O aniversário de Che Guevara

Luiz Bernardo Pericás escreve sobre as diferentes versões que envolvem o aniversário de Che Guevara, defendendo o dia 14 de junho como a data correta para a maioria dos biógrafos e estudiosos do argentino.

Foto: René Burri (Wikimedia Commons).

Por Luiz Bernardo Pericás

Até hoje algumas pessoas colocam em dúvida a data de aniversário de Che Guevara, influenciadas, principalmente, pela biografia escrita por Jon Lee Anderson, que defende que o “guerrilheiro heroico” teria nascido em 14 de maio de 1928. Vale ressaltar que Anderson se baseou, em grande medida, em um relato de Julia Constenla – autora de um livro sobre a mãe do Che (Celia, la madre del Che) e outro sobre o próprio Guevara (La vida en juego) – com quem conversou durante sua pesquisa. Constenla afirma que em 1963 uma jornalista, amiga de Celia de la Serna, disse-lhe que desejava preparar um livro sobre a infância de Guevara e que queria começar sua obra com o “horóscopo” dos nascidos naquele dia (por sinal, Anderson inicia seu trabalho desta mesma maneira superficial e desnecessária). E comentou que as características do Che aparentemente não combinavam com alguém nascido naquela data. Por causa disso (ou seja, por motivos “astrológicos”), a mãe do Che, então, teria revelado a ela a suposta data correta do nascimento de seu filho (Constenla diz que a informação “durante décadas foi um segredo de família” e que “pouquíssimos amigos estavam a par”). Além disso, ela garante  que o Che veio à luz em um hospital cujo arquivo se queimou anos depois e que não existem mais registros do nascimento… O fato é que outros estudiosos (cubanos, argentinos, franceses, mexicanos etc.) também tiveram acesso a documentos e depoimentos relacionados a Guevara (e a seus familiares) e poderiam ter revelado essa informação. Ainda assim, mantiveram a data original. Jon Lee Anderson, por sua vez, também não mostrou nada para comprovar sua afirmação. O jornalista norte-americano fala logo no começo de seu livro (Che Guevara: uma biografia, edição revista e atualizada, Editora Objetiva, 2012; a primeira edição é de 1997), defendendo a data alternativa: 

O horóscopo era desconcertante. Se Ernesto ‘Che’ Guevara tivesse nascido em 14 de junho de 1928, como constava em sua certidão de nascimento, então seria do signo de Gêmeos, e sem nada de extraordinário. A astróloga que fazia os cálculos, uma amiga da mãe de Che, repetiu seu trabalho e chegou aos mesmos resultados. […] Quando a astróloga, atônita, mostrou à mãe de Che o horóscopo sem graça, ela deu risada. Revelou então um segredo que guardava zelosamente por mais de três décadas. Na verdade, seu filho nascera um mês antes, no dia 14 de maio. Não era Gêmeos coisa nenhuma, mas um teimoso e decidido taurino. […] Um médico amigo falsificou a data na certidão de nascimento, avançando-a em um mês para ajudá-los a se proteger do escândalo. 

Ele ainda insiste, nas notas de seu livro, que o Che teria nascido no mesmo dia e à mesma hora em que um “imponente estivador”, chamado Ramón Romero, também conhecido como “Diente de Oro”, pereceu por ferimento de bala durante uma greve e que os arquivos do jornal La Capital, de Rosário,confirmavam aquela história (ou seja, que o estivador perdera a vida na madrugada do dia 14 de maio, resultado de um tiro na cabeça, depois de “uma briga em Puerto San Martín”; ele estaria internado no hospital Granaderos a Caballo, em San Lorenzo, “cerca de 30 quilômetros ao norte de Rosário”).  Só que isso não confirma, em absoluto, a data de nascimento do Che. Apenas que mataram o estivador… Querer associar os dois fatos e dizer que a notícia do periódico sobre o caso do trabalhador é prova de que Guevara nasceu em 14 de maio é forçar muito a barra… 

Há outros autores, contudo, que também mencionam questões “astrológicas”, só que com uma avaliação distinta. O biógrafo Isidoro Calzada, por exemplo, em seu Che Guevara, comenta:  

Mas Rosário foi mais do que uma etapa, pois o parto foi antecipado alguns dias e o filho primogênito dos Guevara nasceu nesta cidade em 14 de junho de 1928. Um astrólogo garantiu a Celia que o mapa astral da criança era extraordinário, em verdade digno de um titã. Ele teria uma personalidade verdadeiramente extraordinária, especialmente devido à notável presença da estrela Betelgeuse, da constelação de Orion.  

Uma versão bem diferente, como se pode perceber… E um comentário igualmente fútil e desnecessário.  Mas que, neste caso, afirma que a data era 14 de junho…    

O fato é que a maioriados biógrafos continua assinalando 14 de junho como a data correta. O irmão mais novo do Che, Juan Martín Guevara, lançou em 2016 (com Armelle Vincent), Mi hermano el Che, no qual ele diz que a data do nascimento é 14 de junho. Ou seja, o livro dele saiu muitos anos depois da biografia de Anderson (e ele mantém a data original). O pai e a mãe do Che comemoravam naquela data. A família cubana do Che (a segunda esposa, Aleida, e os filhos) igualmente considera 14 de junho, assim como o governo cubano. O Centro de Estudos Che Guevara (CECG), em Havana, idem.  A editora responsável por publicar os livros do Che internacionalmente é a Ocean Press (e seu braço latino-americano, Ocean Sur). Os livros deles são todos preparados por estudiosos do CECG, que conhecem a fundo a vida e obra do “guerrilheiro heroico”. Em todos os títulos publicados pela editora (e naqueles lançados por outras editoras estrangeiras que publicam a obra do Guevara como, por exemplo, a Seven Stories Press), a data incluída nas apresentações, prefácios e cronologias é 14 de junho. E o Museo Casa del Che, em Alta Gracia (Argentina), também comemora no dia 14 de junho.    

Vale lembrar que o Che colocava em seus diários “14 de junho” como data de seu aniversário. Talvez o exemplo mais emblemático seja a narrativa que ficou conhecida como Diários de motocicleta, resultado do diário de sua viagem com Alberto Granado. Neste texto, há um “capítulo” intitulado “El día de San Guevara”, para falar do seu aniversário: “No sábado, 14 de junho de 1952, eu, fulano, mísero, completei 24 anos, às vésperas do importante quarto de século, bodas de prata com a vida, que afinal não me tratou tão mal”. Até no derradeiro diário do Che, na Bolívia, no dia14 de junho de 1967, ele comenta: “Completei 39 anos”.  

Essa história da certidão modificada circula há muito tempo. Não é novidade. É história antiga. Lucía Álvarez de Toledo (outra biógrafa do Che) informa, no começo do livro dela (The Story of Che Guevara): 

Um [biógrafo] chegou ao ponto de afirmar que a certidão de nascimento foi falsificada para esconder o fato de os Guevara estarem casados ​​há apenas sete meses quando nasceu o seu primeiro filho. Qualquer pessoa que os conhecesse também saberia que esse tipo de detalhe não lhes dizia respeito. Os Guevara nunca se interessaram pelo comportamento convencional ou por qualquer um dos tabus da classe social em que nasceram. Na verdade, segundo Roberto Guevara de la Serna, um dos irmãos de Ernesto, a mudança de data foi apenas um ato de vingança por parte de uma jornalista que foi excluída do círculo íntimo da senhora Guevara durante seus últimos dias em uma clínica de Buenos Aires em 1965, quando ela estava morrendo de câncer de mama.  

De qualquer forma, é sempre importante checar o maior número de fontes e não acreditar imediatamente em quem quer que seja, incluindo aí a biografia de Anderson, que, mesmo sendo um best-seller e com várias qualidades, não está necessariamente correta em todas as questões apresentadas e discutidas por ele. Por isso, vale consultar outros livros e relatos de familiares do Guevara. Imagine se os pais do Che não contariam isso pra ele… Como se precisassem guardar esse segredo do próprio filho (ainda que Constenla afirme que o Che supostamente sabia dessa história toda sobre as mudanças em seu registro de nascimento; de qualquer forma, se este tiver sido o caso, ele, pelo jeito, não levou a sério a informação, já que sempre comemorava seu aniversário em 14 de junho). As pessoas que tiverem dúvida podem tentar entrar em contato com o  Centro de Estudos Che Guevara em Havana para mais detalhes sobre o assunto.  


Che Guevara foi umas das mais importantes personalidades políticas do século XX. Após lutar no Congo, combateu na Bolívia, onde já estivera em sua juventude, em meados de 1953. Em 8 de outubro de 1967, foi capturado por uma unidade dos rangers locais (treinados por instrutores militares norte-americanos) e, no dia 9, assassinado no pequeno povoado de La Higuera.

Che Guevara e a luta revolucionária na Bolívia, do historiador Luiz Bernardo Pericás, é uma investigação profunda e detalhada sobre os aspectos da vida política, econômica e social da Bolívia nos anos 1960 e a guerrilha naquele país. Com ampla bibliografia atualizada e rigor acadêmico, o autor discute a trajetória do Che na luta guerrilheira na Bolívia, a partir de entrevistas com camponeses, políticos e intelectuais bolivianos (incluindo um militar, o general Gary Prado, na época dos acontecimentos ainda capitão e o oficial responsável pela captura do Che), livros e documentos (alguns dos quais, inéditos no Brasil).

A obra também perpassa um contexto mais amplo, como o período em que Guevara esteve no Congo, o tempo que passou na clandestinidade na Tanzânia e Tchecoslováquia, seu retorno a Cuba, seu treinamento na ilha e sua ida à Bolívia. O texto é também rico em detalhes sobre a atuação do Exército de Libertação Nacional (ELN). Conta ainda com capítulos que narram o que aconteceu com os diários do Che após sua execução e a continuidade da luta revolucionária (guerrilha de Teoponte). Nos anexos, o leitor encontrará vasta documentação relacionada ao tema.

Veja o debate de lançamento de Che Guevara e a luta revolucionária na Bolívia no CPDA (UFRRJ), com Luiz Bernardo Pericás e mediação de Débora Lerrer, na TV Boitempo:

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Luiz Bernardo Pericás é professor de História Contemporânea na USP. Formado em História pela George Washington University, doutor em História Econômica pela USP e pós-doutor em Ciência Política pela FLACSO (México), foi Visiting Scholar na Universidade do Texas. Seu livro Caio Prado Júnior: uma biografia política (Boitempo, 2016)lhe rendeu o troféu Juca Pato de Intelectual do Ano e o Prêmio Jabuti de melhor biografia. Pela Boitempo, também publicou Os cangaceiros – ensaio de interpretação histórica (2010), o romance Cansaço, a longa estação (2012), Che Guevara e o debate econômico em Cuba (2018), Che Guevara e a luta revolucionária na Bolívia (2023), as coletâneas Intérpretes do Brasil: clássicos, rebeldes e renegados, organizada em conjunto com Lincoln Secco, e Independência do Brasil: a história que não terminou (2022), com Antonio Carlos Mazzeo, além da antologia Caminhos da revolução brasileira (2019). É coordenador da coleção Caio Prado Júnior.

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