Liberalismo e “fascismo”: o artigo de Joel Pinheiro da Fonseca

Democrata, o escritor da Folha quer que se deponham as “armas” e se “aceite" que nós, é claro, a “esquerda” e a esquerda radical, aceitemos a dinâmica político-institucional daquilo que ele entende por “democracia”. Armas para ele, só se forem as ponto 40 de Tarcísio Freitas (que assassina negros dia-sim-e-dia-sim) e as granadas de Paulo Guedes para aplicar seus planos econômicos contra os populares: dois bolsonaristas moderados.

Foto: Marcos Corrêa/PR (Wikimedia Commons)

Por Ronaldo Tadeu de Souza

Joel Pinheiro da Fonseca é, independente de suas qualidades teóricas e na disseminação de ideias, um dos mais importantes escritores que a direita brasileira possui atualmente (o próprio se autointitula pertencente a ela). Suas intervenções na Folha de São Paulo remontam desde o momento imediato do pré-golpe contra Dilma Rousseff e o PT. Em sucessivos textos demonstrava, e ainda demonstra, quais são os princípios que organizam seu esquema menta: livre-mercado e democracia liberal-representativa; judiciário técnico e liberdade de expressão/de imprensa; antiesquerdimo em toda linha e contrário ao politicamente correto (suponhamos que menos com piadocas diante dos que habitam Tel Aviv e a diáspora). Foi, como não poderia deixar de ser, um ferrenho defensor – do que ele entendeu como solução necessária para destituir uma presidente eleita pelo voto popular – do Impeachment de 2016. De acordo com Joel Pinheiro e o grupo ou corrente política ao qual faz parte, a deposição legal (e schmittianamente legítima) havia sido motivada por pedaladas fiscais – um procedimento que já tinha adquirido forma institucional de governar com políticos moderados de direita –, agravadas por corrupção na cúpula do governo: uma trapaça institucional na verdade, para falarmos com Paulo Arantes, e digna de palhaços sérios (Marx), que são alçados ao poder para que a sociedade, ainda que perca os anéis, preserve a família, a religião, a moral e, sobretudo, a bolsa.

Bolsonarismo moderado como arranjo político necessário surgiu nos últimos dias da pena astuta desse arauto do liberal-conservadorismo intransigente brasileiro. Não é demais dispensar algumas reflexões crítico-materialistas ao pequeno ensaio de Joel Pinheiro.

Partamos de uma formulação geral. Como todo padroeiro da classe burguesa, Joel Pinheiro, em certas circunstâncias histórico-políticas por óbvio, quer a paz imposta, pela “força” mesmo, sobretudo sobre aqueles e aquelas que almejam a redenção pelo sofrimento por que passam vivendo no capitalismo (nos dias de hoje do capitalismo neoliberal-contrarrevolucionário). Seu liberalismo conservador é receoso da politização da sociedade, pois pode-se com isso atiçar não o temperamento da elite dominante (branca) que já está em franca investida contra os de baixo desde 2016; mas a subjetividade incandescente dos subalternos. Bolsonaro não seria um problema se só organizasse o ódio de classe dos de cima – ora será que Joel está se esquecendo que o bolsonarismo (moderado) foi instituído e coordenado pelo próprio Bolsonaro –; ocorre que por negatividade poderia o katechon da vez ser a fagulha de descontentamentos insubmissos sempre latentes numa sociedade como a brasileira. Joel – quer uma direita que “respeite” as instituições da democracia liberal que irão oprimir o povo, “não” uma opressão direta e desmedida, que, eventualmente, possa desprestigiar a própria elite burguesa dominante e seus planos político-econômicos de esmagamento do povo elaborados na alcova. (Os teóricos da New Left Review argumentam há muito que a face concreta neoliberal não se sustentaria em se mostrando sem máscaras e artifícios de linguagem outros, bem como através de dinâmicas políticas circunstâncias: isso inclui não só os estratagemas liberais-sociais e social-democratas, mas a própria direita intransigente nas figuras de Trump, Bolsonaro, Boris Johson, Viktor Orban, família Le Pen e Giorgia Meloni.)

Daí que o problema para Joel Pinheiro nunca tenha sido a democracia enquanto tal, ou mesmo com as forças reais de esquerda que atuam no interior dela; sua preocupação é com as “regras do jogo” (bolsonaristas disputam eleições, votam por privatizações nos parlamentos, participam de comissões, têm ministros no STF), a “liberdade de expressão” (bolsonaristas defendem o uso desabrido da linguagem contra os de baixo,  têm produtora que reconta a história do golpe de 1964, que defende a beleza branca europeia,  que elogia a monarquia brasileira como civilizatória), a “minoria valorosa” (bolsonaristas querem a elite econômica financeira no governo, querem os homens brancos-burgueses de sempre na organização e administração da coisa pública): são elementos que o bolsonarismo moderado pode bem lhe oferecer. De outra perspectiva, Joel Pinheiro sequer questiona, mesmo decorrida quase uma década, as implicações do Impeachment (o golpe) em 2016 defendido por ele e pelos bolsonaristas moderados (que à época não o eram ainda, pois Bolsonaro não havia emergido para nomear os movimentos liberais-conservadores de então como bem demonstra Rodrigo Nunes em Do Transa a Vertigem). Jamais sua mente democrática questionou a legitimidade de se retirar do governo a expressão de outra metade da população. Novamente, democracia não é o que aflige Joel. O artigo do colunista da Folha de São Paulo é revelador de como pensa a direita intransigente brasileira – para eles o PT e parte da esquerda eram (e são) “corruptos”, viviam a “apoiar o líder” (nosso escritor deveria ler Max Weber para saber que democracia burguesa no século XX e inícios do XXI “só” pode ser plebiscitária, ou seja, de seguimento do líder), com eles o país atravessava “um profundo mal-estar”, não havia compromisso (da esquerda ) com a  “coisa pública”, o dinheiro dos contribuintes era “mal administrado”, na verdade “desviado”. (Até esse momento o país era exemplo mundial de decência, de boa administração pública, de checks and balances, de pagamentos de tributos devidos pelos ricos, de ausência de caixa-dois em eleições: nossa comunidade solar-tropical estava às portas da glória de ouro como civilização.) Portanto, “era preciso impor a ordem”. E sabemos quem a suportou e a vem suportando: Marielle Franco, Moa do Katendê, Genivaldo de Jesus Santos, as 700 mil vítimas da covid-19, os exterminados de pele preta pela polícia de Derrite (um moderado bolsonarista) na Baixada Santista e os atingidos pela catástrofe ecológica no Rio Grande do Sul “planejada” por Eduardo Leite do moderado PSDB etc.

Mas “os valores” do Bolsonarismo (moderado) podem ser abrigados na “ordem democrática” para Joel Pinheiro. Quais valores? Aquele que pedia uma granada no bolso de funcionários públicos? Aquele que defende a existência de um partido nazista em podcast? Aquele que torna a água propriedade privada de algum capitalista especulador qualquer? Aquele que quer a distribuição de dividendos da Petrobrás cada vez mais altos às custas de mães negras cozinharem à lenha e comprometerem a saúde de suas famílias por problemas respiratórios? Aquele que entende não ver problema subjetivo algum em padrões de linguagem difamatórios contra minorias há muito oprimidas e humilhadas pelos mesmos moderados defendidos por Joel? Aquele que defende o genocídio de palestinos pelo exército assassino de Israel comandado por um facínora (Benjamin Netanyahu) com o argumento já demonstrado ser insustentável de represália ao Hamas? O que Joel Pinheiro da Fonseca quer, assim como os liberais-conservadores que ele representa, é a ordem (imposta) para que a classe trabalhadora “aceite” pacífica e ordeiramente a contrarrevolução neoliberal e suas implicações; quer a ordem (imposta) para que o povo trabalhador não se rebele insatisfeito com a vida de exploração, de opressão e de humilhação por que passa cotidianamente no sistema econômico e político que o colunista defende.   

Democrata, o escritor da Folha quer que se deponham as “armas” – notemos que os exemplos cifrados de Joel Pinheiro são de grupos que na origem eram organizações de defesa de causas populares (as Farc queriam a reforma agrária na Colômbia e o IRA-Irish Republican Army ansiava por uma República irlandesa livre do Império inglês) – e se “aceite” que nós, é claro, a “esquerda” e a esquerda radical, aceitemos a dinâmica político-institucional daquilo que ele entende por “democracia”. Armas para ele, só se forem as ponto 40 de Tarcísio Freitas (que assassina negros dia-sim-e-dia-sim) e as granadas de Paulo Guedes para aplicar seus planos econômicos contra os populares: dois bolsonaristas moderados.

A Joel Pinheiro da Fonseca podemos exercer a mesma consideração que Perry Anderson estabeleceu a um dos prováveis mentores, bem entendidas as coisas prováveis…, do escritor da Folha de São Paulo – “Ludwig von Mises, [era] famoso por argumentar contra a própria possibilidade de uma economia socialista, e por sua defesa irredutível de um modelo puro de capitalismo de livre mercado. Não havia defensor mais incondicional do liberalismo clássico nos países de língua alemã durante os anos 1920. Ainda assim, a cena política austríaca deixava pouco espaço para suas opiniões, dominada que era pelo conflito entre a esquerda socialdemocrata e a direita clerical. Nesse caso Mises não hesitou. Na luta contra o movimento operário, talvez houvesse necessidade de um governo autoritário” (Anderson, 2002). Em Bolsonarismo moderado, Joel Pinheiro da Fonseca também não hesita! Mas como ingênuos construtores de frentes amplas que somos, só esperemos que hesite, diferente de Mises, pois o economista austríaco sob o risco de perda pela “civilização europeia do princípio da propriedade privada” (Anderson, 2002), afirmou ser a defesa dessa, um “mérito que o fascismo conquistou [e que] viverá para sempre na história” (Mises apud Anderson, 2002).1


Referências bibliográficas

NUNES, Rodrigo. Do Transe à vertigem: ensaios sobre bolsonarismo e um mundo em transição. São Paulo: Ubu, 2022
ANDERSON, Perry. A direita intransigente no fim de século In: ANDERSON, Perry. Afinidades seletivas. São Paulo: Boitempo, 2002.


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Ronaldo Tadeu de Souza é professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFSCar e pós-doutor pelo Departamento de Ciência Política da USP. 

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