Diário de Paris

Um professor brasileiro no olho do furacão francês.

Foto: Lorie Shaull (Wikimedia Commons)

Por Fabio Querido

8 de junho

As eleições para o Parlamento começaram oficialmente em alguns países no dia 6 de junho. Será amanhã, no entanto, que a grande maioria dos cidadãos da União Europeia irão às urnas. Se é impossível saber de antemão o que ocorrerá, uma coisa parece certa: a extrema-direita avançará, e, ao que tudo indica, o fará nos dois países mais importantes da União Europeia, a Alemanha e a França. No primeiro caso, espera-se uma ascensão de Alternativa para a Alemanha, a despeito dos escândalos recentes que sacudiram o partido e lhe valeram – após declarações condescendes com o nazismo da parte de um de seus líderes – a exclusão do grupo Identidade e Democracia (ID), um dos grupos de extrema-direita no Parlamento europeu. Até mesmo para Marine Le Pen e o Reunião Nacional (RN), cujas raízes antissemitas vem de longe, embora atualmente a predileção seja pela islamofobia, Alternativa para a Alemanha se tornou “infrequentável”, como se diz por aqui.

Na França, a se confirmar as pesquisas eleitorais – que desde o início da campanha pouco se alteraram –, a lista do RN, encabeçada por Jordan Barbella, jovem de 28 anos e eminência parda da extrema-direita, deve vencer com folga a lista de Renascimento, partido do presidente da República, Emannuel Macron. Antevendo a vitória provável, Le Pen e Barbella intensificaram nos últimos dias a pressão para que Macron dissolva a Assembleia Nacional (equivalente à nossa Câmara dos Deputados) e convoque novas eleições legislativas.

9 de junho

Como se imaginava, as eleições foram marcadas pela ascensão da extrema-direita. Na Alemanha, Alternativa para a Alemanha recolheu 16% dos votos, ficando atrás apenas dos democrata-cristãos (direita), mas à frente do partido socialdemocrata, do atual chanceler Olaf Scholz. Na Itália, Irmãos de Itália, partido da primeira-ministra Giorgia Meloni que compõe um dos dois grupos da extrema-direita no Parlamento europeu, Conservadores e Reformistas Europeus (ECR), chegou na dianteira com notáveis 29% dos votos. Na Hungria, a vitória foi da direita extrema representada pelo Fidesz (44%), de Victor Orbán, organização atualmente sem grupo parlamentar, após ter sido expulsa do Partido Popular Europeu (PPE – direita conservadora “tradicional”). Na Áustria, o Partido da Liberdade – do grupo Identidade e Democracia (ID) – alcançou expressivos 25,5% dos votos.  

Quantitativamente, a vaga extremista de direita não foi acachapante. De 127 de um total de 705 deputados do Parlamento europeu, ou seja, 18%, os dois grupos que acolhem este espectro político (ECR e ID), acrescidos dos parlamentares independentes da mesma linha, chegarão a 178 de um total de 720, isto é, 25%. Qualitativamente, porém, o estrago está feito. O novo cenário tornará ainda mais porosa as fronteiras entre a direita “tradicional” e a extrema-direita.

Mas foi na França que o impacto foi mais profundo, muito em função do modo como, no país em formato de hexágono, as eleições europeias são filtradas pelas questões nacionais. A derrota humilhante da lista do partido do presidente, Renascimento, que ficou 17 pontos percentuais atrás daquela do RN (31,5%), levou Macron – atualmente sem maioria no Parlamento – a lançar uma aposta arriscada e, até certo ponto, inesperada, atendendo à demanda pública do partido de Marine Le Pen: em alocução televisiva, às 20h58, logo após a divulgação dos resultados eleitorais, o presidente dissolveu a Assembleia Nacional e, ato contínuo, convocou novas eleições legislativas para os dias 30 de junho (primeiro turno) e 7 de julho (segundo turno), no que definiu como um “ato de confiança na capacidade do povo francês de fazer a escolha mais justa para si mesmo e para as gerações futuras”.

A esperança do presidente da República é que, numa eleição em modelo distrital em dois turnos – em que as cidades e comunas são divididas em distritos, cada qual com uma eleição majoritária que elegerá o seu deputado correspondente –, a extrema-direita tenha dificuldade para repetir o mesmo desempenho. E que a esquerda não tenha força para se colocar como alternativa de poder, apesar dos resultados entre razoáveis e bons da lista socialdemocrata (14%), assim como daquela de A França Insubmissa, partido de Jean-Luc Mélenchon, que recolheu 9,5% dos sufrágios.

Além disso, Macron almeja ressuscitar o medo de parte das elites econômicas em relação a um possível governo de extrema-direita, recolocando-se como única opção diante do caos. “Depois de mim, o dilúvio”, é como se dissesse o presidente da República. “Jogada de pôquer”, como definiu em editorial o jornal Libération, a aposta é não apenas improvável como bastante temerária.  

Para o RN, uma eventual vitória poderia levar um dos seus – Barbella – à condição de Primeiro-Ministro, impondo um governo de coabitação entre um chefe do executivo de centro-direita e um chefe do governo de extrema-direita. Um “jabuti” do sistema político (semiparlamentar) francês, no qual o presidente é quem escolhe o primeiro-ministro, ainda que se sujeitando às maiorias parlamentares. 

A última vez que algo semelhante ocorreu foi em 1997. O então presidente, Jacques Chirac, do Reunião pela República (RPR, direita), convocou eleições legislativas antecipadas, na esperança de fortalecer a sua base parlamentar. O resultado ficou longe do esperado: a vitória da chamada “esquerda plural” obrigou Chirac a nomear Lionel Jospin, do PS, à liderança do governo. 

10 de junho

De ressaca da noite anterior, os franceses acordaram ainda tentando compreender a atitude de Macron. “Sideração” é uma das palavras que mais aparecem nos jornais impressos ou nos debates televisivos. “Ao brincar com fogo, o chefe de Estado pode acabar queimando-se. Arrastando o país inteiro para a fogueira”, escreveu a jornalista Solenn de Royen no Monde. Mesmo aliados do presidente, sem deixar de saudar a sua “audácia”, mostraram-se desconcertados diante de uma decisão que, ao que parece, vinha sendo cogitada em discussões secretas en petit comité.

Aproveitando-se da situação, Marine Le Pen e o RN não tardaram em partir para a ofensiva. “Estamos prontos para exercer o poder se os franceses nos confiarem essa missão”, se apressou a dizer Le Pen ontem, logo após o anúncio de Emmanuel Macron. Ao longo do dia, Le Pen e Barbella se encontraram com Marion Marechal, sobrinha de Marine e cabeça de lista nas eleições europeias pelo partido Reconquista!, que obteve 5,5% dos votos, elegendo 5 deputados. Na agenda, uma possível aliança entre as duas organizações de extrema-direita para as eleições legislativas, perspectiva assumida por Marechal, mas tratada com reticência pelo polemista Eric Zemmour, líder do partido e ex-candidato às eleições presidenciais de 2022, quando recebeu 7% dos sufrágios.

Os partidos de centro-esquerda (Partido Socialista, Verdes) e de esquerda (A França insubmissa, Partido Comunista) anunciaram, às 22 horas, que chegaram a um acordo provisório em torno da formação de uma “Frente Popular”. A ideia é lançar apenas um candidato por distrito. A ver se o projeto se efetivará, dadas as diferenças significativas entre as organizações envolvidas, assim como as reservas – exageradas em medida inversamente proporcional ao seu apoio à causa palestina – em relação à figura de Jean-Luc Mélenchon, de A Frente Insubmissa (LFI), que obteve 21,5% dos votos no primeiro turno das presidenciais de abril de 2022, menos de 2 pontos percentuais atrás de Marine Le Pen, que foi ao segundo turno com Macron.

As ruas começaram a se movimentar. Na noite de ontem, em Paris, uma primeira manifestação contra a extrema-direita teve lugar na Praça da República, célebre palco de encontros políticos. Hoje, nova rodada de protesto. Da Praça da República, os manifestantes se dirigiram à sede dos Verdes para pressionar as lideranças dos partidos à concertação de uma unidade eleitoral.

11 de junho

A reviravolta espetacular do dia ficou por conta do histórico partido da direita conservadora “tradicional”, hoje chamado Os Republicanos (LN), em queda livre desde as eleições presidenciais de 2017, quando François Fillon ficou de fora do segundo turno. Nas eleições europeias, a lista encabeçada por François-Xavier Bellamy recebeu apenas 7% dos votos. Mais especificamente, o giro de 180 graus foi protagonizado pelo presidente de LN, Eric Ciotti. Após ter negado categoricamente, por muito tempo, qualquer aliança tanto com o macronismo quanto com o RN, Ciotti se disse, hoje, pronto a cerrar fileiras com Marine Le Pen, Bardella e companhia. Mais patético ainda é o fato de que, aparentemente, Ciotti sequer consultou as demais lideranças do partido, o que causou forte reação de muitas delas, refratárias à subordinação eleitoral à extrema-direita. Mais um capítulo da porosidade entre uma direita “tradicional” cada vez mais extrema e uma extrema-direita cada vez mais “normalizada”.

12 de junho

Todos as atenções estão voltadas para a entrevista coletiva de Emannuel Macron, sobretudo os militantes do seu campo político, ainda desorientados pela dissolução da Assembleia Nacional. Como era de se esperar, Macron se colocou como a única alternativa diante dos “dois extremos”: a nova “Frente Popular” e a aliança entre setores da direita e a extrema-direita. Como ocorre quando se trata de justificar o injustificável, Macron evocou a “ética da responsabilidade” que a sua posição lhe impõe. Irresponsáveis são os outros! Pobre Weber!

Dificilmente as palavras do presidente vão apaziguar a sua base eleitoral. A impressão é que, do alto de sua prepotência, é o próprio Macron quem está desorientado. Sem nada a apresentar além da defesa das suas políticas cada vez mais à direita (reforma da previdência sem voto no Parlamento, lei sobre a imigração etc.), não lhe resta senão apelar à eventual deslegitimidade dos oponentes. “Ruim comigo, pior sem mim”.

É impressionante como, na França, o passado é convocado como fonte de legitimidade dos debates do presente. Talvez não tenha sido por acaso que Marx tenha mencionado o passado que “pesa como um fardo” na “cabeça dos vivos” justamente em uma análise da política francesa, em O 18 de brumário de Luís Bonaparte. Assim, não foram poucos os que acusaram Eric Ciotti de abandonar o “espírito gaullista” de LR ao se aproximar da extrema-direita. O assunto é simbolicamente sensível, uma vez que o antecessor direto de RN, a velha Frente Nacional do “diabo” da República, Jean-Marie Le Pen, foi fundada por adversários, se não inimigos, do General De Gaulle: antigos militantes do grupo terrorista em prol da Argélia francesa, Organização armada secreta (OAS), ex-colaboradores do domínio nazista na França, neofascistas etc.

Macron, de sua parte, atacou a referência da nova união de esquerda à Frente Popular de 1936, dirigida por Leon Blum, afirmando que este último “deve estar se revirando no túmulo”. Simples assim, como se fosse um mero comentarista político e não o principal responsável pela situação a que o país está submetido.

À direita do espectro político, o cenário não poderia ser melhor para o RN e para Marine Le Pen. Em poucos dias, o RN fagocitou setores da direita e da extrema-direita que ainda resistiam ao seu projeto. E, para isso, só precisou jogar parado, assistindo de camarote as trombadas públicas de seus adversários agora integrados na família patriótica.          

Continuam as tratativas entre os partidos da nova “Frente Popular”. Além do programa, será preciso determinar os candidatos únicos nos 577 distritos do país. Segundo as primeiras negociações, LFI teria 229 candidatos, o PS, 175, os Verdes, 92, e o PCF, 50. Ademais, há a questão não menos fundamental, embora por agora hipotética: quem será o Primeiro-Ministro em caso de vitória nas legislativas? Pelo capital político acumulado nas duas últimas eleições presidenciais, o nome mais evidente seria o de Jean-Luc Mélanchon. No entanto, a hipótese encontra resistência em quase todos os outros partidos da Frente, em especial no PS.

Como pano de fundo sensível, a recente implosão da Nova União Popular, Ecológica e Social (NUPES), em função de divergências sobre o ataque terrorista do Hamas em outubro último e sobre o massacre israelense em Gaza que se seguiu. A NUPES havia sido formada para a disputa das legislativas de 2022, elegendo 151 deputados – quase a metade deles de LFI. Para o PS e para os Verdes, o problema é que LFI não teria condenado com a veemência necessária o Hamas, além de o partido ter se recusado a participar de uma marcha contra o antissemitismo ao lado das outras formações políticas do país, inclusive o RN.

13 de junho

O cotidiano Le Figaro, de timbre conservador, qualificou em editorial a aliança da esquerda como “a verdadeira Frente da vergonha”, fustigando aqueles que se indignam diante da aproximação de Ciotti com o RN (chamado de “partido nacionalista” pelo jornal), mas se calam em relação ao real perigo representado pelas “loucuras demagógicas” de LFI e de Mélenchon. Cada qual com seus fantasmas. Na mesma linha do Figaro, o primeiro-ministro Gabriel Attal falou de “acordo da vergonha” ao se referir à nova Frente Popular.

Às 20 horas, os partidos da nova Frente Popular anunciaram que chegaram a um acordo em torno da distribuição final das 577 candidaturas, assim como sobre as bases de um programa político-eleitoral comum “de ruptura”, a ser detalhado amanhã em entrevista coletiva. Uma “nova página da história” foi escrita, disse o secretário geral do PCF, Fabian Roussel. Os realinhamentos eleitorais continuam. Domingo, 16 de junho, é o prazo final para o depósito de candidaturas.

14 de junho

Divulgado o programa comum da nova Frente Popular. Dentre as principais medidas, destacam-se a revogação das reformas da previdência e do seguro-desemprego, assim como da lei sobre imigração; o restabelecimento do Imposto de Solidariedade sobre a Fortuna (ISF); o aumento do salário-mínimo (SMIC) de 1398 a 1600 euros líquidos; o congelamento dos “preços de bens de primeira necessidade” e da energia. No plano internacional, a nova Frente Popular espera trabalhar pela paz “diante da guerra de agressão de Vladimir Putin” na Ucrânia e “em face dos massacres em curso em Gaza”, como anunciou o coordenador de LFI, Manuel Bompard. Condenando o ataque terrorista do Hamas em outubro passado, a aliança promete “lutar contra as todas as formas de racismo, contra o antissemitismo e contra a islamofobia”.  

A nova Frente Popular abarca desde os setores do PS mais refratários à unidade com LFI e Mélenchon, como o grupo ligado ao ex-presidente François Hollande, que se viu sem saída, ao Novo Partido Anticapitalista (NPA) de Olivier Besancenot e Phillippe Poutou. Da socialdemocracia aos herdeiros do trotskismo, passando pelos Verdes e pelos comunistas! As manifestações marcadas para amanhã em várias cidades da França, com destaque para Paris, vão ser o primeiro grande teste de fogo da nova Frente Popular: elas indicarão se os acordos de cúpula serão seguidos pelo entusiasmo das bases.   

Enquanto isso, o programa do RN está em modo subtração: pressionado pelo eleitorado liberal-conservador, o partido vai renunciando pouco a pouco às principais medidas que até então dizia inegociáveis. Focado ao mesmo tempo no corte de impostos e no aumento de despesas, sem previsão de novas receitas, o programa econômico do RN enfrenta resistência no mercado financeiro, como o demonstra a alta das taxas de juros futuros dos papeis da dívida francesa após a dissolução de domingo. É a velha política da chantagem. Ano passado, o déficit primário do país chegou a 5,5% do PIB. De onde sairá o dinheiro? Quem vai pagar a conta?

Em busca de respeitabilidade diante da burguesia francesa, o RN parece se ver pressionado a assumir o lugar que cabe a um partido de extrema-direita no capitalismo: o de se colocar como alternativa do (e não ao) sistema quando o liberalismo puro-sangue não dá mais conta do recado. Mas, para isso, o partido de Marine Le Pen precisaria matizar a sua perspectiva econômica julgada muito socializante. Quanto ao racismo, à xenofobia e ao autoritarismo de RN, bem, esse é um detalhe menor. O importante é fazê-los acreditar que não há almoço grátis – para os outros!

Resta por saber como as classes populares – que formam atualmente o núcleo do eleitorado do RN – receberão tais recuos programáticos. Esse é, aliás, talvez o maior dilema da luta contra a extrema-direita: como recuperar o eleitor que historicamente pendia à esquerda, mas que, hoje, se encontra majoritariamente no radar do RN, que não apenas se “desdiabolizou” como também logrou se “popularizar”, no sentido forte do termo? O desafio não é de hoje, como se pode ver no livro do sociólogo Didier Eribon, Retorno a Reims, de 2009, mas ganhou nos últimos anos uma nova dramaticidade.

No campo da esquerda, apenas LFI rivaliza de fato com o RN nas bases da pirâmide social. O PS e os Verdes atraem sobretudo os votos das classes médias “progressistas”. O PCF mantém certa implantação nas classes trabalhadoras, mas seu poder de fogo é hoje mais simbólico do que politicamente efetivo. À direita tradicional, por seu turno, afluem notadamente as classes médias e altas de tendência conservadora.

15 de junho

Dia de manifestações contra a extrema-direita em toda a França. Em Paris, o ato foi grande. Não foi gigantesco, como alguns esperavam, mas tampouco pequeno, como outros auguravam. Segundo a polícia, 75 mil pessoas se manifestaram na capital francesa, de um total de 250 mil no conjunto do país. Para a Confederação Geral do Trabalho (CGT), 250 mil pessoas marcharam da praça da República à praça da Nação, em Paris – 650 mil contando todas as cidades. A se avaliar pelos quilômetros que separavam as duas pontas do cortejo, é difícil não acreditar que pelo menos 150 mil pessoas estavam nas ruas parisienses. Não é pouca coisa, numa cidade com pouco mais de 2 milhões de habitantes, embora não chegue nem perto do 1 milhão de pessoas que saíram às ruas contra a qualificação de Jean-Marie Le Pen (da então Frente Nacional) para o segundo turno das presidenciais de 2002.

A surpresa do dia foi protagonizada por François Hollande (PS). O ex-presidente decidiu se candidatar a deputado sob a bandeira da nova Frente Popular. “Situação excepcional, decisão excepcional”, justificou ele. O paradoxo é que o governo de Hollande (2012-2017) é visto pela maior parte do bloco de esquerda como um dos responsáveis pela situação atual. Seu ministro da economia não era outro senão um personagem ainda desconhecido do grande público: Emmanuel Macron. A hora, porém, é a da unidade, contemporizam alguns. 

Na nova Frente Popular, outra polêmica emerge nas fileiras de LFI. Jean-Luc Mélenchon e a direção do partido decidiram não autorizar a candidatura à reeleição de importantes deputados (Alexis Corbière, Raquel Garrido e Danielle Simonet, dentre outros), que haviam caído em desgraça por discordar da estratégia levada a cabo pelo “patrão” da organização. Historicamente avesso a contestações internas, Mélenchon justificou dizendo que não há “candidaturas garantidas por toda a vida”, em especial para aqueles que faltaram com a “lealdade”. Uma explicação que não apenas não convenceu como acrescentou mais uma dose de perplexidade num momento em que a consigna geral é a da unidade contra a extrema-direita.

16 de junho

Uma semana após a dissolução choque da Assembleia Nacional decretada por Emmanuel Macron, a França se debate. A impressão é a de uma aceleração desenfreada do tempo político. É como se estivéssemos diante de um verdadeiro acontecimento, no sentido forte do termo, ou seja, num daqueles momentos em que os dados estão lançados, sem que saiba ainda como eles cairão.

Para a esquerda, a convergência estabelecida em poucas horas restabeleceu certa esperança de que a fresta aberta pela dissolução poderá levar a crise a um desenlace até então improvável, com a ascensão da nova Frente Popular à chefia do governo. Para Macron e seus aliados, a aliança a jato da esquerda, inclusive em torno de um programa comum, bagunçou o discurso de que são eles a única alternativa à ascensão da extrema-direita.

Seja como for, o fato é que, por enquanto, a chegada da extrema-direita à Matignon (onde trabalha o primeiro-ministro) continua sendo a hipótese mais provável. As próximas três semanas serão decisivas. Entre a esperança do alívio e a confirmação da catástrofe, a fronteira será tênue.

17 de junho

Com o final do prazo para o depósito de candidaturas esgotado ontem, a campanha eleitoral começou oficialmente hoje. E estamos a menos de 2 semanas do primeiro turno! Serão 13 dias decisivos, em que cada voto poderá fazer a diferença. O momento é e será histórico, para o bem ou para o mal.

Relativamente discretos na última semana, preferindo atuar nos bastidores, os donos do dinheiro parecem dispostos a deixar mais explícitas as suas posições. Após mensagens de emissários do Movimento das Empresas da França (MEDEF), o principal sindicato do patronato francês, hoje a Associação Francesa de Empresas Privadas (AFEP), que reúne as 117 maiores empresas do país, divulgou nota em que, sem nomear partidos, alerta contra o risco de “paralisia durável” da economia francesa, a depender do desenlace das eleições legislativas, apelando à necessidade de “responsabilidade fiscal”. Eles não querem pagar o almoço.  

Segundo confidenciaram em off alguns dos seus expoentes ao jornal Le Monde, o cenário mais atraente para o grande capital francês seria uma concertação à italiana, ou seja, com uma extrema-direita vitoriosa (o Irmãos de Itália lá, o RN aqui) que, uma vez no poder, rebaixaria as suas expectativas a fim de governar em coalizão com a direita tradicional, cuja função seria a de velar pela continuidade neoliberal, sem sobressaltos desnecessários. Talvez esteja aí a principal “clarificação” desejada pelo presidente da República como justificativa política para a dissolução da Assembleia Nacional: a aceitação pelas classes dominantes de um governo liderado pela extrema-direita, desde que sejam respeitados os pilares do modelo econômico vigente.

18 de junho

Desprezado pelos próprios deputados de sua base, que preferem não inserir a sua foto nos cartazes e panfletos eleitorais, e depois de dizer na entrevista coletiva do dia 14 de junho que, como chefe de Estado, não cabia a ele entrar na campanha, Emmanuel Macron decidiu dar alguns pitacos em mais um evento de comemoração dos 80 anos da Liberação. E, mais uma vez, o principal alvo da crítica foi menos o RN, tachado de “pouco razoável financeira e politicamente”, do que a nova Frente Popular, cujo programa é, segundo ele, “totalmente imigracionista”. “Eles propõem a abolição de todas as leis que permitem controlar a imigração”, completou Macron.

Se viesse das fileiras do RN, o argumento já seria um absurdo. Oriundo de alguém que se caracterizou pela política do “ao mesmo tempo” – pela qual almejava superar a clivagem esquerda-direita –, ele dá uma ideia da situação do debate político francês nos últimos anos.

19 de junho

A agressão sexual de uma menina de 12 anos – no dia 15 de junho, mas cujo caso veio à tona anteontem – por três garotos quase da mesma idade, chocou o país. Tanto mais porque, além do estupro, que já seria deplorável por si só, a violência se revestiu de um componente antissemita. Em outras palavras: a adolescente foi agredida porque é mulher é porque é de origem judaica. Segundo a vítima, ao longo do ataque, os garotos a chamavam de “judia imunda”.

O episódio não podia senão abalar a campanha eleitoral, dada a sensibilidade do tema. Ele deu mais uma oportunidade ao macronismo e à extrema-direita de colocar LFI e a nova Frente Popular contra a parede. Foi lembrada pela enésima vez a afirmação inverídica e politicamente desastrosa de Mélenchon, emitida há algumas semanas, de que o antissemitismo é um fenômeno “residual” na França.

Ao mesmo tempo, a ocasião permite ao RN se apresentar como defensor dos judeus contra o “islamoesquerdismo”. O inimigo agora é outro: os árabes e/ou muçulmanos, acusados de – à diferença dos judeus – se circunscrever a uma visão “comunitarista”, negando-se a incorporar os valores “universais” da República.

Aí a ironia – ou a “astúcia” – da história: o partido formado por notórios antissemitas, cujo fundador chegou a dizer que as “câmaras de gás” foram um “detalhe da história”, é visto agora como aliado da luta contra o antissemitismo identificado à esquerda. Essa é, aliás, uma das razões da “normalização” do RN. O “diabo” são os outros: a LFI e seus cúmplices.

20 de junho

A cada dia que passa, a questão fundamental se torna mais latente: a França será capaz de bifurcar uma trajetória que, não de hoje, parece insinuar pouco a pouco a inevitabilidade da chegada da extrema-direita ao poder? Conseguirá ela puxar o freio de emergência antes que a locomotiva da história nos leve à catástrofe?

No plano propriamente eleitoral, a incerteza se deve às complexas regras eleitorais das legislativas francesas, sem falar no curtíssimo período de campanha. São 577 eleições “separadas”. Para vencer no primeiro turno, é preciso recolher mais de 50% dos votos válidos, desde que este percentual também corresponda a 25% do total de eleitores aptos a votar (inscritos). Caso isso não aconteça, classificam-se ao segundo turno os candidatos que obtiverem 12,5% dos votos considerando não os eleitores que efetivamente foram às urnas, mas sim o total de inscritos – o voto na França não é obrigatório.

Isso significa que uma eleição pode ter 3 ou mesmo – embora seja muito improvável – 4 candidatos disputando o segundo turno, a depender também no nível de abstenção. Na hipótese de nenhum ou de apenas um dos candidatos ultrapassar o mínimo de 12,5% dos inscritos, mas não os 50% dos votos, os dois primeiros colocados – independentemente do total de sufrágios recebidos – são qualificados para o segundo turno.

Assim, mais importante do que o total de votos no país inteiro, é ganhar em cada uma das circunscrições, mesmo que seja por 1 sufrágio de diferença. Embora sirva como indicativo geral, o recente resultado das eleições europeias não pode, portanto, ser diretamente transposto para as legislativas. E mesmo as pesquisas precisam ser tomadas com muita cautela: elas indicam o percentual total de votos de um partido ou coligação, sem, no entanto, lograrem precisar com muita exatidão o quanto tais sufrágios se transformarão em cadeiras de deputado.

21 de junho

Inquietude no mundo cultural diante das propostas do RN. A mais importante: a privatização do audiovisual público, acusado de falta de pluralismo. Para o RN, cultura se resume ao “patrimônio”. No programa da candidatura de Marine Le Pen às presidenciais de 2022, o RN declarava que “o patrimônio é nossa história petrificada; é por isso que ele tem um lugar central no programa de restauração moral do país”.

A definição é lapidar. Ela revela em toda a sua plenitude a concepção da extrema-direita em relação à cultura e ao passado: trata-se de uma história reificada, congelada no tempo, quer dizer, de uma história imaginária, imune às transformações indesejáveis. A fixação no caráter “petrificado” dos “monumentos” da cultura francesa oculta, assim, o seu vínculo irredutível com “monumentos de barbárie”, para dizer como Walter Benjamin, para quem também o passado é objeto de uma luta que se joga no presente. Essa fixação assenta uma visão do passado apropriada ao que se imagina, no presente, para a França: um país no qual boa parte de sua população não encontra nenhuma representação, em que, enfim, para os oprimidos, a exceção se fará valer como norma.

22 de junho

Antevendo a possibilidade de que RN e seus aliados não consigam, sozinhos, a maioria absoluta de 289 deputados, Marine Le Pen declarou ontem que, nesse caso, as hipóteses seriam duas: 1) o bloqueio político do país, uma vez que uma nova dissolução da Assembleia Nacional só poderia ser decretada após 1 ano; ou 2) a renúncia de Emmanuel Macron, o que levaria à antecipação da eleição presidencial, na eventualidade da qual Marine Le Pen largaria como franca favorita.  

Na mesma linha, Jordan Barbella já deixou claro que só aceitará o posto de Primeiro-Ministro se conquistar a maioria absoluta. É uma forma de mobilizar o seu eleitorado e, ao mesmo tempo, de pressionar o presidente, dando como favas contadas o fato de que o RN elegerá a maior bancada.

23 de junho

Novas pesquisa eleitorais divulgadas no fim de semana mostram poucas alterações em relação ao cenário das eleições europeias. O RN aparece com entre 35% e 37% das intenções de voto, diante dos 27-30% da nova Frente Popular e dos 20% do bloco governista. Logo depois aparecem LR, com entre 7% e 10%, e Reconquista!, com 2%. Se se tratasse de uma eleição proporcional, como as europeias ou as eleições para deputado federal no Brasil, nenhuma das forças políticas conseguiria, sozinha, a maioria absoluta. Numa eleição majoritária em dois turnos, porém, tudo pode acontecer. As estimativas creditam ao RN entre 250 e 280 deputados, número muito próximo dos 289 que garantem maioria absoluta. Além disso, não se pode descartar uma aliança em segundo turno de candidatos do RN, de LR e de Reconquista!, consolidando a união das direitas desejada por Eric Ciotti.

A coligação Juntos pela República, do bloco governista, cresceu 5 pontos percentuais em relação às eleições europeias. Parece insuficiente para disputar a liderança com o RN ou com a nova Frente Popular. No entanto, tanto no segundo turno quanto no período pós-eleitoral, Juntos pela República poderá ser o fiel da balança, seja no apoio aos candidatos da esquerda ou da extrema-direita, ou na formação posterior de uma nova maioria parlamentar capaz de impor o novo Primeiro-Ministro.


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Fabio Querido é professor livre-docente de sociologia da Unicamp. Autor de, entre outros títulos, Michael Löwy: marxismo e crítica da modernidade (Boitempo, 2016; Herramienta, 2019), Daniel Bensaïd – intelectual em combate (Fino Traço, 2022) e Lugar periférico, ideias modernas: aos intelectuais paulistas as batatas (Boitempo, 2024, no prelo). Atualmente, atua como professor e pesquisador visitante na Universidade Paris-Cité.

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