Condomínios: a utopia da burguesia como distopia social na peça “Ilhas Tropicais”

Uma peça que combate sem trégua, com atuações equilibradas e consistentes, os deuses paralisantes encarniçados em nos manter numa abjeta servidão em nome do luxo, da segurança e do dinheiro que, olhados reflexivamente, nos revelam o nosso vazio, o nosso medo e a nossa dependência. Um sonho que não é o nosso, mas de uma “elite” que precisa ser extinta.

FOTO: MARCELO VILLAS BOAS

Por Douglas Barros

Se se procura o significado de teatro, hoje dissimulado pelo predomínio da imagem numa sociedade espetacular,1 constata-se que ele é fonte de uma formação profunda. Pelo seu ofício se apresenta toda vida espiritual da humanidade e palpitam as mais elevadas dúvidas acerca do seu destino. É um ofício sério, às vezes delimitado pelo amor, outras pela liberdade. Ferve na revelação da tristeza do enamorado, eclode na recusa da noiva, chispa no grito de não dado pelo escravo, se ergue na luta da irmã pelo enterro do irmão, palpita no peito jovem buscando vingar a morte do pai. O teatro, na sua recusa e liberdade, está onde a verdade se revela dura.

Por isso, desde que a modernidade mostrou sua face, se tenta dominá-lo, esvaziá-lo, comerciá-lo, mas as brechas causadas pelo seu exercício nunca são tapadas pela mediocridade. Assim, se o teatro apresenta a crueza da verdade, a peça Ilhas Tropicais é uma de suas expressões. Com direção de Lee Taylor, diálogo dramatúrgico de Jô Bilac e colaboração de Alex Araújo, o “Condominium Ilha Tropical” é a representação fiel de uma sociedade em colapso cuja solução possível, no imaginário da classe dominante, se baseia em muralhas erguidas, sistema de vigilância 24 horas, policiamento sete dias por semana, autocuidado, autocontrole e egoísmo.

Contando com excelentes atuações, a peça gira em torno de personagens alegóricas e o pano de fundo é um empreendimento “dos sonhos” para uma classe privilegiada, territorialista e civilizada, disposta a eliminar o que põe em risco sua fantasia. Eliminar? Melhor: matar, mas, é claro, sem sujar as mãos. Enfim, a utopia dessa elite só se realiza num mundo de angústias compartilhadas pelo medo tornado principal fonte de arrecadação num bilionário mercado da morte. Por falar nisso, em Ilhas Tropicais sabemos que o Brasil é o país que mais faz investimentos militares na América do Sul; 19,2 bilhões de dólares. A utopia da elite é, portanto, a distopia do social.

Ao sentarmos nas poltronas de Ilha Tropical, recebidos por champanhe, num clima ultrajante de festa instagramável, somos convidados a entrar no desejado condomínio da burguesia brasileira.  Um alegre agitador de festas (Federico Torres) nos causa uma sensação de que não há distancias entre ele e nós, mais que expectadores, somos cúmplices do mal gosto e da violência. Fazemos alegremente parte do ritual que quanto mais expõe os dentes, num riso sardônico, mais revela o caráter assassino dessa “elite”. Aliás, a cenografia, iluminação e músicas compõem o enredo, equilibram cenas, dão impacto às atuações e nos jogam como colaboradores em tudo.

Uma CEO (Vandressa Moço), da construtora e incorporadora Garden, irrompe – mistura de cantora sertaneja e gospel, apoiadora da bancada do boi, da bala e da bíblia – ela expõe a solução burguesa: “somente aqui, no Condominium Ilha Tropical, vocês têm a garantia de segurança máxima para os moradores: Foi isso mesmo que eu disse: Segurança máxima!”, brada no microfone, “Não acreditam na competência da nossa segurança? Então, chamem os vagabundos, que eles venham e tentem invadir um de nossos apartamentos ou sequestrar um de nossos moradores”. O mote é revelado, trata-se daquilo que sempre foi assumido pelos proprietários: o país é uma guerra e a segurança é uma conquista.

A lógica do condomínio,2 a construção de espaços exclusivos e territórios racialmente configurados, deita suas raízes na formação do Brasil. A exclusividade fundada na propriedade da terra tem seu novelo inscrito nas capitânias hereditárias de modo que as feridas coloniais mais que simbólicas são materiais ao organizarem o nosso espaço territorial. O condomínio, fechado à sociedade, é só o ápice de uma lógica que faz com que a violência esteja na atmosfera da sociabilidade brasileira. É uma questão de raça e classe. Algo que, com humor brechtiano, Ilhas Tropicais não se furta a mostrar.

FOTO: MARCELO VILLAS BOAS

A peça consegue ser política sem recair no tom panfletário, escapa aos lugares comuns ao traçar solilóquios fundamentais e iluminar uma dimensão do cotidiano no qual a violência se tornou atmosférica, isto é, naturalizada.3 Com música, Além do horizonte ,de Roberto Carlos, encerra-se então o leilão de apartamentos no condomínio de Ilha tropical e uma moça (Jocasta Germano) ergue-se com uma caveira iniciando uma das falas mais marcantes da peça, auxiliada pela iluminação perfeita que consegue dar dramaticidade e força à cena: “O mundo é uma sala de espelhos, refletindo o rosto monstruoso da Medusa”, diz ela, “Não há escapatória do medo. Olhe nos olhos e encare a Medusa. Torne-se a Medusa. Tome pra si sua boca animalesca, suas presas sangrentas, suas garras, seus cabelos de serpentes, seu horror! Eu Medusa! Eu te petrifico! Meu medo é combustível da minha guerra!”

O medo é o combustível não só da guerra, mas dos investimentos. Em Ilhas Tropicais vemos a simbiose entre a lógica securitária e a lógica do lucro sustentada pelo riso cordial que não esconde o canino afiado da “elite”. Uma relação governada pela herança colonial atada às instituições de defesa da propriedade. O medo, que guia a guerra, não só oculta sua violência, ele é fundamental para naturalizá-la. Sob esta perspectiva, a racialização cumpre papel decisivo que se evidencia na peça.

O condomínio é, assim, a tradução dos sonhos ancestrais dos colonizadores, agora realizado por seus herdeiros, num território exclusivo e com luxo olímpico. A exclusão territorial posta, como proposta utópica por essa canhestra elite, aprofunda a desigualdade social que organiza a violência e tem no racismo seu solo. Mas tudo tem que ser feito sobre sorrisos, aplausos e adesão. Como diz a patroa (Jocasta Germano):

“Esse é o puro mel de extrato cultural da terra Brasilis! E a favela nada mais é que o espelho dessa gente que se joga e se balança no ônibus lotado e leva a vida na alegria, cantando seu sambinha, lata d’água na cabeça e sorriso banguela no rosto!… essa gente alegre por natureza, com suas vidinhas simples, dignas, trabalhando sem reclamar, fazendo do carnaval o tempero desse país!  Olha,  de verdade: sou fã dos favelados!”.

Alexa (Victória Cavalcante):

“Então, a senhora é minha fã, eu sou favelada, senhora.”

Esse trecho revela algo fundamental acerca da formação brasileira: a relação de classe – patrão-empregado, senhor-escravo – impressa na cordialidade que mostra os dentes de raposa ao sorrir. Uma relação marcada por uma violência invisível porque atmosférica. Uma violência sempre inominável por afogar ferozmente qualquer elaboração simbólica, para além do regime, na falsa alegria. Uma violência sistêmica e respaldada por uma normatividade fundamentada na exclusão racial, invisibilização do racismo e exploração de classe.

FOTO: MARCELO VILLAS BOAS

Uma leitura do racismo brasileiro

Ilhas Tropicais não oculta suas influências fanonianas. São elas, me parece, que evitaram a recaída no paternalismo progressista, comum em peças que envolvem a temática racial. Saindo dos lugares fáceis, ela mantém a tensão do texto até o fim. Ao dar voz à elite – algo da ironia machadiana – revela o fundo que sustenta a violência consagrada do nosso dia-a-dia.

A história dos três porquinhos narrada pela empregada Alexa (Victória Cavalcante) é viva. No fim da história ela brada: “E o melhor, é que vocês manterão distância da bandidagem! E não sujarão suas mãos de sangue como fizeram seus ancestrais. Porque como vocês sabem: o importante é manter as mãozinhas bem Lim…pinhas! Isso! Muito bem, crianças!”, eis o que restou do sangue ancestral dos colonizadores: uma classe, igualmente violenta na defesa de seus privilégios, que hoje organiza milícias particulares, em territórios exclusivos, para defendê-la sem sujar as mãos. Com essa conclusão se desnuda a estrutura moldada pelo racismo classista do Brasil.

O condomínio Ilhas Tropicais, portanto, mais do que um espaço exclusivo é a realização objetiva de um racismo que nunca ocultou seu caráter higienista e eugenista. E, por isso, a reflexão da peça gira em torno da desmistificação do lugar da violência. Não a violência anunciada pelos programas policialescos, não a violência gerada pelo medo em torno da família e da propriedade. Mas aquela visceral e silenciosa; a da paz sangrenta que empilha 60.000 corpos por ano – nem preciso dizer qual a cor da maioria destes.  

A pesquisa dramatúrgica parece ter se dado conta daquilo que estruturou nossas classes abastadas: uma violência da linguagem que opera a naturalização da desumanidade daqueles que foram marcados pela racialização. Tudo sob muito riso – aquele dengo anunciado pelo conservador Gilberto Freyre em sua célebre obra. O racismo à brasileira: uma construção socialmente objetiva que regula uma gramática possibilitando a construção imaginária de cidadãos de segunda classe facilmente matáveis. Trata-se de nossa sui generis herança colonial.

FOTO: MARCELO VILLAS BOAS

Nessa sociabilidade que insulta a dignidade e atenta à vida naquilo que ela tem de mais preciosa: o lugar do racializado é o da exclusão, um lugar-de-fora dos espaços de reconhecimento e de troca simbólicas ocupados pelas elites coloniais, seus herdeiros e seus cupinchas. Assim, nosso colonialismo dispôs de um lugar identificatório buscando imprimir uma redução subjetiva que naturalizasse a diferença racial: um essencialismo imposto ao outro e a si mesmo: branco-cristão, universal; negro, indígena, amarelo, vermelho, muçulmano, palestino, particulares.

Essa violência na construção simbólica do outro é objetivamente posta; organiza a diferença (racial) para explorá-la, eliminando a possibilidade de uma partilha comum. Mais do que uma violência objetiva, o colonialismo é uma violência subjetiva que não permite aos racializados se reconhecerem enquanto sujeitos; ele constrói os lugares definidos por uma linguagem da exclusão. O condomínio é a produção de sua objetividade e a peça Ilhas Tropicais é sua realização: a revelação do que estruturou nossa burguesia, o colonialismo.

FOTO: MARCELO VILLAS BOAS

Mas, a sétima cena nos revela algo importante: há uma fissura no solo do condomínio que revela um buraco cheio de sangue. A subsíndica (Dandara Terra) exclama:

“O que encontraram no buraco foi uma coisa preta, estranha, parecida com petróleo. Mas examinaram e chegaram à conclusão de que aquele troço é sangue. Imagina? Um monte de sangue coagulado brotando do chão. Deram como hipótese que talvez algum hospital antigamente poderia ter jogado sangue vencido de modo clandestino. Mas foi aí que o negócio ficou ainda mais doido, gente. Retiraram uma série de amostras e descobriram que cada uma era de uma época.”

É então que toda violência para consolidar o sonho de nossas elites parece que não restará impune. O sangue anuncia algo; desestrutura a naturalização da violência que talvez sirva para encarar a necessária morte desse mundo. Aquilo que brota no buraco do condomínio de Ilhas Tropicais, em meio ao concreto e ao luxo, parece anunciar a consciência de que isso tem que acabar. Não se sabe, porém, que morte se anuncia; se dá classe que habita o condomínio ou de todos nós; os expectadores, aos risos incômodos, nas poltronas do teatro.

A violência simbólica, que configura a dimensão normativa da herança colonial, é subvertida na cena. No sangue que brota da fissura em meio ao concreto, a violência se torna a dos ancestrais racializados que pereceram na escravidão para que o condomínio, utopia da elite brasileira, fosse uma possibilidade. A violência se torna a da terra, dominada e agredida em nome do lucro, que parece anunciar a desforra. O sangue anuncia que os inimigos da vida em comum sempre tiveram a obsessão de submetê-la a seus fins imediatos, esmagá-la sob seu deus: o dinheiro. Mas, “Já Basta!”

Ilhas Tropicais, ao nos presentear com a representação dessa elite, comete o sacrilégio e a blasfêmia que só o bom teatro possibilita. Uma peça que combate sem trégua, com atuações equilibradas e consistentes, os deuses paralisantes encarniçados em nos manter numa abjeta servidão em nome do luxo, da segurança e do dinheiro que, olhados reflexivamente, nos revelam o nosso vazio, o nosso medo e a nossa dependência. Um sonho que não é o nosso, mas de uma “elite” que precisa ser extinta.

Notas
1 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Tradução Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
2 DUNKER, Christian. Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo, 2015.
3 A referência aqui é Dunker.


***
Douglas Rodrigues Barros é psicanalista e doutor em ética e filosofia política pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Professor filiado ao Laboratório de experiências coloniais comparadas, ligado ao Instituto de História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor na pós-graduação em filosofia da Unifai. Investiga principalmente a filosofia alemã conjuntamente com o pensamento diaspórico de matriz africana e suas principais contribuições teóricas no campo da arte e da política. Escritor com três romances publicados, também é autor dos livros Lugar de negro, lugar de branco? Esboço para uma crítica à metafísica racial (Hedra) e Hegel e o sentido do político (lavrapalavra).

Deixe um comentário