Labirinto econômico

Depois de três décadas servindo à riqueza velha, com o Executivo cada vez mais amarrado, fazendo das tripas coração pra preservar um grau de liberdade mínimo, com o Congresso mais reacionário da história a manobrar interesses os mais escusos, resta saber se haverá um fio de Ariadne pra resgatar o país desse labirinto, mais sinistro que o meu, por abrigar o Minotauro extremista que continua a devorar nossas esperanças.

Foto: Kier in Sight Archives (Unsplash)

Por Leda Paulani

Há muito tempo sofro de uma labirintite crônica, que ataca sem aviso prévio e me põe fora de combate (Síndrome de Ménière). Nas últimas semanas, vivi em transe e num mundo desequilibrado.

“Acordando” agora, porém, estou achando que o labirinto deficiente prejudicou o meu juízo. Deixo aqui então uma pergunta: aconteceu, neste meio tempo, alguma hecatombe da qual não pude tomar conhecimento? Uma nova guerra, é isto, uma nova guerra que fez disparar ainda mais o preço da energia e dos alimentos; ou talvez um grande desastre climático, maior do que aquele que tragou nossos irmãos gaúchos; não, uma nova pandemia, isto, acho que é uma nova pandemia, e infinitamente mais devastadora, causando arrepios, sobretudo no “mercado”, que vai ter que aturar outra vez um Estado sem amarras pra gastar; ou será que a Nyse, a Nasdaq, a bolsa de Shangai e a Nikkey deram um capote espetacular e foram parar no abismo todas juntas; ou não foi nada disso e o que aconteceu foi um disparo de tal ordem da inflação americana que os Estados Unidos estão se sentindo agora como o Brasil dos anos 1980?

Seja o que for, deve ter sido algo apocalíptico, sem o que não se consegue explicar a súbita mudança de expectativas, de cenário, de panorama, de ambiente da economia brasileira de meados de abril para esta do final de junho.

Senão vejamos. Há cerca de dois meses, as expectativas de inflação estavam em queda e perfeitamente dentro da meta, as expectativas sobre o comportamento do PIB iam se elevando, em uníssono em relação ao que se esperava para o ano, a arrecadação de impostos ia surpreendendo positivamente de modo constante, e o desemprego continuava a se reduzir. As contas externas iam desenhando um cenário não tão alvissareiro quanto o do ano anterior, mas isso o mercado já tinha precificado e, de qualquer forma, elas também não surpreendiam negativamente. O câmbio rondava em torno de R$5,00, ora pouco abaixo, ora pouco acima, e o Ibovespa B3 seguia com tendência altista, quase alcançando os 130 mil pontos. A pesquisa Focus previa a Selic ao final do ano em 9%, sinalizando continuidade no movimento de queda. Como uma espécie de corolário, no dia 1º de maio, a famosa agência Moodys de classificação de risco, apesar de não mexer no rating do Brasil, alterou sua perspectiva de “estável” para “positiva”.

No domingo, 16 de junho, a Folha de São Paulo trazia em (má escrita) manchete principal: “Brasil tem um dos piores desempenhos na Bolsa e da moeda”.  Na matéria a informação de que, dentre as maiores economias do mundo, a Bolsa brasileira teria perdido em média 10% desde o início do ano (cerca de 7%, diga-se, de meados de abril pra cá), enquanto a moeda brasileira, batendo em R$5,40, só não estava no primeiro lugar no pódio da desvalorização porque o iene japonês usurpou o lugar. Na reunião de 19 de junho agora, o Copom decidiu, por unanimidade, manter a Selic em 10,5%.

Qual a razão de tamanha reviravolta? Alguém logo dirá que, externamente, o FederalReserve americano adiou mais uma vez o momento de reduzir suas taxas de juros. Mas ele já havia feito isso pelo menos duas vezes só neste ano, sem provocar todo este tumulto. Internamente, lembrarão alguns, o governo de Lula alterou a meta de resultado primário de 2025 de mais 0,5% para zero. Mas isso também já estava precificado pelo mercado. Não foram dois nem três, mas vários os executivos de instituições financeiras afirmando que as metas de resultado primário seriam de difícil execução e que eles já trabalhavam com números piores. Ademais, essa mudança aconteceu em abril e não alterou, por exemplo, a disposição da Moodys de melhorar, em seu ranking, a perspectiva atribuída à economia brasileira. Então por quê? A resposta não é técnica.

Quando se trata de analisar e diagnosticar o que acontece com as expectativas e os humores do mercado é preciso levar em conta também fatores de outra ordem. Teoricamente, a decisão do Banco Central quanto ao nível a ser fixado pela taxa de juros se dá por meio da chamada “função de referência”, que reza que a principal variável a influenciar as expectativas de inflação é a credibilidade da política monetária, que, por sua vez, depende visceralmente da própria taxa de juros. Traduzindo, o que determina o comportamento da autoridade monetária no que concerne à fixação da taxa básica é aquilo que ela ouve do mercado, mas o que ela ouve do mercado depende totalmente do que ela mesma fala.

Tal casamento perfeito não só torna “de equilíbrio”, mesmo que dê as costas às variáveis objetivas, qualquer nível da taxa, do mais reduzido ao mais elevado, como pode virar um conluio contra o país. Quando a política do Banco Central se reduz estrita e restritivamente a alcançar determinados resultados em relação ao índice geral de preços, abandonando suas outras tarefas (conforme seu diploma legal, ele também precisa zelar pelo crescimento e pelo emprego, apenas pra citar mais uma de suas atribuições) e ouvindo, para montar sua “função de referência”, tão só o mercado — mais estreitamente ainda, apenas o mercado financeiro (não é assim, por exemplo, nos EUA, o modelo inelutável dos nossos ortodoxos), a fixação da taxa básica vira uma brincadeira de compadres, cheia de profecias que se autorrealizam.

Eis, portanto, a primeira variável (não de ordem técnica) que cumpre considerar: do ponto de vista institucional criaram-se condições objetivas para uma espécie de “autismo” da política monetária, que evidentemente serve a interesses específicos, sobretudo da riqueza velha, transmutada em papéis — capital fictício, diria um velho barbudo, a qual busca insanamente capturar no futuro a valorização que deveria estar ajudando a promover no presente com aplicações produtivas. Mas há mais.

Desde a Lei Complementar nº 179, que conferiu autonomia ao Banco Central, assinada com a digital criminosa de Bolsonaro em fevereiro de 2021, a situação tornou-se ainda mais complexa. A autonomia, em princípio uma espécie de salvaguarda contra os “interesses políticos”, sempre deletérios, na visão ultraliberal que motivou a proposição e aprovação da lei, à sacrossanta tarefa de preservar o comportamento dos preços, a autonomia pode virar, como agora o presenciamos, uma arma política letal. A lembrar certo juizeco de província que topa de antemão a pasta da Justiça, prendendo o mais forte candidato à eleição, um presidente de Banco Central que não tem pudor em aceitar um cargo de ministro da Fazenda num possível governo de um candidato de oposição pode ser tudo, menos autônomo. Indigno do cargo que ocupa, Campos Neto usa e abusa de seu poder pra direcionar a política monetária contra o governo, democraticamente sagrado nas urnas, que comanda o Executivo.

E voltamos com isso à reviravolta — infundada do ponto de vista técnico. Em 17 de abril, em viagem aos EUA para uma reunião do FMI, Campos Neto anunciou que “há mais incerteza agora do que no último encontro” (???) e que a falta de previsibilidade atrapalharia o plano assumido pelo Copom em março, de dar continuidade ao movimento de queda da Selic. Como bem observou o jornalista Luis Nassif, a casca de banana atirada pelo presidente do Banco Central deu resultados imediatos: no dia seguinte à sua fala, as expectativas com relação a um corte de 0,5% na Selic caíram de 79% para 28%. Menos de dez dias depois Campos Neto ataca novamente: a inflação, diz ele, em evento em São Paulo, “mantém trajetória de queda, mas as expectativas estão elevadas” (reparem bem, ele admite que a inflação está em queda…). E com a deixa, na reunião seguinte do Copom, o corte foi de 0,25% e não de 0,5%, em decisão dividida.

Daí por diante as expectativas favoráveis ao comportamento da economia começaram a descer ladeira abaixo. Forçar a queda de apenas 0,25%, em vez do esperado 0,5%, na reunião de 8 de maio, levando à divisão do Copom (os indicados por Lula votaram por redução de 0,5%, aqueles indicados por Bolsonaro votaram por uma queda de 0,25%), ajudou a acelerar a ofensiva. O nome de Gabriel Galípolo, atual diretor de política monetária indicado pelo governo de Lula e apontado como provável sucessor de Campos Neto na presidência da entidade, começa a ser duramente questionado. Na última reunião do dia 19 de junho, realizada a profecia de Campos Neto, um Copom completamente refém de um mercado voraz e corrosivo, instigado pelo próprio presidente da autoridade monetária do país, procura estancar a sangria das expectativas que o próprio BC alavanca e vota em uníssono pela manutenção da taxa. Quem haveria de votar contra? De uma Selic ao final do ano em torno de 9%, agora não se fala de outra coisa senão na manutenção dos 10,5% até o final de 2024. Missão cumprida.

E a economia brasileira? Ah, vai bem, obrigada. Produto e emprego permanecem surpreendendo, arrecadação também, contas externas ok, inflação em queda… E o que importa isso tudo? Nada. Mas com as expectativas contribuindo para inflar incertezas e reduzir o pouco investimento, o ambiente amargo vai contaminar também a economia real. Depois de três décadas servindo à riqueza velha, com o Executivo cada vez mais amarrado, fazendo das tripas coração pra preservar um grau de liberdade mínimo, com o Congresso mais reacionário da história a manobrar interesses os mais escusos, resta saber se haverá um fio de Ariadne pra resgatar o país desse labirinto, mais sinistro que o meu, por abrigar o Minotauro extremista que continua a devorar nossas esperanças.

Publicado originalmente no Jornal GGN em 21 de junho de 2024.


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Leda Paulani  é economista e doutora em Economia pelo IPE-USP, professora do Departamento de Economia da FEA-USP e da pós-graduação em Economia do IPE-USP. Tem artigos publicados em revistas acadêmicas nacionais e estrangeiras e é membro do conselho editorial de publicações, como a Revista de Economia Política. De janeiro de 2013 a março de 2015, foi secretária de planejamento, orçamento e gestão da prefeitura de São Paulo. Publicou, pela Boitempo, Modernidade e discurso econômico (2005) e Brasil delivery (2008).

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