Assange: a história oculta
Como um Prometeu contemporâneo, ele revelou os segredos do grande poder político e econômico. Resposta do sistema: lançá-lo aos infernos e converter a internet em vigilância, egos e banalidade. Sua trajetória precisa inspirar um resgate.
Por Antonio Martins
I.
O Prometeu mitológico roubou dos deuses o fogo do conhecimento e o entregou aos homens. Como castigo, foi acorrentado a uma rocha, com suas entranhas devoradas, eternidade afora, por uma águia; para regenerarem no dia seguinte e serem novamente destroçadas. Julian Assange, o fundador do Wikileaks, já não mofa na prisão de segurança máxima de Belmarsh, a “Guantánamo britânica”. Está próximo de um acordo que pode deixá-lo em liberdade. Mas os deuses malditos do século XXI alcançaram, por enquanto, uma vitória superior. Ninguém ousou tanto quanto Assange no esforço para fazer da internet uma ferramenta de democracia participativa e radical. Uma década e meia após o início de seu calvário, a grande rede está convertida, no Ocidente, no oposto do que ele e seus pares desejaram. Controle permanente sobre as populações. Captura da riqueza e da criatividade sociais por um punhado de transnacionais. Ferramenta para a disseminação de fake news e a devastação do espaço público e da política. Compreender como tudo se deu – e como os fatos essenciais têm sido ocultados, nas últimas horas – é chave para pensar uma reviravolta.
II.
Muito antes de ser forçado ao exílio na exígua embaixada do Equador em Londres (em 2012) e encarcerado em Belmarsch (em 2019), Julian Assange havia se tornado uma personalidade internacional. Divulgados pelo Wikileaks, os documentos secretos sobre a guerra no Afeganistão, o emblemático vídeo em que soldados norte-americanos no Iraque zombam dos civis que matarão segundos depois e os despachos constrangedores de diplomatas dos EUA, expondo como esperam que seus pares de outros países sejam subalternos, circulavam o mundo. Mas quem projetou Assange foram seus inimigos. Em 2006, quando surgiu, o Wikileaks tinha por projeto o anonimato.
O mundo e a internet eram distintos. Desde a virada do século, as ruas assistiam a uma onda de mobilizações contra as instituições neoliberais. Ela começara em Seattle (em 1999) e chegara ao ápice no início de 2003, quando 36 milhões protestaram contra a invasão do Iraque pelos EUA. Os Fóruns Sociais Mundiais esboçavam alternativas. A internet era marcada por cooperação, decentralização, diversidade e desafio aos poderes estabelecidos. Anos antes, o estouro da “bolha ponto com” havia imposto prejuízos multimilionários aos capitalistas que tentavam colonizá-la. O ressurgimento apoiava-se em outra lógica. A explosão dos blogs – milhões deles, em todo o mundo – rompia o paradigma da “comunicação de massas” e desafiava o controle de décadas exercido pelas mídias de mercado sobre a narração e interpretação dos fatos. Um dissidente digital, Aaron Swartz, ajudara a criar uma nova ferramenta tecnológica – o RSS – para integrar a nascente comunicação compartilhada e propunha a quebra da propriedade intelectual, para propiciar a livre circulação de conhecimentos e ideias
A Wikipedia – hoje a principal herança daquele período de intensa criação – nascera poucos anos antes, em 2001. O Facebook restringia-se a poucos campi universitários norte-americanos. O Youtube recém nascera, e não fora abocanhado pelo Google. Não havia Twitter. A grande crise capitalista do século só eclodiria três anos mais tarde e o sistema não investira ainda, com a virulência atual, contra os direitos sociais e as bases da democracia. Por isso, os partidos de ultradireita que hoje povoam a cena política na Europa e Américas ou inexistiam, ou eram grupúsculos sem expressão.
Foi a esse ambiente que Assange, um australiano de 35 anos que estudara Física e Matemática antes de se envolver com as cenas hacker e cypherpunk, desejou dar um aporte. O Wikileaks foi concebido como um espaço colaborativo para a denúncia das misérias do poder. Sua face externa era um site onde se publicavam informações raramente presentes nas mídias convencionais. Mas em seu âmago havia um conjunto de ferramentas que asseguravam anonimato a quem se dispusesse a expor fatos sensíveis. Em sua lógica estava a noção de que, em sociedades complexas, as ações antissociais dos poderosos são executadas em sigilo – mas geram, em seus preparativos, informação que, se compartilhada, pode evitar o dano.
O Wikileaks dispunha-se a receber, curar, editar e difundir esta informação. A tarefa implicava alguma complexidade. Para evitar a divulgação de falsas informações, grupos temáticos que se comunicavam à distância por meio de fóruns, filtravam as denúncias recebidas. Uma equipe de meia dúzia de editores, chefiada por Assange, tomava as decisões finais e dava forma definitiva ao que seria publicado. Este grupo também estabelecia contatos e acordos com mídias de grande circulação que poderiam ampliar a repercussão do material.
Em muito pouco tempo, a nova ferramenta mostrou que tinha algum papel a cumprir. Entre 2006 e 2010, o Wikileaks publicou informação relevante sobre temas como os embustes da Igreja da Cientologia, as relações pessoais e políticas esdrúxulas de Sarah Palin, candidata de ultradireita (em 2008) à vice-presidência dos EUA, a tentativa de ocultar os vazamentos de minerais tóxicos nas lavras mantidas pela transnacional suíço-britânica Transfigura, na Costa do Marfim, ou os procedimentos brutais adotados contra os prisioneiros de Guantánamo. Mas tudo passou a um patamar muito distinto a partir de 2010, quando a popularidade do site levou-o a receber e publicar material altamente comprometedor acerca das guerras que Washington promovia. Deve-se a um soldado norte-americano revoltado e deprimido com a obrigação de participar da guerra – Bradley Manning, que depois transitaria de gênero e passaria a se chamar Chelsea – grande parte das revelações.
Um primeiro vazamento, em abril, tornou público o vídeo (Assassinatos Colaterais) da execução gratuita, por soldados norte-americanos a bordo de um helicóptero, de 12 pessoas em Bagdá (inclusive dois repórteres da Reuters). Um segundo lote revelou, em julho, que centenas de civis afegãos haviam sido mortos, entre 2004 e 2009, em operações de guerra jamais reveladas à opinião pública. Em muitos casos, motociclistas desarmados foram alvejados sumariamente, porque soldados norte-americanos julgaram tratar-se de homens-bomba. Havia uma unidade militar encarregada de capturar ou assassinar supostos líderes do Talibã, sem julgamento. Crescia a cada dia o uso de aviões não-pilotados (teleguiados a partir a partir de uma base em Nevada) para matar militantes talibãs. Porém, os Estados Unidos estavam cada vez mais próximos de perder a guerra.
No período seguinte, a ação demolidora do Wikileaks contra os malfeitos grande poderes do mundo pareceria fulminante e avassaladora. Uma parte relevante do noticiário internacional era ocupada por ela. Em agosto de 2010, o Departamento de Estado dos EUA sobressaltava-se com os efeitos demolidores, para as relações geopolíticas do país, da arrogância revelada nas mensagens de diplomatas e outros agentes. Em janeiro de 2011, Assange encontrava-se com Rudolf Elmer, ex-diretor de banco suíço, e recebia os dados que abririam caminho para séries de revelações sobre a fortuna escondida por governantes, banqueiros, executivos e empresários em paraísos fiscais. A partir de 2012 veio à luz que as agências de espionagem dos EUA utilizavam-se dos próprios computadores, celulares e aparelhos de TV dos cidadãos para vigiá-los. E o Wikileaks foi adiante, revelando casos sobre países específicos. No Brasil, por exemplo, agências norte-americanas haviam invadido sistematicamente as comunicações da presidenta Dilma Roussef, além de espionar os três principais responsáveis pela política externa dos governos Lula 1 e 2 e tentar sabotá-los. Na Alemanha, a primeira ministra Angela Merkel fora a vítima; na ONU, o secretário-geral, Ban Ki-Mon. Na virada entre as décadas 2010 e 20, uma nova tecnologia, a internet, parecia tirar o sono dos poderosos
III.
A reação veio em duas formas: ação brutal contra Assange e o Wikileaks; e, ainda mais importante, um enorme impulso dos Estados capitalistas centrais a uma regressão oligopolística que mudou a face da grande rede.
O homem que revelou os segredos da grande superpotência global foi progressivamente calado. A partir de dezembro de 2010, uma acusação falsa de estupro (1 2), mais tarde desmascarada como farsa, forçou-o a deixar a Suécia, onde vivia, e refugiar-se na Inglaterra. Mas Londres passou a persegui-lo também, forçando-o, em junho de 2012 a buscar refúgio na embaixada do Equador, onde os presidentes Evo Morales e Rafael Correa o abrigaram. Condições em certo sentido piores que as de uma prisão começaram a abalar a saúde física e mental de Assange. Por mais de 7 anos, ele permaneceu confinado num conjunto de salas de cerca de 100m², onde improvisava quarto e banheiro e compartilhava o espaço com todo o serviço político e diplomático do embaixador e demais funcionários. Mesmo nestas condições ásperas continuou a editar o Wikileaks, embora de forma limitada. As denúncias sobre as ações contra Dilma, Angela Merkel e a interceptação constante da internet pela CIA, por meio de múltiplos canais, são todas deste período
Só a morte ou o calabouço pareciam capazes de calar Assange por completo. Em 2017, a CIA, sob direção de Mike Pompeo, considerou assassiná-lo, mas recuou antes de executar o projeto. Em 2019, um novo presidente do Equador, Lenin Moreno, cedeu a pressões políticas e favores pessoais de Washington e cancelou a concessão de asilo. Em 11 de abril daquele ano, a polícia de Londres entrou na embaixada, arrancou o criador do Wikileaks à força e o conduziu a Belmarsh, de onde ele saiu apenas na última segunda-feira (24/6), cinco anos e dois meses depois. Lá, inúmeros depoimentos – inclusive o de Nils Melzer, relator especial da ONU – consideraram as condições que lhe foram impostas equivalentes à de tortura.
* * *
Não foi apenas o Wikileaks que refluiu, desde a efervescência de 2010. Uma enchente de dinheiro e poder afogou a rebeldia da internet. Ela tornou-se mais popular do que nunca: no Brasil, por exemplo, 84% da população tinha acesso à rede ao final de 2023. Mas ficaram para trás, ao menos por enquanto, os sonhos de uma rede baseada na colaboração, no compartilhamento, na troca de conhecimentos, informação, cultura e ideias. A captura de dados, a vigilância e a quebra da intimidade são cada vez mais onipresentes. Uma parcela majoritária dos usuários crê que internet é sinônimo das redes sociais que utiliza. Quatro grandes corporações – Alphabet (Google, Gmail, Youtube e dezenas de serviços menores), Meta (Facebook, Instagram e Whatsapp), Microsoft e Amazon – distribuem e hierarquizam a imensa maioria dos conteúdos segundo suas lógicas comerciais e algorítimos, Estes algorítmos, conforme demonstrado em seguidos estudos, estimulam a agressividade, o conflito e o esgarçamento dos laços sociais, inibindo a cooperação e o diálogo. Mesmo assim são tolerados. Vale tudo, para evitar que ressurja uma internet crítica.
Esta regressão e o sufocamento do Wikileaks são, de algum modo, parte do mesmo processo. Nos últimos 15 anos, estabeleceu-se uma parceria estreita entre as chamadas Big Techs e os Estados mais poderosos do Ocidente – em especial os EUA. É uma relação de duas mãos. Em 2013, revelações espetaculares de Edward Snowden, um ex-agente da CIA que se tornou dissidente político, expuseram a colaboração das grandes corporações que controlam a internet com os serviços secretos norte-americanos. Por meio do PRISM, um vasto programa de vigilância, estes serviços capturam e armazenam a imensa massa de dados coletada pelas big techs, que têm ciência da vigilância e consentem com ela.
Os Estados, em contrapartida, foram coniventes com a oligopolização da internet. Sua inação permitiu que empresas muito capitalizadas dominassem e mercantilizassem ferramentas cruciais da rede, como os serviços de busca e as plataformas de distribuição de conteúdos. Em busca do lucro, as corporações aliaram-se a parcerias com ações políticas da ultradireita. É fartamente conhecida a colaboração que o Facebook/Meta estabeleceu com a Cambridge Analytica e as manipulações eleitorais que favoreceram Trump, Bolsonaro ou o Brexit. Esta associação perdura até hoje – e se expressa, por exemplo, no fato de o Google/Youtube responderem, no Brasil, por 70% do faturamento dos sites neofascistas.
Os olhos permaneceram fechados inclusive quando as big techs difundiram, sem nenhuma avaliação prévia das consequências, tecnologias que hoje mostram-se nocivas à saúde infantil – como as que promovem interação aditiva com as telas. E o controle pode tornar-se ainda mais férreo se as novas técnicas de inteligência artificial generativa permitirem a estas corporações apropriar-se de todo o conteúdo disponível na rede, lançando mão do que Noam Chomsky chamou de “máquinas extremamente sofisticadas de plágio”. É o que já sugerem novos sistemas de busca turbinados por robôs, como os adotados por Google e Microsoft.
IV.
Na noite de 25 de junho, Julian Assange livrou-se em definitivo do cárcere. Uma juíza federal norte-americana, com fórum no arquipélago das Marianas do Norte, controlado pelos EUA, referendou o acordo estabelecido entre ele e o Departamento de Justiça do país. O fundador do Wikileaks declarou-se culpado da acusação mais leve lançada contra ele. A formalidade levou a juíza a condená-lo a 62 meses de prisão. Por já ter cumprido este período em Belmarsh, ele foi libertado.
A mídia comercial cobriu cada detalhe do acordo e de seu cumprimento, para ocultar o essencial: Assange está livre; a internet, que ele quis transformar em instrumento de liberdade, não.
Seu retorno faz justiça a um lutador essencial e alimenta uma réstia de esperança. Nas crises civilizatórias, as saídas surgem, às vezes, de onde não se espera. A internet foi arma de guerra nuclear e instrumento de especulação financeira, antes de se converter (por algum tempo…) em ferramenta para transformar a comunicação humana. A luta por seu sentido está viva, como argumentam alguns dos textos mais recentes publicados no Outras Palavras (1 2 3 4 5 6). A presença de Assange entre nós amplia este combate. Mas ele será muito mais difícil se não estivermos despertos para o que se passou nos últimos 15 anos.
Publicado originalmente no site Outras Palavras em 25 de junho de 2024.
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Antonio Martins é editor do Outras Palavras.
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