Zona de interesse e o exercício dos sentidos

Zona de interesse é um exercício dos sentidos. Um exercício dos sentidos quanto ao terror que escapa a todo sentido, tanto aos sensoriais quanto à razão. Recusando a mostrar em imagens as pessoas transportadas como carga, envenenadas por gás, queimadas, trabalhando sob tortura, regularmente fuziladas, o filme não deixa dúvidas de que tudo isso acontecia. É real sem apelar aos artifícios de um realismo informativo.

Por Herik Rafael de Oliveira

1.

Enquanto Hedwig Höss cultiva um jardim sem ervas daninhas, Rudolf Höss cultiva cadáveres. A distinção de interesses é aparente diante da totalidade, que absorve os dois. No essencial, operam na mesma zona indissociável; não são as cinzas dos exterminados que adubam os canteiros férteis? Não precisamos que o enredo de Zona de interesse nos conte didaticamente que é o pó de corpos calcinados o que se usa para fertilizar o jardim, a mera suposição de que possa ser essa a origem já explicita que tudo o que se desdobra no sistema nutrido pelo extermínio está sob suspeita.

Convém recordar que aquela imagem não se reduz a uma metáfora. Yankel Wiernik (1973), sobrevivente do campo de Treblinka, contou que corpos de prisioneiros já em avançado estado de decomposição foram exumados por escavadeiras, queimados e as cinzas tiveram de ser misturadas à terra pelas próprias mãos dos outros encarcerados para apagar os vestígios do crime e, nessa porção de terreno, aqueles forçosamente incumbidos das atividades de jardinagem foram obrigados a cultivar tremoço, que cresceu muito bem, assim como as flores de Hedwig.

É umbilical o vínculo entre as atividades do terror e as outras atividades; as mais estruturais, as mais prosaicas. Em Zona de interesse, o zelo com que Rudolf e Hedwig desempenham suas atividades é índice do grau de reificação do espírito obcecado pelo fazer; o paroxismo é mostrado quando outro oficial nazista, um camarada do partido, temeroso com a promoção de Rudolf, receia que não restem mais pessoas para servir de mão de obra nos campos de trabalho forçado, dado o esmero e a eficácia de Höss em exterminá-las. Se, porém, realmente houver algo como uma graduação da reificação, a reprodução social que dela precisa depende tanto de suas expressões mais discretas quanto absolutas.

Nada permanece incólume numa sociedade que tenha racionalizado a morte de tal modo. Cada momento parcial do sistema carrega necessariamente a assinatura dessa racionalização; a possibilidade da diferença qualitativa está na negatividade diante das expressões determinadas dessa assinatura.

Não apenas a reorganização industrial, em que o negócio lucrativo dos campos e a expansão nazista para leste atrai magneticamente as empresas (a Siemens é lembrada em Zona de interesse). Não apenas o arranjo mais ou menos informal de distribuição do butim por meio do qual cortinas, caiaque, chocolate, batom, roupas e mesmo os dentes dos assassinados são distribuídos diferencialmente (às empregadas, blusas puídas; à patroa, o casaco de pele).

Não apenas as relações mais íntimas, como a hierarquia entre irmãos que abruptamente repete os esquemas do trato dispensado aos subalternizados quando um dos mais novos rebentos dos Höss é trancado pelo primogênito em uma estufa enquanto este parece mimetizar o som dos gases. Aquela assinatura marcará mesmo o que se chama acaso: termina nas mãos de Hedwig um diamante supostamente escondido em uma pasta de dentes por algum judeu “esperto” e eis que ela encomenda mais pasta de dente na expectativa por mais diamantes.

Advertência a prováveis leituras que se satisfaçam com a interpretação de que o filme acusa o gozo que retiramos dos nossos interesses fúteis sem a dimensão de suas consequências: contra esse tipo de derivação moral psicologista talvez uma das radicalidades do filme esteja na ideia de que um sistema social que tenha acomodado tão bem aquele aparato de morte o faz porque a racionalidade desse aparato é a mesma da sociedade como um todo e isso se configura como um complexo, uma zona, que passa a integrar todos os interesses, tenham sido eles modelados especificamente para aquele aparato ou em larga medida preexistam a ele e não guardem nenhuma relação imediata com ele, independente da valoração que se possa fazer desses interesses.

Distinções do tipo interesses fúteis e elevados (expressão de elitismo), necessidades quotidianas e luxos invulgares e mesmo as preocupações que podem ser tidas como patente egoísmo em contraste com outras que são um pouco mais coletivas, essas distinções cuidadosamente delimitadas – algumas fundamentais para a dinâmica das diferenciações de classe – importam pouco da perspectiva da funcionalidade do sistema. Tudo encontra lugar adequado na máquina: a conservação do lar, o cuidado com os filhos, a ambição de progredir no ofício, a vaidade de se vestir como uma imperatriz, a necessidade de orgulhar à mãe, as oportunidades de lucro para as indústrias, a vontade de comer guloseimas, chocolate.

Pressente-se algo de horrível no simples entusiasmo de Rudolf ao encontrar um cão com uma pelagem de cor incomum à raça passeando com sua tutora na rua. Tal pressentimento seria devido ao fato de que o entusiasmo vem de um alto oficial do regime nazista ou porque, na mesma órbita do terror, gravita a totalidade da vida social e aquele afago cochicha algo sobre sua afinidade com o ideal da raça?

A acusação que atravessa sem folga todas as ações na Zona de interesse ecoa as palavras de Theodor Adorno (1993) na Minima Moralia: “Não há mais nada de inofensivo. As pequenas alegrias, as manifestações da vida que parecem excluídas da responsabilidade do pensamento não possuem só um aspecto de teimosa tolice, de um impiedoso não querer ver, mas se colocam de imediato à serviço do que é mais contrário” (p. 19).

Esse é o peso claustrofóbico do domínio de uma ordem totalitária: estão coordenadas as ações que servem diretamente ao sistema, aquelas que são tacitamente cúmplices dele e mesmo as “ingênuas”, bem como estão condenadas as ações que contra ele atentem, condenadas ao revés de seu próprio impulso de oposição. Quando aquela jovem se arrisca, encoberta pela noite, semeando no canteiro de trabalhos forçados maçãs para alimentar os prisioneiros famintos, ela não advinha que, durante o dia, a disputa entre prisioneiros por uma dessas maçãs levará à ordem de um guarda para assassinar por afogamento um dos desordeiros. Esse é o apuro em que se encontra a resistência.

Como é expressivo o fato de, nas duas vezes nas quais ela é mostrada em sua atividade noturna, isso ocorrer imediatamente enquanto adormecem as filhas dos Höss, em uma imagem que recorda o negativo de um filme. A realidade perigosa, figurada na fábula onírica da garota que semeia maçãs e peras nos campos para alimentar os prisioneiros pertence ao sonho da resistência ou ao pesadelo dos nazistas?

Há ainda outro tipo de imagem que também se assemelha àquela com a qual essas duas cenas são retratadas: as imagens de câmeras térmicas, como as usadas atualmente para monitorar a zona de fronteira entre Estados Unidos e México, ou aquelas das miras de drones usados para bombardeios. Um giro se faz para o mais contemporâneo. Sob a vigia dos olhos do presente, aguçados por lentes que veem o calor das coisas, aquela ação da garota que assistimos desenrolar-se com algum êxito (ainda que também trágica) está, de antemão, condenada ao fracasso; o escuro da noite não é mais proteção.

2.

Com certo estranhamento assiste-se ao pai Rudolf Höss embalar o sono de suas filhas lendo o conto de João e Maria. Naquela atmosfera, é como se essa narrativa da tradição oral, significativamente anterior a Auschwitz, tivesse sido composta especificamente como peça de propaganda na dieta ideológica para treinamento dos algozes dos campos de extermínio e daqueles que deveriam conviver com eles (com os campos e com os algozes).

“E a velha sentou-se na tábua, e, por ser bem levinha, Maria a empurrou o mais longe que podia e em seguida fechou a porta rapidamente e colocou a trava de ferro. A velha começou a gritar e a se lamentar dentro do forno quente, mas Maria fugiu correndo dali e a bruxa acabou morrendo queimada”; é este o desfecho que se conhece da versão da história no livro dos irmãos Grimm (2018), logo antes de João e Maria encherem os bolsos com as pedras preciosas e pérolas encontradas na casa da bruxa que planejava devorá-los. No filme, o fragmento que assistimos Rudolf ler é semelhante.

É possível retirar uma consequência teórica do nexo entre esse conto e a era do assassinato industrial em câmaras de gás mais importante que o seu valor como alegoria.

Quem conhecer a Dialética do esclarecimento, de Max Horkheimer e Theodor Adorno, lembrará que, recorrendo à Odisseia, os autores apresentam a tese segundo a qual a barbárie nazifascista é produto do progresso da razão. Retrocede-se aos mitos – uma forma primária do esclarecimento, da razão – para apontar neles elementos de cujo desenvolvimento dependerá o terror levado a cabo na era do capitalismo tardio, como a astúcia, a frieza, o sacrifício, a dominação da natureza, o espírito instrumental.

Se até na saga do Ulisses helênico se acharão traços da racionalidade que desemboca no fascismo, não parece imprudente supor traços semelhantes no conto germânico de João e Maria. Porém, mais importante do que, por exemplo, identificar na saga de João e Maria a evidente presença da astúcia da dominação, compartilhada por Ulisses e intrínseca à história da razão ocidental, é a compreensão de uma filosofia da história, decorrente da identificação de aspectos como esse, para a qual o nazismo não foi um acidente isolado no percurso ascendente do progresso histórico, e, sim, os seus constituintes econômicos, políticos, lógicos e tecnológicos, culturais e psíquicos o antecedem, pois estão inscritos no desenvolvimento da cultura, e o sucedem, enquanto não são socialmente enfrentados – e não foram.

Os interesses que movem as ações das personagens em Zona de interesse não só são completamente conformes à vida de todos sob o capitalismo como não deixaram de existir, embora os objetos para sua satisfação tenham se multiplicado e ganhado novas roupagens.

Algo a mais pode ser dito sobre a fecunda menção daquele conto no filme de Jonathan Glazer sobre o nazismo, algo a respeito da ideologia.

O extermínio em massa, executado como uma política de Estado e operado conforme a lógica de uma atividade econômica, se amparou nas fantasias individuais fermentadas pelos estereótipos coletivamente disseminados em relação aos judeus e aos outros povos perseguidos. Afirmar isso não significa conceder importância equivalente aos elementos individuais em relação aos determinantes políticos e econômicos mais decisivos. Os aspectos individuais são relevantes principalmente na medida em que apontam para o próprio estatuto da ideologia, esta que opera, afinal, na mediação entre os interesses da totalidade social e as necessidades, desejos e impulsos individuais.

Decerto houve (e há) uma espécie de instrução no nazismo realizada nos moldes do que parece ser feito com o conto João e Maria lido para as crianças (mérito do filme é mostrar que essa instrução pode ter a sutileza da demonstração de carinho paternal); ela remete ao treinamento para a dinâmica das perseguições.

Cada um terá de supor desenfreadamente sobre as maldades que sua própria bruxa planeja fazer antes de empurrá-la para dentro do forno; cada um terá de se imaginar sendo lançado às chamas antes de jogar os outros ameaçadores na fogueira e, enfim, poder recolher o espólio que existir. Nesse caso, a ideologia visa penetrar fundo no psiquismo, inscrevendo-se nos conflitos subjetivos, emaranhando-se a toda representação proveitosa, concentrando energia libidinal e atendendo aos impulsos do sujeito. Isso posto, não será difícil enxergar bruxas na expressão socialmente deformada de povos historicamente marcados – não deve ser por acaso que as feições delas, das bruxas, são sempre retratadas de modo disforme, plásticas o suficiente para fazer qualquer um corresponder a elas.

A difusa ameaça onipresente em uma sociedade opressiva deve ser socialmente canalizada e a autorização para o ataque é dada às massas formadas por pessoas que podem até detestar o inimigo comum por razões distintas, mas estão unidos pelo ódio. Quem já não tem minuciosamente compostas essas fantasias, das quais passam a depender intimamente os conflitos da própria psicodinâmica e cujos alvos são apontados pelos poderes dominantes no rol dos historicamente oprimidos, mas tem alguma insatisfação (e a realidade social é profícua em produzir insatisfações) poderá encontrar na variedade de imagens fornecidas pela máquina de propaganda um pretexto barato – como a mãe de Hedwig, que presume que uma vizinha judia, de quem era empregada, deve estar no campo ao lado da casa de sua filha (Auschwitz), afirmando, em tom leviano, que ela estava metida com “coisas de judeus”, coisas bolcheviques. Nesse caso, a ideologia já avançou em externalidade, não passa de uma desculpa.

Apesar de não ser completamente dispensável, aquele tipo de ligação mais específica entre a dinâmica psicológica e alvos socialmente delimitados não é o que prevalece em Zona de interesse e talvez isso seja uma diferença crucial entre um tempo de fornos caseiros e a era da câmara de gás industrial: impera no clima cultural a indiferença, a frieza e a ideologia cínica.

Para alguns não há nenhum interesse especial em quem está sendo fornecido como alvo e não há necessidade de se amparar em nenhum motivo que esteja fora das razões da manutenção da própria existência e das atividades assumidas para animar sua disposição a colaborar com o horror (que, aliás, perde, para essas pessoas, a dimensão de horror). Isso, como forma, está estampado em um filme que trata sobre o holocausto e o faz praticamente sem mostrar judeus.

Nem em Rudolf Höss nem em Hedwig Höss há traços ostensivos de qualquer interesse especial pelos judeus (qualquer fixação, em termos psicológicos), o que é particularmente ressaltado pelo contraste da presença da mãe de Hedwig, cujo interesse nos judeus, manifesto de modo fortuito, já não passa de um subterfúgio e sequer rende assunto. Sobre os judeus, nada tão mais extenso do que a seca frase “Os judeus ficam do outro lado do muro” ouvimos sair da boca de Hedwig, em resposta à questão da mãe sobre haver judeus trabalhando na casa. Rudolf, tomado por seu próprio ofício, chega a ensaiar mentalmente a operação necessária para matar com gás os outros nazistas presentes em uma festa.

O fundamento social para um filme que, ao tratar da dominação como conteúdo, renuncia, em sua forma, à retratação imagética dos dominados sem que isso ceda em radicalidade a negação da dominação é o fato de tal dominação ter sido objetivamente indiferente à figura de quem é dominado. Isso não significa que não houvesse alvos designados (embora seja necessário recordar que, a partir dos judeus, o plano nazista abrangia progressivamente outros grupos), mas que os objetos da dominação foram tratados como material humano fungível, foram reduzidos à “carga”, como é dito em uma cena quando os representantes da empresa Topf & Söhne explicam entusiasticamente o plano de funcionamento dos crematórios.

Isto é, o fundamento social do filme é o fato de tal espécie de dominação ocorrer em uma era na qual se engendra a possibilidade de guerras serem travadas sem sequer haver ódio,1 ou seja, como protocolo de medidas técnico-administrativas, como um trabalho, implicando certa redefinição do papel da ideologia e do lugar das afecções individuais e inclinações coletivas. Mais do que nunca, nessa era, o conto de João e Maria realmente é apenas uma história para criancinhas ainda não adestradas na indiferença e na razão instrumental, que apenas operem segundo a lógica de conservar o que amam e destruir o que odeiam, mas ainda não estão simplesmente predispostas a exercer o extermínio apático.

Talvez a opção por dar rostos e corpos, marcas humanas, para aqueles que foram tornados objetos de uma ação tão mecânica – um recurso comum em filmes sobre a temática e que apela ao humanitarismo – guarde o risco de trair a verdade de que sob o terror eles foram tratados como material para descarte.

Pense-se naquela cena final d’A lista de Schindler, de Steven Spielberg (1993), quando o espectador é instado a acompanhar o vagar de uma garotinha em meio às mil atrocidades cometidas contra os judeus porque tudo é preto e branco, exceto o casaco vermelho da menina, que a singulariza de modo desesperado como uma tentativa de sensibilizar para o sofrimento de uma, representando o sofrimento geral, pois este atingiu um ponto incomensurável.

Zona de interesse é a antítese dessa cena (e isso não é uma comparação valorativa entre as duas obras). Das vítimas, em Zona de interesse, o espectador do filme sabe apenas dos gritos, que tendem a não ser suficientes para singularizar um indivíduo e que sequer nos particularizam como humanos, afinal os compartilhamos com as outras espécies como modo de exprimir o sofrimento. Desse modo, exprime-se, sem concessões, a desumanização efetivada pelo nazismo. Zona de interesse é prova de que, sem desviar o olho dos vencedores, é possível enxergar e ouvir a história dos vencidos.

3.

Zona de interesse é um exercício dos sentidos. Um exercício dos sentidos quanto ao terror que escapa a todo sentido, tanto aos sensoriais quanto à razão. Recusando a mostrar em imagens as pessoas transportadas como carga, envenenadas por gás, queimadas, trabalhando sob tortura, regularmente fuziladas, o filme não deixa dúvidas de que tudo isso acontecia. É real sem apelar aos artifícios de um realismo informativo.

Em tempos de saturação do olhar por imagens em excesso e da imagem como evidência cabal do crime, essa recusa pode significar algo como não deixar a verdade nem apenas à guarda daqueles que a tiverem visto nua com os próprios olhos nem daqueles que, predispostos a desacreditá-las, exigem provas visuais, tornando fácil demais a disputa para os adeptos do ver para crer.

Quando perecem as últimas testemunhas oculares da barbárie, que nos legaram seus testemunhos verbais – eles mesmos desde sempre descredenciados pelo negacionismo –, mas que ainda podiam abalar a indiferença não totalmente glacial de alguns, torna-se ainda mais desgraçada a tarefa histórica de produzir memória e consciência do horror. Zona de interesse responde a essa tarefa enfrentando esses limites históricos.

Não parece ser por comiseração, ou pudor, que os olhos são “poupados” daquelas imagens em Zona de interesse. Afinal, de outros sentidos, em especial da audição, o filme demanda muito, requer nada menos que um tipo de práxis: constante, consciente, exigente. Em rigor, os olhos também não são protegidos de nada, e, sim, eles são constantemente desafiados, são instigados a desconfiar do visto: assistindo a uma criança brincar no seu quarto (o filho pequeno dos Höss), o espectador é exposto a uma imagem sonora de um prisioneiro implorando por sua vida após a ordem para ser morto por afogamento. Lamentos de dor, ruídos de máquinas, latidos de cães e tiros recorrentes perfuram a amenidade na qual os olhos poderiam descansar assistindo diversões na piscina e cenas do cotidiano doméstico. Um ruge-ruge assombroso interdita o sono do público no cinema.

As imagens do horror não são dadas prontas ao espectador e isso implica, ou pode implicar, uma difícil demanda para quem assiste: imaginar – criar imagens – o inimaginável ou rememorar as imagens históricas e se deter diante desse impasse. Tal como somos levados a supor o cheiro dos corpos incinerados que invade a residência ao assistir a mulher que se apressa para fechar a janela ao se dar conta do odor que polui a noite enquanto ela costura, também essa complexa relação entre a imaginação e os sentidos apoiados uns nos outros (imagem-olfato; audição-imagem) nos é demandada constantemente.

Sem serem prescritas, imagens são provocadas oferecendo nada mais que seu contorno sonoro. As percepções são embaralhadas a ponto de vermos flores – as quais, em close, parecem estar diante dos nossos narizes – e isso evocar um cheiro nauseante.

Essa relação de tensão entre sentidos está na contramão da fórmula audiovisual de integrar por completo imagem e som para ecoarem uns aos outros e duplicar a mensagem, assegurando que não haverá incerteza sobre seu significado, até o ponto de não ser incomum haver sons e imagens que, uma vez separados, não sustentam nenhuma existência autônoma, perdem significativamente seu poder, escancarando a debilidade e a ausência de sentido somente disfarçável por meio da repetição em mais de um registro sensorial. Sem exercitar a contradição, a complexidade, fica atrofiada a capacidade reflexiva, em seu contato com as impressões da realidade.

Golpeando aquele esquema de percepção, Zona de interesse abre-se para a atividade do espectador e a exige, deixando lacunas para imagens se sobreporem, em choque, às imagens que o filme, como filme, não pode deixar de oferecer. Essas lacunas de fundo também são um espaço aberto para se moverem as imagens do horror mantidas no repertório cultural, nunca isentas do risco do esquecimento. Aquelas imagens que ficam à cargo de quem assiste poderão entrar em tensão com as outras (intrincadas, polissêmicas) apresentadas na tela, permitindo que estas sejam complexificadas na relação específica com sujeitos.

Certamente não é pouco provável que tais lacunas sejam preenchidas com os clichês repisados pela indústria cultural, mas o fato de haver essa abertura já não se contrapõe à tendência do esquematismo preparando de cabo à rabo para domesticar a percepção e o entendimento? Clichês também podem ser rememorados e ter sua paralisia estremecida ao serem reposicionados em outro tipo de experiência.

A práxis demandada da audição do espectador entra em confronto com o fato de ser justamente o ouvir aquele sentido que os personagens têm de ignorar absolutamente em Zona de interesse. Na personagem principal, Hedwig, não fica evidente nenhuma resposta aos dados da realidade da barbárie que penetram pelos ouvidos, nenhum vestígio de reflexão desencadeada, sequer uma reação involuntária (o que demonstra vigilância ou total incapacidade de percepção); o cão da casa Höss mostra-se mais perturbado.

Na trama do filme não há subterfúgios eficazes contra a soada do terror. Os paredões altos que encarceram os prisioneiros, anteparos eficientes para o olhar, não tapam o som. Nem o perfume nem o colorido das flores abafa os gritos de dor. Não há videiras que possam ser plantadas junto aos muros para calar os estampidos das armas. Quanto a isso, Zona de interesse parece proclamar um aviso: poderás preencher teu jardim com a mais edênica sorte de flores, legumes e frutos e se jubilar com ele, ainda assim, as cores efusivas, os aromas perfumados e o som eufórico de tuas gargalhadas contentes com o que construístes não abafarão os ruídos nem cobrirão os odores do inferno.

Mas, porque esse aviso apela a um tipo de moralidade estéril para quem cultiva a indiferença – e, recorde-se, ela é demandada pelas próprias condições sociais –, o filme parece sugerir ainda mais: existe, porém, quem suporte, desde que com algum conforto, dividir muros com o inferno e o mecanismo de reprodução social se encarrega de que isso seja, em alguma medida, o interesse de todos e cada um, concedido a poucos como uma caricatura da vida digna e justa.

Com a mesma tranquilidade com que alguns creem em um Éden particular e não se importam que esse paraíso seja desmentido pela existência de um único que pene, com essa mesma tranquilidade não se importam em saber que seu Olimpo exclusivo não passa de um puxadinho do Tártaro superlotado. Para estes, o alarido que vem do Tártaro não é mais que o inconveniente temporário do canteiro de obras de ampliação de seu paraíso no “espaço vital” conquistado com morte.

Só quem toma inadvertidamente o funcionamento da sociedade pelas leis do inconsciente pode se fiar, em Zona de interesse, no simbolismo de cenas como as que mostram cinzas de corpos sendo assoadas, ossos boiando e interrompendo a diversão familiar no rio, o sonambulismo de uma das filhas dos Höss ou o repentino ataque de ânsia de vômitos do nazista como expressão da força de retorno do recalcado. Aos assassinos de gabinete,2 sem consciência moral, tudo isso não passa de ossos do ofício.

Diferentemente do que Freud disse sobre nada ser destruído no inconsciente e tender a reemergir mesmo deformado, na sociedade a aniquilação não é apenas uma possibilidade, mas uma efetividade histórica, e os resíduos dessa aniquilação não apenas podem, e são, apagados como não restituem os que foram destruídos, por mais que possam resguardar a chance de alguma justiça ser feita.

Notas
1 A expressão “guerra sem ódio” é usada por Adorno (1993) no aforismo Longe dos tiros, do Minima moralia, ao discutir a passagem entre guerras antigas travadas como combates e as guerras modernas que funcionam como trabalhos mecânicos, como foi o caso do que se abateu sobre os judeus no fascismo. Por alguma razão Adorno a relaciona a Edward Grey, que foi secretário das Relações Exteriores da Grã-Bretanha durante a Primeira Guerra Mundial, mas a expressão parece ser particularmente famosa por sua associação ao general nazista Erwin Rommel, que comandou a campanha no norte da África.
2 A expressão remonta ao final do texto Educação após Auschwitz, de Adorno (1995).

Referências
ADORNO, T. W. (1993). Minima moralia: reflexões a partir da vida danificada (L. E. Bicca, trad.). 2a ed. São Paulo: Editora Ática.
ADORNO, T. W. (1995). Educação e emancipação (W. L. Maar, trad.). 3a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
GLAZER, J. (Diretor). (2023). Zona de interesse [Filme]. Film4; Access; Polish Film Institute; JW Films; Extreme Emotions.
GRIMM, J. & GRIMM, W. (2018). Contos maravilhosos infantis e domésticos [1812-1815] (C. Röhrig, trad.). São Paulo: Editora 34.
HORKHEIMER, M. & ADORNO, T. W. (1985). Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos (G. A. Almeida, trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
WIERNIK, Y. (1973). Un año en Treblinka (F. F. Gólberg, trad.). Buenos Aires: Congreso Judío Latinoamericano.

Publicado originalmente no site A Terra é redonda em 21/03/2024.




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Herik Rafael de Oliveira é doutorando em psicologia escolar e do desenvolvimento humano no Instituto de Psicologia da USP.

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