Lembrar a ditadura no Brasil: para quê?

Urariano Mota comenta sobre seus livros "Soledad no Recife" e "A mais longa duração da juventude", destacando a importância de nunca esquecermos a ditadura.

Foto: Memórias da Ditadura (Wikimedia Commons).

Por Urariano Mota

Fui entrevistado por Dr. Táki Cordás sobre a ditadura no Brasil. Ele tem feito entrevistas por vídeo com pessoas do nível de Flávio Dino e Alcir Pécora. Mas, desta vez, na terça-feira 10 de junho, o Dr. Táki Cordás teve a generosidade de me incluir em tão seleto grupo. Destaco alguns pontos da minha fala a seguir.

No começo, ele me perguntou como cheguei às letras. Respondi que a literatura me segue ou a sigo desde que li pela primeira vez o soneto “Só” de Cruz e Souza. Eu devia ter uns 14 anos de idade. E me arrebataram para sempre os versos:

“Ah! Como eu sinto compungidamente,
Por entre tanto horror indiferente,
Um frio sepulcral de desamparo!”.

Essa poesia me atingiu profundamente. Eu vi que nesse poema Cruz e Souza falava dele mesmo, e para todos e para mim em particular.

Nesta altura, Táki Cordás me pediu para falar sobre o livro Soledad no Recife, que despertou em muitas pessoas o interesse pelo que escrevo. E recuperei os fatos, antes do livro.

Soledad Barrett, de militância em 5 países, inclusive no Uruguai quando muito jovm teve as coxas cortadas a navalha, para cicatrizá-las com suásticas, por um comando nazista. Pois bem, depois de Cuba, Soledad vem ao Recife com o Cabo Anselmo e, em Olinda, o “cabo” abre uma butique onde põe o nome-armadilha de “Mafalda”. Isso em plena ditadura Médici, em 1972.  E quando Soledad é morta, em janeiro de 1973, eu estava indo para o trabalho na Celpe. Eu retomo isso no mais recente romance A mais longa duração da juventude. Nesse romance, a personagem/pessoa de Soledad volta. Então, na subida da ponte da Boa Vista, a famosa “ponte de ferro”, eu vejo as manchetes numa banca de revistas que ficava ao pé da ponte: “6 terroristas mortos em Paulisa”. Entre os seis, estava Jarbas Pereira, que eu conhecia desde a época em que havíamos bebido juntos no Pátio de São Pedro, pelo carnaval de 1972. E me disse, entre espanto e revolta: “Que negócio é esse?! Jarbas não é terrorista!”.  O choque foi tão grande, que eu fui até a balaustrada da ponte e me pus a vomitar. Eu não consegui conter o vômito. E assim eu vou para mais um expediente. 

Chego ao trabalho em estado de choque. Não só porque havia perdido um amigo, como também por este pensamento íntimo: “Estão fechando o cerco. Logo chega a minha vez”. Então chega lá um reacionário, um safado, que desconfiava da minha posição política, abre o jornal e anuncia:

Pegaram uns terroristas hoje. Vocês viram?

E eu estou lá, batendo à máquina, que não havia computador, guias de material elétrico. Em silêncio, fingindo nada ouvir. Então ele vem e praticamente empurra o jornal na minha cara:

E aí, você viu?
Eu respondi:
É…
E ele:
A puta era até bonitinha.
Eu baixei os olhos. Mas ele voltou:
Você está vendo? Eram terroristas ou não eram?

O máximo que eu consegui falar foi:
Às vezes os jornais exageram….
Então ele se virou para os demais colegas e me apontou:
Mas eles eram terroristas! Eram ou não eram?

Aí eu baixei a cabeça e corri para o banheiro. Pra chorar. Eu só me lembrava do Novo Testamento, quando Pedro renegou Cristo três vezes.

Fiquei com esse trauma até começar a escrever Soledad no Recife. Mas eu ainda não sabia como. As pessoas precisam saber que o fracasso é uma boa escola, quando se reflete sobre ele. Eu não conseguia escrever o livro, porque sentia que estava soando falso, a narração não batia aos olhos como verdade. Eu ficava horas sentado no quarto, isolado todas as manhãs, e nada. Até o dia em que eu tive uma iluminação: “Eu estou levando este livro na terceira pessoa do singular. Este é o erro. O enamorado de Soledad sou eu! Sou eu que devo contar o meu amor platônico por ela”. Então o livro fluiu. E de tal maneira, que mais de um pessoa me pergunta até hoje se eu fui mesmo namorado de Soledad. E quando nego, não acreditam, pensam que estou mentindo, escondendo o jogo. E retomam:

Você não namorou Soledad. Mas como foi que pintou o seu amor por ela? Qual foi o truque?     

Eu respondo sempre:

Não tem truque. Eu não pude namorar Soledad, mas a minha paixão por ela veio da paixão por inúmeras companheiras, bravas, que eu conheci na militância, e não pude tê-las, porque já possuíam seus companheiros. Então essa paixão que possuía por inúmeras companheiras foi encarnada em Soledad.    

É isso que dá a razão da verdade. Porque para escrever, ou você fala a verdade, fala com verdade, ou então, como diria Maria da Conceição Tavares, vá ser engenheiro de obras (com todo respeito aos dignos profissionais, mas que pertencem a um reino de concreto diferente).

Em outro ponto da entrevista, Táki Cordás pergunta:
Soledad estava grávida?
Respondo:
Sim. Ela estava grávida, e o safado do Anselmo, seu companheiro e marido, negou até o fim que ela estivesse grávida. Com isso, ele procurava diminuir  o assassinato e a infâmia dele. Mas existem 3 depoimentos que atestam a gravidez de Soledad. Primeiro, o depoimento imortal da advogada Mércia Albuquerque. Doutora Mércia viu o cadáver de Soledad com o feto nos pés num balde improvisado. Esse depoimento de Mércia está gravado em letras de fogo. No segundo depoimento, a mãe de Jarbas era enfermeira e conhecia Soledad, porque Anselmo visitava a casa dela com a companheira. E a mãe de Jarbas viu o cadáver de Soledad no necrotério, com o feto num balde. Em terceiro, tem o depoimento de um militante, Marx (nome que o pai comunista lhe deu) que viu Soledad na casa da sua família fazendo sapatinhos de croché pro bebezinho que ia nascer. Esse depoimento está narrado em meu romance A mais longa duração da juventude. Então não tem como negar. Essas pessoas não são mentirosas! Mércia Albuquerque tem uma frase pungente, quando ela diz: ”Eu não sabia se o feto nasceu antes ou depois daquele horror”.

Então chegou a hora de falar sobre A mais longa duração da juventude, que foi traduzido para o inglês e publicado nos Estados Unidos. Mas então faltavam só 5 minutos para encerrar a entrevista de uma hora. Pude dizer:

A mais longa duração da juventude é o meu romance mais ambicioso. É um romance de formação, dos militantes contra a ditadura no Recife. E o interessante é o seguinte: aquilo que Goethe dizia muito bem, “se queres atingir os corações, fala do que vem do teu coração”. José Carlos Ruy, que escreveu um prefácio belíssimo para o romance, dizia que viu os jovens de São Bernardo, em São Paulo, vendo a juventude no meu romance. E assim, penso que o romance fez aquilo que Tolstói uma vez expressou: se queres ser universal, fala da tua aldeia.

Mas aí a entrevista estava no fim, soou o tempo de uma hora, e deixamos pra conversar sobre o meu  mais recente romance em nosso próximo encontro. 

No YouTube, a entrevista ficou gravada aqui:

Na TV Boitempo, o escritor e jornalista Urariano Mota comenta a vida de Cabo Anselmo, agente duplo e delator responsável pela morte de militantes de esquerda durante a ditadura militar. Urariano recomenda também a série “Em busca de Anselmo” (HBO) e fala sobre o seu livro Soledad no Recife, que percorre as veredas dos testemunhos e das confissões ao reviver a passagem da militante paraguaia Soledad Barrett pelo Recife, em 1973, e a traição que culminou em sua tortura e assassinato pela ditadura militar. Grávida, Soledad foi delatada pelo próprio companheiro Daniel, conhecido depois como Cabo Anselmo, e morreu com um grupo de militantes na capital pernambucana, pelas mãos da equipe do delegado Sérgio Paranhos Fleury.

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Urariano Mota é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. É colunista do Vermelho. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, de O filho renegado de Deus (Bertrand Brasil, 2013), uma narração cruel e terna de certa Maria, vítima da opressão cultural e de classes no Brasil, do Dicionário Amoroso do Recife (Casarão do Verbo, 2014), e de A mais longa duração da juventude (Editora LiteraRUA) que narra o amor, política e sexo dos militantes contra a ditadura.

2 comentários em Lembrar a ditadura no Brasil: para quê?

  1. Paulo Carneiro // 21/06/2024 às 8:16 am // Responder

    Excelente. Urariano é Victor Hugo. E Tolstói. Sente nas entranhas. Valeu.

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  2. Urariano Mota // 25/06/2024 às 5:58 am // Responder

    Grato pela imensa generosidade, amigo escritor e jornalista Paulo Carneiro

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