empobrecimento do nosso país”, os adjetivos mais impactantes são reservados à nova Frente Popular, essa “extrema-esquerda dominada por La France Insoumise que almeja demolir nossas instituições, desconstruir nossa civilização, e que representa um perigo absoluto para o nosso país”. Nada menos que isso.

Na praça da República, em Paris, algumas dezenas de milhares de pessoas se manifestaram em apoio à nova Frente Popular e, sobretudo, contra a extrema-direita. No palco, estavam os principais representantes dos partidos que compõem a aliança. No discurso de quase todos, a mesma constatação: ainda que a tarefa seja difícil, ainda estamos em tempo de cortar o pavio antes que ele chegue à dinamite. Ao final do ato, centenas (ou alguns milhares) de jovens do movimento antifascista dirigiram-se ao bairro de Belleville, reduto da esquerda social e popular parisiense. No caminho, inúmeros confrontos com a política. A resistência está nas ruas, diziam eles.


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Fabio Querido é professor livre-docente de sociologia da Unicamp. Autor de, entre outros títulos, Michael Löwy: marxismo e crítica da modernidade (Boitempo, 2016; Herramienta, 2019), Daniel Bensaïd – intelectual em combate (Fino Traço, 2022) e Lugar periférico, ideias modernas: aos intelectuais paulistas as batatas (Boitempo, 2024, no prelo). Atualmente, atua como professor e pesquisador visitante na Universidade Paris-Cité.

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