Marxismo, classe e identidade

A classe trabalhadora tem uma porta aberta para a conexão com a universalidade que falta a outros movimentos de caráter emancipatório.

Foto: Nick Fewings (Unsplash)

Por Luis Felipe Miguel

Durante muito tempo, os movimentos políticos baseados na identidade se alinhavam à direita do espectro político, muitas vezes na extremidade direita – nacionalismos exclusivistas, xenofobismos, fundamentalismos religiosos, supremacismo branco, sionismo, grupos misóginos hoje definidos como red pill e assemelhados. Eram reconhecidos como obstáculos à igualdade, à justiça e à construção de uma ordem democrática. Mas não é de hoje que demandas vinculadas à identidade entraram definitivamente para o vocabulário político da esquerda. São demandas que surgem do reconhecimento dos múltiplos padrões de opressão vigentes na sociedade e se propõem alcançar uma democracia mais inclusiva e uma igualdade e uma justiça qualificadas pelo respeito às diferenças.

Diluídas numa prática militante pouco informada, porém, elas levaram por vezes a uma adesão acrítica aos sentidos estabelecidos da própria identidade e mesmo a um tipo de intolerância – aquilo que é por vezes chamado “identitarismo” ou, a partir do inglês, “wokeísmo”. Para liberais progressistas, como Mark Lilla ou Yascha Mounk, os reclamos identitários seriam nocivos por gerar divisões, obscurecer prioridades e, no final das contas, alimentar a mobilização da extrema-direita.

Colocado dessa maneira, parece que as demandas emancipatórias destes grupos deveriam ser silenciadas, em nome do “bem maior”. Não foi outro o sentido das declarações do líder do governo Lula no Congresso, senador Randolfe Rodrigues, após uma série de derrotas em votações importantes, afirmando que era necessário priorizar a agenda econômica e deixar de lado a pauta de costumes – que é, na verdade, uma pauta de respeito a direitos individuais e coletivos. Como se as mulheres, a população negra, os povos indígenas, a comunidade LGBTQIA+, as pessoas com deficiência, todos devessem se acomodar a padrões históricos de opressão e violência, a fim de não melindrar os conservadores.

Mas também se levantam vozes à esquerda que não negam a legitimidade ou a necessidade destas pautas, sem deixar de questionar seu enquadramento. Há, por um lado, o risco de reificação das identidades, que ignora o que elas de fato são, “abstrações que devem ser explicadas em termos de histórias materiais específicas”, como disse Asad Haider. Por outro, ocorre a captura de seus horizontes por um imaginário meritocrático, acomodado às estruturas de desigualdade do capitalismo, nos moldes daquilo que Nancy Fraser batizou como “neoliberalismo progressista”.

Na verdade, todo pertencimento político é, em alguma medida, identitário. Por vezes, um pertencimento exclusivamente programático, construído pela adesão a um projeto de sociedade – como na etapa heroica do movimento comunista internacional. Neste caso, a identidade é mais ponto de chegada do que ponto de partida. Mais frequentemente, porém, há um gancho material, que se torna uma identidade por meio da própria política.

Assim (e sem retomar a distinção algo mecânica entre classe em si e classe para si, tal como elaborada pelo próprio Marx em Miséria da filosofia), a constituição da classe operária como sujeito político depende da construção de uma identidade comum. Indispensável para a ação coletiva de qualquer grupo, esse passo é ainda mais fundamental para os dominados, cujas vivências são desvalorizadas de forma permanente e que encontram, na estrutura social, estímulos para uma identificação simbólica com seus dominadores.

Mas há diferenças entre a maneira pela qual a classe trabalhadora constituiu historicamente sua identidade política e aquela de outros grupos dominados. Os trabalhadores são definidos por algo que é um atributo comum da humanidade: o trabalho, isto é, a capacidade de agir e transformar o mundo material que nos cerca. Ou seja, a classe trabalhadora apresenta como seu atributo peculiar aquilo que, como atributo geral, define a humanidade enquanto tal. Por isso, ela teria por projeto, ao menos na visão inaugurada por Marx, a extinção de sua própria peculiaridade, com o surgimento de uma sociedade sem classes.

As demandas dos outros grupos subalternos são diversas. Eles desejam ser integrados de maneira plena à humanidade comum, mas não se definem pelo que define essa humanidade. Podem ambicionar que seja eliminada a hierarquização das diferenças e mesmo, em certas leituras, também a relevância social das identidades, como no feminismo que propunha uma sociedade sem gênero ou no antirracismo voltado a uma sociedade de color blindness, mas mesmo isso não equivale ao apagamento de suas peculiaridades. E, hoje, com a popularidade das visões associadas a uma política da diferença, em que ela é valorizada em si mesma, a distinção com o projeto de superação das classes é ainda mais marcante.

Não se trata de recusar importância ou mesmo centralidade a outras demandas, mas de reconhecer que a pauta de classe não pode ser secundarizada na esquerda. A classe trabalhadora tem uma porta aberta para a conexão com a universalidade que falta a outros movimentos de caráter emancipatório. Uma situação que se agrava com a reivindicação cada vez mais particularista, presente nas compreensões correntes, nas disputas políticas, de “lugares de fala” privilegiados e mesmo monopolísticos.

A discussão é complexa e tem múltiplas facetas, mas é difícil recusar pelo menos uma conclusão: a pluralização das agendas emancipatórias da esquerda é rica e necessária, mas a deriva identitarista, sem uma reflexão mais aprofundada sobre a relação entre as diferentes formas de dominação, pode levar à acomodação com as estruturas vigentes, inibir a construção de um projeto comum de sociedade, até mesmo de alianças pontuais, e redirecionar boa parte das energias políticas para as batalhas fáceis dentro do próprio campo progressista.


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Ao longo dos nove capítulos, o autor cruza diferentes temas da tradição marxista com o campo da ciência política, como as classes sociais, o Estado, o gênero, alienação e fetichismo e muitos outros. Em contrapartida, demonstra a importância de uma abertura do próprio marxismo ao diálogo com a produção contemporânea da ciência política. Com isso, ao mesmo tempo evita o dogmatismo e abre caminhos para a pesquisa em ambos os territórios dos quais se propõe a tratar.

Marxismo e política: modos de usar, de Luis Felipe Miguel, tem apresentação de Andréia Galvão, orelha de Leda Paulani e capa de Daniel Justi.

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Luis Felipe Miguel é doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), professor titular livre do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Autor, entre outros livros, de Democracia e representação: territórios em disputa (Editora Unesp, 2014), Dominação e resistência: desafios para uma política emancipatória (Boitempo, 2018) e O colapso da democracia no Brasil (Expressão Popular, 2019). Também é coautor, junto com Flávia Biroli, de Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014). Colaborou com o livro de intervenção O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil (Boitempo, 2018).

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