A chave para a interpretação da crítica de Marx ao capitalismo

Em época não muito distante, quem estudava a obra de Marx não tinha à mão os "Grundrisse", por exemplo, e devia se contentar com a possiblidade de cotejar "O capital" com "Para a crítica da economia política", que, afinal, havia sido publicado por Marx ainda em vida. A oportunidade aberta ao leitor atual é retomar esses caminhos e encontrar em "Para a crítica da economia política" a chave para a interpretação do estratégico começo da crítica de Marx ao capitalismo.

Foto: Monumento a Karl Marx em Chemnitz, Alemanha (Wikimedia Commons).

Por Jorge Grespan

Em meados de 1858, Marx tinha por fim em mãos o longo manuscrito que vinha preparando há vários meses e que sintetizava seus muitos anos de estudo sobre economia política. Ele começara a redação sob o forte estímulo da crise econômica de 1857, considerada por ele a primeira de abrangência e caráter verdadeiramente mundiais. A esperança de que sua eclosão incentivasse a classe trabalhadora a deflagrar um movimento revolucionário fez Marx trabalhar “de modo colossal”1 e acelerado para escrever a primeira versão de sua “crítica da economia política” explicando as contradições incontornáveis do capitalismo e delas deduzindo as crises e a possibilidade da transição ao socialismo. Como se sabe, esse manuscrito foi publicado em seu estado original décadas depois da morte do autor sob o título Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie.2

Para Marx, porém, o manuscrito não passava de um esboço inicial que deveria ser bem revisado, corrigido e complementado antes de ir para o prelo. Todo o material formaria o primeiro de um conjunto de seis livros nos quais pretendia desenvolver sua crítica à sociedade burguesa.3 Por sua vez, o manuscrito mesmo seria dividido em sete cadernos,4 dos quais o primeiro corresponderia ao “capítulo do dinheiro” e os demais cadernos ao conteúdo do bem mais longo “capítulo do capital”. Foi esse primeiro caderno que Marx viu publicado em junho de 1859, depois de um intenso trabalho de revisão, sob o título Para a crítica da economia política.

De fato, a transposição do manuscrito à forma de livro foi marcada por dificuldades.5 As duas mais importantes certamente são as que se referem ao problema fundamental de como apresentar o material do primeiro caderno, tendo uma delas aparecido logo no início e a outra no final da apresentação.

A primeira dificuldade foi, exatamente, por qual categoria começar a análise. Ela surgiu quando Marx desenvolveu o ponto de vista que o orientara nos Grundrisse. Ali, ele já sabia que

para desenvolver o conceito de capital, é necessário partir não do trabalho, mas do valor, e, de fato, do valor de troca já desenvolvido no movimento da circulação. É tão impossível passar diretamente do trabalho ao capital quanto passar diretamente das diversas raças humanas ao banqueiro, ou da natureza à máquina a vapor.6

Marx já sabia que, apesar de composto em sua substância por trabalho, o capital se define pelas formas sociais que assume no processo de autoconstituição, isto é, pelas formas do “valor de troca desenvolvido já no movimento da circulação”, em especial a forma de dinheiro. O salto impossível a que se refere o final da passagem citada acima corresponde ao salto da substância – “raças humanas” ou “natureza” – à forma social – “banqueiro” ou “máquina a vapor”. Embora o metabolismo da produção de valores de uso também esteja na base do capitalismo, o que diferencia esse sistema dos que o antecederam é a subordinação do metabolismo à metamorfose, isto é, da troca de matéria do ser humano com a natureza à troca da forma social em que isso ocorre – mercadoria e dinheiro, formas de que o capital se reveste e que sucessivamente abandona no processo da circulação de valor.

Assim, na perspectiva dos Grundrisse, a análise do capital como forma de relação social devia começar pela análise do dinheiro a forma geral adotada pelo capital, inclusive em sua relação com o trabalho. Pois é como comprador da força de trabalho que o capitalista entra em cena, colocando-se em pé de igualdade com o trabalhador, que apresenta-se como vendedor da força de trabalho. É nessa igualdade contratual que a relação constitutiva do capital primeiro se apresenta, para só adiante, na passagem para a esfera da produção propriamente dita, revelar-se como o oposto, como a desigualdade social instaurada a partir do momento em que o capitalista despoja o trabalhador dos meios de produção. Antes dessa inversão em desigualdade social, a forma distintiva da relação entre as duas classes sociais é o salário, ou melhor, a remuneração em dinheiro do trabalhador pelo capitalista.

O que ficou claro para Marx durante o trabalho de edição foi que o próprio “capítulo do dinheiro” deveria começar pela dedução da forma mesma de dinheiro.

Sem dúvida, nos Grundrisse há várias considerações sobre o valor de troca e sua relação com o valor de uso e até sobre as distintas formas da circulação das mercadorias, com a introdução das conhecidas expressões M-D-M e D-M-D. Porém tais considerações são feitas sempre dentro da discussão do dinheiro, e o tópico inicial “gênese e essência do dinheiro”, além de incluir rápidas digressões sobre temas correlatos, logo desemboca no estudo dos metais preciosos e, por fim, no tópico sobre o “curso do dinheiro”, que traz a primeira versão de Marx para a sequência das funções do dinheiro. Nesse tópico do manuscrito, aparece uma rápida menção a um “capítulo que deve tratar do valor de troca como tal”, que talvez corresponda às duas breves páginas cuja redação aparentemente Marx suspendeu ao final dos Grundrisse. Com o número “1)” e o título “Valor”,7 esse texto retoma a relação entre valor de uso e valor de troca, constitutiva da forma de mercadoria. Mais importante, ele formula a frase que depois abriria, com as devidas modificações, o livro Para a crítica da economia política e, enfim, O capital: “A primeira categoria em que se apresenta a riqueza burguesa é a da mercadoria”.8

Apesar dessas indicações dos Grundrisse, o novo começo para a apresentação categorial só foi elaborado na publicação de 1859, quando o “capítulo do dinheiro” aparece depois do capítulo sobre a mercadoria. O importante desenvolvimento ocorrido entre os dois textos fica claro no tema e no título de cada um: em Para a crítica da economia política, trata-se da mercadoria, e não do valor, como no tópico apenas esboçado que encerra os Grundrisse.9 A mercadoria é uma forma de valor, mas também apresenta a dimensão do valor de uso em um produto tangível capaz de satisfazer necessidades; ela tem um caráter palpável, portanto, e está presente no cotidiano da sociabilidade capitalista, não podendo ser considerada, de modo algum, mera abstração. De fato, a mercadoria consiste na unidade de valor e valor de uso; ela é a forma mais simples da oposição entre essas duas dimensões, desenvolvida nas formas mais complexas que definem as funções do dinheiro.

Com isso em mente, Marx dividiu o material de Para a crítica da economia política em dois capítulos básicos, “a mercadoria” e “o dinheiro, ou a circulação simples”, que deveriam inaugurar o “livro primeiro: do capital” e seu desdobramento na “seção I: o capital em geral”, conforme o plano de publicação dos seis livros mencionado acima.

Chama a atenção, de imediato, a alternativa oferecida no título do segundo capítulo do livro: “o dinheiro, ou a circulação simples”. Ela deixa claro que aqui o dinheiro ainda não é analisado como forma específica do capital, e sim na esfera que Marx denominou “circulação simples” de mercadorias e representou por M-D-M. A relação entre a forma “simples” e a forma mais complexa, a da circulação do capital propriamente dito, abordada na seção segunda do “capítulo do capital” dos Grundrisse, configura-se como um problema. Embora a circulação “simples” não seja ainda a circulação das formas do capital, ela descreve a situação da troca mercantil absorvida e redefinida pela circulação capitalista. Remunerada pelo salário, a força de trabalho compra os meios de vida de que necessita para sempre voltar ao trabalho, em um movimento que M-D-M representa de maneira adequada.

São esses os termos da segunda dificuldade que Marx enfrentou na edição do manuscrito de 1857-1858: como inscrever a circulação simples na produção capitalista; ou, ainda, como concluir o “capítulo do dinheiro” e, com isso, finalizar Para a crítica da economia política, e então passar para o “capítulo do capital”, que seria o tema dos cadernos seguintes da publicação. No manuscrito, essa passagem ocorre quando, ao termo da sequência de suas funções, o dinheiro deixa de ser simples meio de circulação das mercadorias e passa a ser um fim em si mesmo. Marx então pensava que podia deduzir sem inconvenientes o conceito de capital a partir da fórmula D-M-D, que inverte o sentido de M-D-M da circulação simples, pois a identidade qualitativa entre o polo inicial e o polo final de D-M-D impõe a conclusão de que a diferença só pode ser quantitativa: entre o primeiro e o último D deve existir um valor maior, um mais-valor expresso por Marx na linha que acrescenta ao último D, formando D’.

Embora Para a crítica da economia política não avance além do conceito de “dinheiro mundial”, sem passar ao dinheiro como forma do capital, Marx percebeu nessa passagem um problema sério. Apenas formulada como D-M-D’, a circulação do capital poderia muito bem representar a mera acumulação do capital comercial inclusive em sua forma pré-capitalista, isto é, o processo de comprar para vender mais caro, que não implica alterar as condições da produção mesma das mercadorias. Dito de outra maneira, a fórmula D-M-D’ não apreende a especificidade da produção capitalista; não apreende sua distinção em relação às formas historicamente anteriores que se combinavam com o capital comercial. Não bastava, portanto, inverter as expressões e deduzir o capital industrial da mera autonomia formal do dinheiro.

Talvez esse tenha sido o motivo pelo qual Marx interrompeu a edição dos Grundrisse e decidiu voltar aos estudos com a clara intenção de reelaborar o “capítulo do capital”. Ele se dedicou intensamente a essa tarefa entre 1861 e 1863, e acabou por redigir um segundo manuscrito, dos quais fazem parte, por exemplo, os cadernos publicados depois de sua morte sob o título Teorias da mais-valia.

Em suma, Marx teria percebido que a passagem da circulação simples ao capital não poderia ser apenas formal; antes, ela devia expor a oposição entre a igualdade jurídica constitutiva da circulação da força de trabalho e a desigualdade social subjacente à subsunção do trabalho ao capital na esfera da produção imediata das mercadorias. Seria preciso explicitar, já nesse momento, a condição social da força de trabalho despojada dos meios de produção pelos capitalistas. Em outras palavras, a passagem da esfera da circulação simples para a esfera da produção de mercadorias deveria extrapolar o aspecto formal da apresentação e incorporar a circunstância histórica que está na base do próprio conceito de mais-valor. De outro modo, Marx incorreria no erro que previra em sua famosa advertência dos Grundrisse: “Será necessário, mais tarde […] corrigir o modo idealista da apresentação que produz a aparência de que se trata simplesmente das determinações conceituais e da dialética desses conceitos.”10

Por “estilo idealista”, Marx designa aqui um modo de apresentação dos conceitos que reduz a apresentação a uma cadeia dedutiva na qual um conceito se define a partir de outro. Reunir essa cadeia à história seria possível somente na filosofia hegeliana porque nela, de acordo com Marx, o desdobramento lógico-especulativo do conceito se reproduz no fluxo dos acontecimentos, uma proposição inaceitável para a concepção materialista na base da crítica da economia política.

Contudo, durante a redação dos Grundrisse, Marx avançou nessa crítica a ponto de conceber o capitalismo como um sistema econômico no qual, conforme visto acima, o metabolismo entre ser humano e natureza é inscrito em metamorfoses puramente sociais, isto é, nas passagens de uma forma social à outra. Por isso, pensar uma precedência da forma à substância ou, em termos mais ou menos hegelianos, do lógico ao real, não seria um completo desatino idealista, mas corresponderia a um sistema, ele próprio, desatinado.

Assim, se a transição da circulação simples à produção capitalista deve explicitar a condição histórica do despojamento da força de trabalho, ela deve também retomar e continuar o fio condutor da apresentação das formas da circulação simples e das funções do dinheiro. Somente na redação de O capital Marx conseguiu resolver o problema posto por essa dupla exigência. Ele o faz no capítulo 4 do livro, tão importante que ocupa sozinho a segunda seção inteira, colocado de modo estratégico entre os três capítulos da primeira seção, dedicada à circulação simples, e os sete capítulos da terceira, dedicada à produção de mais-valor absoluto. Essa importância também é evidente pela forma da apresentação, distinta da observada no restante do livro: em boa parte do capítulo 4 de O capital, Marx intencional e repetidamente esbarra em uma aporia, a saber, na impossibilidade da criação de valor novo se mantido o princípio da troca de equivalentes, superada só no fim do capítulo, quando ele explicita a condição histórica pela qual a força de trabalho se torna mercadoria e, mais, a mercadoria cujo emprego permite a criação de mais-valor.

Apesar de exposta apenas em O capital, essa solução começou a ser delineada em Para a crítica da economia política. De fato, ela aparece já no texto de edição do livro, redigido entre agosto e outubro de 1858 e publicado após a morte de Marx com o título “Texto original”.11 Esse interessante manuscrito, publicado agora pela Boitempo junto de Para a crítica da economia política, permite ao leitor acompanhar o exato momento em que Marx muda de ideia a respeito da função de meio de pagamento do dinheiro, redefinindo a relação da circulação simples com as formas específicas e mais complexas do capital.

A mudança ocorreu logo depois da redação dos Grundrisse, em que o meio de pagamento é visto como forma rudimentar do sistema de crédito, sendo, por isso, apresentado no “capítulo do capital”. Marx em seguida percebeu, porém, que essa função do dinheiro é a combinação dialética das funções de medida de valor e de meio de circulação. Por isso, no “Texto original”, o meio de pagamento passa a figurar na circulação simples de mercadorias, transitando para a determinação do capital, mas ainda dentro das formas de apropriação típicas da lógica de M-D-M, nas quais trabalho e propriedade dos meios de produção ainda não estão explicitamente cindidos. Assim, Marx deixa de julgar a função de meio de circulação do dinheiro a forma típica da circulação simples, como nos Grundrisse, e caracteriza a sociabilidade presidida por M-D-M de um modo mais complexo, que comporta relações mediadas por dinheiro apenas representado, prometido, mas ainda não efetivamente pago.

Marx desenvolve essa caracterização no tópico 5 do segundo capítulo do “Texto original”, intitulado “O aparecimento da lei de apropriação na circulação simples”. A discussão que ele aí faz das ilusões criadas pela redução das formas sociais capitalistas a meras formas mercantis confere à leitura do “Texto original” uma importância especial, ainda mais pelo fato de que Marx acabou por não aproveitar todo o final desse manuscrito de edição na versão definitiva de Para a crítica da economia política.12 Certas formulações lapidares sobre a sociabilidade burguesa só nele podem ser lidas e analisadas.

De todo modo, aquilo que Marx incorporou ao livro já representa uma concepção da circulação simples e de sua relação com a produção capitalista consideravelmente mais rica do que a exposta nos Grundrisse. A mudança na concepção do meio de pagamento, por exemplo, será de grande importância para entender depois como ocorre a remuneração da força de trabalho mediante salário. Ao incluir essa função do dinheiro na lógica de M-D-M, Marx explica como a relação do capitalista com o trabalhador mantém a aparência da troca de equivalentes, agora entre um tipo de devedor, que pagará o salário só no fim do mês, depois de receber o serviço que comprou, e um tipo de credor, que vive da promessa de receber o dinheiro devido ao trabalho que vendeu. Ainda fica encoberta a desigualdade social subjacente à situação mais complexa caracterizada pelo meio de pagamento, mas a condição histórica de despojamento de que surge a mercadoria força de trabalho não precisará ser introduzida como um fator totalmente externo à circulação simples. Ao contrário, sua introdução permite que seja mantida a ordem da apresentação categorial e a torna até mesmo imprescindível para enfatizar a oposição entre um nível e outro da análise, ou seja, para revelar a realidade desigual por debaixo da aparência jurídica igualitária.

A apresentação da “lei de apropriação na circulação simples” em Para a crítica da economia política terá como finalidade desenvolver as consequências sociais dessa igualdade formal. No capítulo inicial, sobre a mercadoria, a troca de equivalentes aparece na base das relações entre proprietários privados e toda a rede de sociabilidade que se estabelece entre eles é exposta junto da lógica das categorias que expressam as formas nas quais essa rede se cristaliza e acontece.

É bem diferente da estratégia adotada por Marx ao retomar esse assunto em O capital, em que o estudo da mercadoria se divide em dois capítulos: o primeiro apresenta as principais categorias envolvidas na análise de acordo com a lógica da própria mercadoria, como se ela mesma presidisse o movimento pelo qual a oposição interna de valor de uso e valor se exterioriza na oposição da forma relativa e forma de equivalente, chegando à oposição entre mercadoria e dinheiro; só o segundo capítulo discute as relações sociais subjacentes ao movimento da mercadoria porque, embora Marx aí já comece afirmando que “as mercadorias não podem ir por si mesmas ao mercado e trocar-se umas pelas outras”, ele havia dito antes que os agentes da troca “não sabem disso, mas o fazem”,13 ou seja, que os agentes estão submetidos às regras impostas pela lógica da mercadoria descritas no capítulo anterior. Essa divisão em dois capítulos, portanto, é coerente com o próprio objeto neles analisado, que é a mercadoria em seu caráter fetichista e automático.

O fato de Para a crítica da economia política apresentar ambas as dimensões simultaneamente constitui uma vantagem para seu leitor em relação a O capital, mais árduo e sinuoso. Essa vantagem, contudo, decorre em grande parte do pouco desenvolvimento do conceito decisivo de fetichismo no livro de 1859. Marx descreve já nessa época a inversão da relação entre pessoas em relação entre coisas,14 mas não avança a ponto de caracterizá-la como um processo automático que ocorre de modo independente da plena consciência dos agentes sociais. Em vez do “não sabem disso, mas o fazem” da famosa frase de O capital citada acima, em Para a crítica da economia política, ele diz:

Trata-se de um processo social em que ingressam os indivíduos independentes uns dos outros, mas eles só ingressam nele como possuidores de mercadorias; sua existência recíproca uns para os outros é a existência de suas mercadorias e, desse modo, eles aparecem, de fato, apenas como portadores conscientes do processo de troca.15

Certamente, trata-se de uma questão de ênfase. Os agentes da troca têm, é claro, consciência parcial do que fazem, e Marx não negaria isso quando escreveu sua afirmação categórica em O capital. Ao afirmar que eles não sabem o que fazem, Marx pretendia destacar a força do fetichismo e caracterizá-lo como poder que submete a todos os agentes sem que sua consciência desempenhe papel relevante nos atos de troca. A ênfase na irrelevância da consciência e da vontade dos agentes como fatores decisivos de sua ação tem a clara intenção de salientar o quanto essa ação ocorre de acordo com os processos automáticos desencadeados pelas formas típicas da sociabilidade capitalista já na esfera da circulação simples. No entanto, mais do que isso, a afirmação categórica de Marx em O capital resulta da introdução nesse texto de uma particularidade decisiva na descrição da forma de mercadoria.

Até 1867, Marx fundava sua análise da mercadoria na oposição entre valor de uso e valor de troca, seguindo a pista aberta pela economia política clássica desde Adam Smith. Ao retomar o tema de Para a crítica da economia política oito anos depois, porém, Marx definiu o valor de troca como expressão quantitativa, variável conforme cada mercadoria trocada, de uma propriedade única intrínseca às mercadorias, o valor. Claro, trata-se de uma propriedade social, estabelecida historicamente, que diferencia a mercadoria de qualquer produto não destinado ao mercado. É justamente essa diferença entre mercadoria e produto que o primeiro capítulo de O capital procura destacar, uma diferença que não contradiz o modo de apresentação dos textos anteriores, mas que a eles acrescenta a especificidade histórica de uma economia mercantil. Um produto, quando produzido para consumo próprio de seus produtores, não é mercadoria; e mesmo se eventualmente ele sobrar e acabar sendo trocado, ele não é mercadoria. Não é a troca efetiva, e sim a destinação do produto para a troca, que faz dele uma mercadoria.

Essa propriedade única e intrínseca às mercadorias constitui o fundamento sólido para o conceito de fetichismo, pois é ela, o valor, que responde à pergunta de Marx sobre a origem do “caráter enigmático do produto do trabalho, assim que ele assume a forma de mercadoria”.16 A inversão de relações pessoais em relação entre coisas é explicada pela autonomia adquirida por essas coisas, as mercadorias, diante do próprio trabalho que as produziu; e essa autonomia explica também por que os agentes têm de se render a regras impostas por um movimento que aparece para eles como independente, objetivo. Não são trocas fortuitas de produtos sobrantes que dão às coisas esse poder, mas sim a produção que desde o início tem como finalidade o mercado; não o consumo dos próprios produtores, mas o consumo de terceiros. O produtor direto, com isso, depende totalmente de um mercado que, fora de seu controle, é fonte tanto de fortuna como de desgraça.

Todo esse desenvolvimento teórico ainda não estava completo em Para a crítica da economia política, mas já pode ser observado em gérmen. O leitor pode acompanhar esse caminho e toda a gama de possibilidades que Marx tinha diante de si naquele momento para construir seu texto e continuar sua pesquisa, as opções que fez e as alternativas que acabou por desconsiderar. Não necessariamente os caminhos que ele preferiu foram os melhores, ou as formulações que deixou de lado eram menos expressivas. Algumas vezes, pode ser o contrário. O leitor que estuda sua obra com atenção pode formar uma opinião também a esse respeito.

Marx mesmo prestou contas do desenvolvimento de suas ideias em passagens como o “Prefácio” de Para a crítica da economia política. Certamente um dos textos mais conhecidos de Marx, ele começa apresentando o plano de publicação dos seis livros mencionado acima, para, em seguida, relatar os passos do percurso intelectual de seu autor desde os estudos universitários até aquele momento. Notas biográficas se misturam a notícias sobre obras deixadas no prelo17 e dão ensejo a uma discussão de cunho teórico, em especial no que diz respeito à crítica da concepção de história de Hegel e dos pós-hegelianos, ocasião que Marx aproveita para expor uma síntese do que ele e Engels vinham concebendo desde os manuscritos de A ideologia alemã.

Aqui, os conceitos de base e superestrutura, forças produtivas e relações de produção são expostos de modo breve, um tanto esquemático, mas com uma clareza talvez inédita em outros textos de Marx sobre o tema, o que contribuiu, sem dúvida alguma, para o sucesso na recepção do prefácio. O esquema das forças produtivas que de um vínculo positivo com as relações de produção passam a um vínculo negativo, destrutivo, foi considerado por muito tempo um modelo da dialética materialista; o mesmo valendo para o esquema da base e da superestrutura. Só o exame cuidadoso da análise da mercadoria e da dedução do dinheiro a partir da forma de mercadoria, presentes já no texto de Para a crítica da economia política, permitiu que se formasse depois uma visão mais aguda a respeito da dialética de Marx.

Em época não muito distante, quem estudava a obra de Marx não tinha à mão os Grundrisse, por exemplo, e devia se contentar com a possiblidade de cotejar O capital com Para a crítica da economia política, que, afinal, havia sido publicado por Marx ainda em vida. Foi o suficiente para leitores como Karl Korsch, György Lukács, Vladímir Lênin, Rosa Luxemburgo e Isaac Rubin, entre outros. A oportunidade aberta ao leitor atual é retomar esses caminhos e encontrar em Para a crítica da economia política a chave para a interpretação do estratégico começo da crítica de Marx ao capitalismo.

Notas
1 Carta de Marx a Engels, 18 de dezembro de 1857, em MEW, v. 29, p. 232.
2 Ao mesmo tempo em que escrevia sua crítica da economia política, Marx coletava material em revistas e jornais da época com a intenção de publicar, além do texto teórico de crítica, também um texto de análise da crise em curso. O rápido fim da crise, porém, fez Marx deixar de lado esses Krisenhefte. A miscelânea de recortes desses jornais e revistas entremeados por análises breves do próprio Marx foi editada só em 2017, no volume 14 da Seção IV da Marx-Engels Gesamtausgabe (MEGA), com o título “Exzerpte, Zeitungsausschnitte um Notizen zur Weltwirtschaftskrise. November 1857 bis Februar 1858”; para a edição brasileira dos Grundrisse, ver Karl Marx, Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política (trad. Mario Duayer e Nélio Schneider, São Paulo/Rio de Janeiro, Boitempo/UFRJ, 2011).
3 O plano desses seis livros é citado em diversos escritos de Marx da época e é apresentado já no começo do prefácio de Para a crítica da economia política. Os livros seriam “capital, propriedade da terra, trabalho assalariado, Estado, comércio exterior e mercado mundial”.
4 A divisão nos sete cadernos aparece em um índice provisório escrito por Marx em junho de 1858. Em carta a Engels datada de 22 de fevereiro de 1858, Marx explica que pretende publicar seu texto em cadernos porque não possui “tempo nem meios de elaborá-lo com toda a tranquilidade” (MEW, v. 29, p. 284).
5 De início, Marx acreditava que poderia revisar e publicar sem dificuldade os Grundrisse, como afirma em carta a Engels datada de 21 de setembro de 1858: “eu nada tenho a fazer senão estilizar [stilisieren] o que já foi escrito” (MEW, v. 29, p. 355).
6 Karl Marx, Grundrisse, cit., p. 200; MEGA II/1.1, p. 183.
7 A menção ao “capítulo” que deveria tratar do valor de troca independentemente da análise do dinheiro aparece no começo do tópico que trata da última função do dinheiro na versão dos Grundrisse, intitulado “O dinheiro como representante material da riqueza” (Karl Marx, Grundrisse, cit., p. 149; MEGA II/1.1, p. 132). Aparentemente, o texto que aparece ao final do manuscrito inteiro, “Valor”, constitui a redação desse capítulo prometido, com o qual começaria o livro propriamente dito (Karl Marx, Grundrisse, cit., p. 757; MEGA II/1.2, p. 740).
8 Karl Marx, Grundrisse, cit., p. 756; MEGA II/1.1, p. 740. Como comparação, em Para a crítica da economia política, de 1859, a frase inicial é: “À primeira vista, a riqueza burguesa aparece como uma enorme coleção de mercadorias, e a mercadoria individual como sua existência elementar” (neste volume, p. 31; MEGA II/2, p. 107; MEW, v. 13, p. 15). Em O capital, no caso, é: “A riqueza das sociedades onde reina o modo de produção capitalista aparece como uma ‘enorme coleção de mercadorias’, e a mercadoria individual, por sua vez, aparece como sua forma elementar” (Karl Marx, O capital: crítica da economia política, Livro I: O processo de produção do capital, trad. Rubens Enderle, São Paulo, Boitempo, 2013, p. 113; MEGA II/10, p. 37).
9 Como Marx explicará mais tarde nas “Glosas marginais ao Tratado de economia política de Adolph Wagner”, “[…] nem o ‘valor’ nem o ‘valor de troca’ são sujeitos [Subjekt] para mim, mas sim a mercadoria”, em Karl Marx, Últimos escritos econômicos (trad. Hyury Pinheiro, São Paulo, Boitempo, 2020, p. 43; MEW, v. 19, p. 358).
10 Karl, Marx, Grundrisse, cit., p. 100; MEGA II/1.1, p. 85.
11 Em alemão, “Urtext ”. Ele foi publicado pela MEGA em 1980, como parte do volume 2 de sua segunda seção. Nesse “Texto original”, aquilo que chamei de segunda dificuldade da apresentação categorial enfrentada por Marx, a saber, a passagem da circulação simples ao capital, aparece no tópico 6 do segundo capítulo, “Transição ao capital”, e no terceiro capítulo, incompleto, “Transformação do dinheiro em capital”, ambos não aproveitados por Marx na redação final de Para a crítica da economia política.
12 Conforme assinalado na nota anterior, além do tópico 5, também o tópico 6 e o terceiro capítulo do “Texto original” foram dispensados por Marx na versão final de Para a crítica da economia política. No caso destes últimos, provavelmente Marx desistiu em definitivo de inclui-los porque deixou a discussão do capital para os cadernos posteriores. No caso do tópico 5, de certo modo, ele acabou aproveitando o material quando retomou o tema no segundo capítulo do livro I de O capital, intitulado “O processo de troca”.
13 Karl Marx, O capital, cit., p. 159 e 149; MEGA II/5, p. 51 e 46.
14 Em algumas passagens de Para a crítica da economia política, tal inversão é bem caracterizada: “Por fim, o trabalho que gera o valor de troca se caracteriza pelo fato de a relação social entre as pessoas se apresentar como que invertida, a saber, como relação social entre as coisas […] Por conseguinte, mesmo que seja correto dizer que o valor de troca constitui uma relação entre pessoas, é necessário acrescentar: uma relação oculta, encoberta pelas coisas” (neste volume, p. 37; MEGA II/2, p. 113).
15 Neste volume, p. 43; MEGA II/2, p. 120; grifos meus.
16 Karl Marx, O capital, cit., p. 147; MEGA II/5, p. 46.
17 É o caso dos seis livros que comporiam a obra planejada de “análise do sistema da economia burguesa” (MEGA II/2, p. 99), da “introdução geral” de 1857 deixada de lado “porque toda a antecipação de resultados ainda a serem demonstrados pode atrapalhar” (idem, p. 99) e de um manuscrito, certamente A Ideologia alemã, de “crítica da filosofia pós-hegeliana”, abandonada “à crítica roedora dos ratos” (idem, p. 102).


Publicada em 1859, “Para a crítica da economia política” é a primeira tentativa de Marx de publicar de maneira sistemática sua crítica da economia política. Trata-se da única obra que efetivamente veio à luz numa série prevista de seis livros. Oito anos depois, remodelado o projeto inicial, a concepção ganharia corpo na principal obra do autor, O capital, publicada em 1867. Para a crítica delineia os conceitos equivalentes ao que depois comporia a Seção I da obra-prima do filósofo alemão.
 
Esta edição inclui também o “Urtext”, ou “Texto original”, um manuscrito preliminar, no qual uma série de raciocínios, depois suprimidos ou encurtados, podem ser acompanhados em detalhes. Trata-se de um escrito decisivo para uma compreensão mais aprofundada dos problemas da dialética marxiana, que exerce ainda hoje grande influência em algumas das tentativas mais profícuas de interpretação e reinterpretação da obra de Marx e, especialmente, do seu projeto de uma crítica da economia política.
 
Traduzido pelo especialista Nélio SchneiderPara a crítica da economia política é o 34º volume da coleção Marx-Engels e conta com apresentação escrita por Jorge Grespan, texto de orelha de Hugo da Gama Cerqueira e capa de Maikon Nery sobre desenho de Cássio Loredano.

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Jorge Grespan é professor titular do Departamento de História da USP e autor de O negativo do capital (Hucitec, 1998; Expressão Popular, 2012), Iluminismo e revolução francesa (Contexto, 2003), Marx e a crítica do modo de representação capitalista (Boitempo, 2019) e o mais recente Marx: uma introdução (2021). Colaborador da revista Margem Esquerda, Grespan também assina um dos capítulos do livro Curso Livre Marx-Engels (Boitempo, 2015), organizado por José Paulo Netto.

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