Nós no meio do ambiente

Parece evidente que podemos garantir a vida com o grau de desenvolvimento atual das forças produtivas, mas não mantendo as atuais relações sociais de produção e as formas de propriedades a elas associada. O que vai nos matar não é a crise ambiental, é o capitalismo.

Foto: Tania Malréchauffé (Unsplash).

Por Mauro Luis Iasi

“Parece que é a altura de arrogância antiquada afirmar
que o universo realizou bilhões de anos a fim
de formar uma morada confortável para nós”.
Stephen Jay Gold

Depois de três longos anos de pesquisas exaustivas na Biblioteca de Londres, Marx considera que tem o suficiente para esboçar seu caminho visando decifrar as bases de nossa sociedade. Em 1859 publica suas Contribuições à crítica da economia política e em seu prefácio apresenta o desenho geral dos objetivos da obra, que só ganhará a densidade esperada pelo autor anos depois com a publicação de O capital.

Nesta apresentação Marx se pergunta como uma sociedade muda e alinhava o seguinte raciocínio:

Em certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade se chocam com as relações de produção existentes, ou, o que não é mais que sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais elas se haviam desenvolvido até então, De formas evolutivas das forças produtivas que eram essas relações se convertem em entraves. Abre-se, então, uma época de revolução social (MARX, [1959] 2007, p. 45).

Mas, o que seriam estas misteriosas “forças produtivas materiais” que ao se chocarem com as relações sociais tornam possível que uma sociedade mude? Para nosso autor, elas seriam constituídas pelos fatores que uma vez combinados são a base que permite a produção social da vida: a natureza, a força de trabalho e o conjunto dos saberes e formas práticas desenvolvidas, através das quais essa força de trabalho age sobre a natureza.

Para que possamos entender essa afirmação precisamos voltar a uma premissa de nosso querido autor. Trata-se da produção da vida e não da mera existência, uma vez que por nossa simples existência somos parte da natureza, nada mais que um amontoado vivo baseado no carbono e outras substâncias. Nesta condição garantimos nossa existência nos apropriando de elementos naturais de forma a garantir a vida e a reprodução. Nossos antepassados dão um passo além das barreiras naturais, tornando-se a única espécie que altera elementos da natureza através do trabalho para garantir o necessário à sua vida, produzindo instrumentos como complementos à nossa precária anatomia natural. 

Só assim podemos falar em três fatores (natureza, força de trabalho e saberes\tecnologias). O ser humano age sobre a natureza transformando-a e, assim, desenvolve formas de trabalho e instrumentos. Não é apenas a natureza que se transforma, a própria força de trabalho resulta alterada deste processo. Um ser humano que apenas arranca raízes da terra é um coletor, um que planta a mandioca não apenas alterou o ciclo natural, mas tornou-se um agricultor.

Antes de entrar propriamente em nosso tema devemos considerar algo importante. Quando falamos, como Lukács, em superar barreiras naturais, devemos considerar que superamos barreiras sem nunca deixar de ser parte da natureza, como se sobre nosso ser natural se constituísse um ser social e histórico e o que resulta é uma síntese e não uma substituição.

Então, os seres humanos produzem sua vida agindo sobre a natureza com os meios que desenvolveram até então. A combinação destes fatores e seu grau de desenvolvimento, segundo Marx, determinará a forma das relações sociais. E aí se encontra nossa suposição: o ser humano age sobre a natureza transformando-a e transformando a si mesmo ao desenvolver os meios pelos quais produz sua vida dentro de certas formas das relações sociais de produção. Como as forças produtivas estão inevitavelmente se desenvolvendo, em certo momento, entram em contradição com as relações sociais.

Marx está pensando no surgimento histórico da sociedade capitalista (uma forma particular de relação social de produção e forma de propriedade) e observa claramente que as forças produtivas desenvolvidas no feudalismo já vão muito além das relações feudais. No entanto, como sabemos, a preocupação dele não é meramente histórica, mas está de olho na forma como a sociedade que naquele momento estava surgindo, ao se desenvolver, produziria a mesma contradição tornando, assim, possível uma nova sociedade. No mesmo texto sentenciará de forma um tanto melancólica que nenhuma sociedade nova surge antes que se desenvolva no seio da sociedade antiga as condições materiais para tanto, nem surgirão novas relações sociais antes que a velha sociedade desenvolva suas forças produtivas ao máximo.

Aí começam nossos problemas. Como medir e constatar este máximo? Não adianta procurar na comparação quantitativa do tipo “tínhamos tantas indústrias antes e agora temos mais”, “o PIB multiplicou”, “a área plantada cresceu”, “o comércio bateu seus recordes” e outras coisas que encantam economistas tecnocratas como satirizava nossa querida Maria da Conceição Tavares. Temos que olhar para a expressão deste desenvolvimento em contradição com as relações sociais de produção existentes.

Para tanto, devemos voltar a algo aparentemente óbvio. Os seres humanos se relacionam para produzir a vida, mas quando a contradição entre as forças produtivas e estas relações se apresentam, a reprodução é prioritariamente das relações e não da vida. Todo o esforço da humanidade garante que se reproduzam as condições para que a acumulação de capitais continue funcionando, no entanto, isto se dá cada vez mais destruindo as forças produtivas ao contrário de as desenvolver, ameaçando a própria vida.

Neste caminho, devemos olhar para as forças produtivas e ver como se apresentam depois de cada ciclo econômico governado pela acumulação capitalista. Comecemos pela natureza. O capital se apropria da produção de valores de uso e os transforma em produção de mercadorias e de mais valia.  Sob esta forma, como argumentou criativamente Mészaros (2002), o valor de uso fica subordinado ao valor de troca e ao valor. Um produto para satisfazer necessidades humanas deve durar mais, uma mercadoria para satisfazer as necessidades da acumulação deve durar menos. A velocidade que o capital extrai os elementos da natureza torna-se maior que o tempo que a natureza leva para repor tais materiais, supondo que sejam renováveis.

Nosso planeta é um circuito fechado, os elementos que o conformam e que datam da formação do sistema solar e dele próprio, a terra, as rochas, a água, a atmosfera, apresentam-se em uma certa quantidade há cerca de quatro bilhões de anos. Marx, nem ninguém no século XIX, podia supor que esta contradição se apresentaria como esgotamento de recursos ou, menos ainda, inviabilidade da reprodução da vida por mudança significativa no equilíbrio da natureza que suporta a vida humana. Mas, é exatamente isso que o máximo desenvolvimento das relações de produção de tipo capitalista está produzindo.

Quanto à força de trabalho, a contradição se expressa de forma brutal. O cerne do problema está no fato que a acumulação de capital se apropria da força de trabalho tornada mercadoria, mercadoria essencial ao processo de valorização, de maneira paradoxal. Apesar de ser a fonte do mais valor (capital variável), o capital tende sempre a investir mais em capital constante a fim de aumentar a produtividade do trabalho, alterando a composição orgânica do capital. Para que esta mercadoria essencial esteja disponível, o capital, através de suas personificações, expropria constantemente os produtores diretos formando uma massa colossal de despossuídos, da qual se apropriará, cada vez mais, de uma parte menor, aumentando constantemente a superpopulação relativa.

Esta enorme massa de expropriados é benéfica ao processo de valorização, mas em certo ponto torna-se um enorme problema e passa a ser destruída de forma sistemática, através das crises, das guerras, das doenças ou da miséria, contida pela crescente população carcerária, eliminada nas periferias pela polícia ou pela fome, vagando em navios e embarcações precárias sem ter onde chegar e não podendo voltar de onde saiu.

O fator mais difícil de ser visualizado, mas talvez o mais claro, é a tecnologia, entendida como o conjunto de saberes, práticas, instrumentos e tudo que age como mediação do trabalho. Na aparência nunca a tecnologia se desenvolveu tanto e tão rápido. No entanto, aqui também, temos que voltar ao óbvio. A tecnologia é uma mediação entre o ser humano e a natureza para garantir a vida, mas sob as determinações das relações capitalistas ela serve ao processo de valorização, aumentando a produtividade do trabalho (alterando a composição orgânica do capital), diminuindo o tempo de vida útil das mercadorias (dilapidando a natureza), diminuindo os ciclos de produção e realização do valor (meios de transporte, comunicações, novas formas de energia e de materiais, etc.). O milho, alimento ancestral de nossas terras, tinha como qualidade ser a base para novas plantações e reprodução de alimentos. Sob a tecnologia capturada pelo capital, sua principal qualidade é não servir como semente, alimentando o monopólio e servindo de matéria prima para imitação de comida.

Quando olhamos as forças produtivas em seu atual estágio de desenvolvimento e a situação da humanidade, salta aos olhos a contradição. Somos oito bilhões de pessoas no mundo, vivendo em um planeta que tem uma enorme quantidade de recurso que se bem cuidados podem garantir os elementos que uma vez transformados podem satisfazer muitas vezes as necessidades de todos por muito tempo, até o sol consumir todo o hidrogênio, crescer e nos engolir daqui a uns cinco bilhões de anos. Então, por que quase 10% da população do planeta passa forme, metade da população mundial vive na miséria, milhares de pessoas em todo mundo morrem de doenças curáveis? Não temos a tecnologia e o conhecimento necessários?

Parece evidente que podemos garantir a vida com o grau de desenvolvimento atual das forças produtivas, mas não mantendo as atuais relações sociais de produção e as formas de propriedades a elas associada. O que vai nos matar não é a crise ambiental, é o capitalismo.

Mas, se isso é verdade, cadê a época de revolução social que deveria se abrir? Bom, aí nosso problema ganha uma nova dimensão. Há uma diferença essencial entre as condições que tornam possíveis os câmbios históricos e as condições para efetivá-los. As relações sociais que já travam as forças produtivas e ameaçam a vida são a expressão de uma intencionalidade histórica, de uma classe dominante que quer e precisa manter estas relações, tornando-se um entrave universal, assim como a mudança revolucionária só pode se expressar no terreno histórico através de um sujeito social que se apresente como portador de uma emancipação universal.

E onde está este sujeito? Bom, aí você tem que assistir o Café Bolchevique especial e dar uma olhada no que a Virgínia Fontes tem a dizer.


Confira o Café Bolchevique especial com Virgínia Fontes, na TV Boitempo:


Confira o Dossiê Enfrentando a crise climática, no Blog da Boitempo:


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Mauro Iasi professor aposentado da Escola de Serviço Social da UFRJ, professor convidado do programa de pós-graduação em Serviço Social da PUC de São Paulo, educador popular e militante do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente. Na TV Boitempo, apresenta o Café Bolchevique, um encontro mensal para discutir conceitos-chave da tradição marxista a partir de reflexões sobre a conjuntura.

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