25 de abril: 50 anos da Revolução dos Cravos
No 25 de Abril de 1974, ruiu a ditadura mais antiga do continente europeu. A rebelião militar organizada pelo MFA, uma conspiração dirigida pela oficialidade média das Forças Armadas que evoluiu, em poucos meses, de uma articulação corporativa para a insurreição, foi fulminante.
Foto: Centro de Documentação da Universidade de Coimbra/BBC.
Por Valerio Arcary
“A sombra de uma azinheira, que já não sabia a idade,
Jurei ter por companheira, Grândola, tua vontade“
Zeca Afonso, cantor popular português
Já se disse que as revoluções tardias são as mais radicais. No 25 de Abril de 1974, ruiu a ditadura mais antiga do continente europeu. A rebelião militar organizada pelo MFA, uma conspiração dirigida pela oficialidade média das Forças Armadas que evoluiu, em poucos meses, de uma articulação corporativa para a insurreição, foi fulminante.
Abatida militarmente por uma guerra sem fim, exausta politicamente pela ausência de base social interna, esgotada economicamente por uma pobreza que contrastava com o padrão europeu, e cansada culturalmente pelo atraso obscurantista que impôs durante décadas, poucas horas foram suficientes para uma rendição incondicional. Foi nesse momento que o processo revolucionário que comoveu Portugal se iniciou. A insurreição militar precipitou a revolução, e não o contrário.
Toda revolução tem o seu pitoresco. Nunca saberemos ao certo da veracidade maior ou menor dos pequenos episódios. Ma si non é vero, é bene trovato. Nas primeiras horas da manhã, quando uma coluna de carros militares descia a Avenida da Liberdade em direção ao Terreiro do Paço, respeitando o semáforo, as floristas do Parque Mayer lhes perguntam o que estava acontecendo, e os soldados respondem que vieram derrubar a ditadura. Elas, mulheres do povo mais sofrido, na sua alegria, de tão felizes lhes oferecem cravos vermelhos e assim, sem o saber, batizaram a revolução com o nome de uma flor.
A revolução tardia
Apesar de seus longos 48 anos, a queda do regime encabeçado por Marcelo Caetano foi, paradoxalmente, uma surpresa, sobretudo depois do fracasso do levante de Caldas da Rainha, em 16 de março, um mês antes do triunfo inesperado, mas quase instantâneo da insurreição de 25 de abril.
Os governos de Londres, Paris ou Berlim sabiam que o pequeno país ibérico vivia há décadas uma situação anacrônica: último Estado europeu enterrado em uma guerra colonial em três frentes sem perspectiva de solução militar: um “Vietnã africano” condenado até por resolução da ONU, que não seria possível sem a anuência de Washington, que se distanciava do nacional-imperialismo português.
A ditadura, já senil de tão decadente, ainda impunha um regime implacável na metrópole. Mantinha uma polícia de dois mil facínoras profissionais – a PIDE/DGS – que se apoiava em dezenas ou, talvez, até centenas de milhares de informantes, conhecidos como os “bufos”, e garantia uma atmosfera social de asfixiante repressão, prisão dos ativistas, com especial perseguição de militantes do Partido Comunista, e as lideranças da oposição no exílio.1
Controlava através da censura qualquer opinião crítica ao governo, proibia as atividades sindicais, reprimia o direito de greve, mantinha um exército de alistamento obrigatório de altíssimo custo econômico e, socialmente, insustentável depois de 13 anos de uma guerra colonial “sem fim”. No entanto, nem mesmo Washington, tinha previsto o perigo de uma revolução.A explicação histórica mais estrutural da estabilidade do regime salazarista remete à sobrevivência tardia, uma geração depois do final da Segunda Guerra Mundial, de um imenso Império na África e na Ásia, formado no alvorecer da época moderna.
O regime salazarista era um anacronismo histórico, uma aberração social e uma monstruosidade política. Em 28 de maio de 1926, um golpe de Estado protofascista derruba a primeira república portuguesa, instalando uma ditadura militar liderada pelo general Gomes da Costa, sucedido pelo general Carmona. Os chefes militares convidam Antonio de Oliveira Salazar, até então um professor de economia em Coimbra, para ser ministro das Finanças, cargo que só assumirá em 1928, quando tinha 39 anos. Assumirá a posição de primeiro-ministro em 1932.
Conhecido como Estado Novo, o regime não parecia muito excepcional nos anos trinta, quando uma fração da classe dominante europeia abraçou um discurso nacionalista exaltado, e recorria em larga escala, mesmo em sociedades mais urbanizadas e, economicamente, mais desenvolvidas, aos métodos da contrarrevolução para evitar revoluções sociais como o Outubro russo. A ditadura em Portugal espantaria, no entanto, pela sua longevidade.
O fascismo “defensivo” deste Império desproporcional e semi-autárquico sobreviverá a Salazar, impedido por razões de saúde desde 1966, permanecendo incríveis 48 anos no poder. A burguesia deste pequeno país resistirá à vaga de descolonização dos anos 1950 por um quarto de século. Encontrará forças para enfrentar, a partir dos anos 1960, uma guerra de guerrilhas em África, na Guiné-Bissau, Angola e Moçambique, mesmo se, na maior parte desses longos anos, mais uma guerra de movimentos que uma guerra de posições, ainda assim, sem solução militar possível.
Mas a guerra sem fim acabou destruindo a unidade das Forças Armadas. Quis a ironia da história que tenha sido o mesmo exército que deu origem à ditadura que destruiu a Primeira República, que tenha derrubado o salazarismo para garantir o fim da guerra.
A reforma pelo alto, por deslocamentos internos do próprio salazarismo, a transição negociada, a democratização pactuada, tantas vezes esperada, não veio. Os deslocamentos da oficialidade média expressavam o desespero das classes médias com a obtusidade da ditadura. O obscurantismo sufocava a nação. Depois da insurreição militar abriu-se uma janela de oportunidade histórica, e o que as classes proprietárias evitaram fazer por reformas, as massas populares se lançaram à conquista pela revolução. O salazarismo obsoleto de Caetano acabou acendendo a faísca do mais profundo processo revolucionário na Europa Ocidental, depois da Guerra Civil Espanhola, em 1939.
A revolução colonial
Em 1972, o general Antônio Spínola publicou o livro Portugal e o Futuro. O Governo de Marcelo Caetano autorizou a publicação do livro. O parecer favorável foi feito por ninguém menos que o general Costa Gomes.2 A guerra nas colônias mergulhou Portugal em uma crise crônica. Um país de dez milhões de habitantes, acentuadamente defasado da prosperidade europeia dos anos 1960, sangrando pela emigração da juventude que fugia do serviço militar e da pobreza, não podia continuar mantendo um exército de ocupação de dezenas de milhares de homens, indefinidamente, em uma guerra africana. O que não se sabia, então, era que o livro de Spínola era somente a ponta de um iceberg e que, clandestinamente, na oficialidade média, já estava se articulando o Movimento das Forças Armadas, o MFA. A fraqueza do governo Marcelo Caetano era tão grande que cairia como uma fruta podre, em horas. A nação estava exaurida pela guerra. Pela porta aberta pela revolução anti-imperialista nas colônias, iria entrar a revolução política e social na metrópole.
O serviço militar obrigatório era de assombrosos quatro anos, dos quais pelo menos dois eram cumpridos no ultramar. Mais de dez mil mortos, sem contar os feridos e mutilados, na escala de dezenas de milhares. Foi do interior desse exército de alistamento obrigatório que surgiu um dos sujeitos políticos decisivos do processo revolucionário, o MFA. Respondendo à radicalização das classes médias da metrópole e, também, à pressão da classe trabalhadora na qual uma parcela dessa oficialidade média tinha sua origem de classe, cansados da guerra, e ansiosos por liberdades, rompiam com o regime.
Estas pressões sociais explicam, também, os limites políticos do próprio MFA, e ajudam a compreender por que, depois de derrubar Caetano, entregaram o poder a Spínola. O próprio Otelo, defensor, a partir do 11 de março, do projeto de transformar o MFA em movimento de libertação nacional, à maneira de movimentos militares em países da periferia, como no Peru do início dos anos 1970, fez o balanço com uma franqueza desconcertante: “Este sentimento arraigado de subordinação à hierarquia, da necessidade de um chefe que, por cima de nós, nos orientasse no “bom” caminho, nos perseguiria até o final”.3
Esta confissão permanece uma das chaves de interpretação do que ficou conhecido como o PREC (processo revolucionário em curso), ou seja, os doze meses em que Vasco Gonçalves esteve à frente do II, III, IV e V governos provisórios. Ironicamente, assim como muitos capitães se inclinavam a depositar excessiva confiança nos generais, uma parcela da esquerda entregava aos capitães, ou à fórmula unidade do povo com o MFA, defendida pelo PCP, a liderança do processo.
Diz-se que, em situações revolucionárias, os seres humanos excedem-se ou se elevam, entregando-se na melhor medida de si próprios. Aparece, então, o que têm de melhor e pior. Spínola, enérgico e perspicaz, era um reacionário pomposo, com poses de general germanófilo, com seu incrível monóculo do século XIX. Costa Gomes, sutil e astuto, era, como um camaleão, um homem da oportunidade. Do MFA surgiram as lideranças de Salgueiro Maia ou Dinis de Almeida, valentes e honrados, mas sem educação política; de Otelo, o chefe do COPCON, uma personalidade entre um Chávez e um Capitão Lamarca, ou seja, entre o heroísmo da organização do levante, e o disparatado das posteriores relações com a Líbia e as FP-25 de abril; de Vasco Lourenço, de origem social popular, como Otelo, atrevido e arrogante, mas tortuoso; de Melo Antunes, instruído e sinuoso, o homem chave do grupo dos nove, o feiticeiro que termina prisioneiro de suas manipulações; de Varela Gomes, o homem da esquerda militar, discreto e digno; de Vasco Gonçalves, menos trágico que Allende, mas, também, menos bufão que Daniel Ortega. Foi da tropa, também, que surgiu o “Bonaparte”, Ramalho Eanes, sinistro, que enterrou o MFA.
Três etapas em processo
A queda do regime foi o ato inaugural de uma etapa política de radicalização popular mais profunda — uma situação pré-revolucionária — em que foram sendo construídas as experiências de auto-organização. Podemos dividir o processo em três conjunturas sempre mais radicalizadas à esquerda:
(a) de abril de 1974 até 11 de março de 1975: abriu-se uma situação pré-revolucionária semelhante à do Fevereiro russo4 em que se garantiram as liberdades democráticas e o cessar-fogo em África derrotando dois golpes e o projeto spinolista de consolidação de um regime presidencialista;
(b) entre 11 de março e julho de 1975: uma situação revolucionária semelhante à que precedeu o Outubro russo, com a grande fuga burguesa, a nacionalização de parte das maiores empresas, o reconhecimento das independências — menos Angola — e a generalização da auto-organização de massas, sobretudo no Exército, mas sem que o duplo poder encontrasse centralização;
(c) finalmente, a crise revolucionária, entre julho e novembro de 1975, com a cisão do MFA, a independência de Angola, a radicalização anticapitalista, desgarramentos de bases de massas da influência do Partido Socialista (PS) e do Partido Comunista Português (PCP), formação dos Soldados Unidos Venceremos (SUV), auto-organização de soldados e marinheiros, e manifestações armadas, uma antessala de uma revolução social na qual um deslocamento do Estado ou um golpe contrarrevolucionário tornavam-se inadiáveis.5
A burguesia prepara o golpe
A primeira tentativa de golpe fracassou em 28 de setembro, um chamado público de Spínola à “maioria silenciosa”. Cento e cinquenta conspiradores foram presos durante o dia. Obrigado a renunciar, mas ileso, Spínola entregou a presidência para o general Costa Gomes. Este assumiu o III Governo Provisório, mas Vasco Gonçalves permaneceu primeiro-ministro. As energias do projeto de neocolonialismo à “inglesa” não tinham, todavia, se esgotado. Buscariam novamente o putsch “korniloviano” em 11 de março, com a tentativa de bombardeio de Lisboa.
Mais uma vez, as barricadas levaram muitos milhares às ruas. No dia seguinte, diante do pânico burguês, a estatização dos principais bancos. O segundo golpe foi a última e desesperada tentativa da fração burguesa que se opunha à independência imediata das colônias e contou com a participação da Guarda Nacional Republicana (GNR), equivalente às PMs no Brasil. O Regimento de Artilharia Ligeira (Rali) de Lisboa foi bombardeado e cercado por unidades de paraquedistas. Um soldado morreu, mas o golpe foi desbaratado.
Spínola e outros oficiais cúmplices fugiram para Espanha, onde Franco os protegeu. Muitos vieram, depois, para o Brasil, onde Geisel os hospedou. Na sequência, os trabalhadores bancários entraram em greve política e assumiram o controle do sistema financeiro. O MFA criou o Conselho da Revolução e decretou a nacionalização dos sete grupos bancários portugueses mais importantes. Outras vieram, nos seguros, siderurgia, cimentos, etc… Muitas empresas foram ocupadas pelos trabalhadores. Grande parte da burguesia entrou em pânico e, diante do imponderável, abandonou o país.
O IV Governo Provisório instalou-se em 26 de março. A África estava perdida. A burguesia passou a temer o pior, também, na metrópole. Reorientou-se, apressadamente, para o projeto europeu. A reconstrução da autoridade do Estado, a começar pelas Forças Armadas, ainda permanecia a prioridade. O mais complexo, contudo, continuava sem solução: tinha que improvisar uma representação política, atrair a maioria das classes médias e derrotar os trabalhadores.
Não tendo mais Spínola como carta na manga – e debilitados o Partido Popular Democrático (PPD) e Centro Democrático Social (CDS) pelas ligações com Spínola –, a burguesia não tinha instrumentos diretos – a não ser parte da imprensa e o peso sobre a alta hierarquia das Forças Armadas – e precisava recorrer à pressão da burguesia europeia e estadunidense sobre a social-democracia e sobre a União Soviética para que enquadrassem o Partido Socialista (PS) e, sobretudo, o Partido Comunista Português (PCP).
A hora da vertigem
Depois de 11 de março veio a segunda primavera das utopias. Lisboa era a capital mais livre do mundo. Os trabalhadores exigiam a independência das colônias, o retorno dos soldados, as liberdades nas empresas, salários, trabalho, terra, educação, saúde, previdência. Aprendiam no calor da luta que sem expropriações não poderiam conquistá-las. Começava a etapa do que foi denunciado como “assembleísmo”, ou seja, a dualidade de poderes.
Em vagas de lutas sucessivas, surgiram comissões de trabalhadores em todas as grandes e médias corporações como a Companhia União Fabril (CUF) – só ela, 186 fábricas – a maioria concentrada no Barreiro, cidade industrial do outro lado do Tejo. Champalimaud, um dos líderes mais influentes da burguesia reagiu declarando “os operários são atualmente demasiado livres”.6
O muralismo político – painéis à mexicana, grafites à americana, “dazibaos” à chinesa, além de simples pichações – fazia das ruas de Lisboa uma expressão estético-cultural desse “universo diverso’ da revolução. Havia de tudo, do mais solene ao mais irreverente. A porta do cemitério, o impagável,“Abaixo os mortos, a terra para quem nela trabalha”. Nas grandes avenidas, o dramático, “Nem mais um só soldado para as colônias”. Na região das Avenidas novas – bairros privilegiados – “Os ricos que paguem pela crise”, assinado pela União Democrático Popular (UDP) e, ao lado, “A UDP que pague pela crise”, assinado “Os ricos”.
A Igreja não escapou à fúria do processo revolucionário. Em Lisboa, as Igrejas ficaram desertas de jovens. Associada durante décadas ao salazarismo – quando o Cardeal Cerejeira foi o braço direito do regime a Igreja encontrava-se flagrantemente desautorizada, em especial no Sul do País, diante de amplos setores sociais. As ocupações estendiam-se aos meios de comunicação. No dia 27 de maio, os trabalhadores da Rádio Renascença ocuparam os estúdios e o centro transmissor. Foi abandonada a designação de “Emissora Católica”. A emissora passou a transmitir uma programação de apoio às lutas dos trabalhadores.
Os operários da Lisnave deram o exemplo – foram a “Putilov” da revolução portuguesa – organizando piquetes para ocupar o seu sindicato. Na Amadora – a “Vyborg” ou o “ABC” de Lisboa, uma das grandes concentrações operárias –, a Sorefame, uma das maiores indústrias metalúrgicas do país entrou em greve, assim como a Toyota, a Firestone, a Renault, a Carris (motoristas de ônibus), a TAP e a CP (ferroviários), mas também pelo interior, como entre os têxteis da Covilhã, ou nas minas da Panasqueira. A onda de auto-organização – formação nas empresas de comissões de trabalhadores – que aprofundou a dinâmica revolucionária da situação, produziu reações. “Os sindicalistas do PCP queixam-se amargurados: ‘Os grevistas fazem tábua rasa das formas tradicionais de luta, nem tentam negociar e por vezes decidem parar mesmo antes de redigirem o caderno reivindicativo. Em muitos casos, os trabalhadores não se limitam a exigir mais dinheiro, passam à ação direta, tentam tomar o poder de decisão e instituir a cogestão sem estarem preparados para isso”’.7
Ainda quando o PCP depositava toda a sua imensa autoridade no intuito de frear as greves, as invasões de latifúndios no Alentejo se generalizaram, ao mesmo tempo em que as ocupações de casas desabitadas em Lisboa e Porto se alastravam; os “saneamentos” – o eufemismo para expulsão dos fascistas – realizavam depurações na maior parte das empresas, a começar pelo serviço público, e a pressão estudantil nas Universidades impunha assembleias deliberativas. Toda a antiga ordem parecia desabar. “A criação do salário-mínimo nacional abrange mais de 50% dos assalariados não agrícolas. São os trabalhadores menos qualificados, as mulheres, os mais oprimidos, que constituem a vanguarda da conquista do poder de compra e dos direitos sociais. O poder de compra dos assalariados aumenta 25,4% em 1974 e 75; os salários que, em 1974, já são 48% do rendimento nacional, passam a 56,9% em 1975. A estrutura da propriedade modifica-se: 117 empresas são nacionalizadas, 219 outras têm mais de 50% de participação do Estado, 206 são intervencionadas, abrangendo 55 mil operários; 700 empresas entram em autogestão, com 30 mil operários”.8
Cada revolução tem o seu vocabulário. Como o pêndulo da política inclinou-se para a extrema-esquerda, o discurso da direita girou para o centro, e o do centro para a esquerda. O travestismo político – o descompasso entre as palavras e os atos – fez o discurso dos partidos eleitorais tornar-se irreconhecível. Mas, em Portugal, as forças burguesas superaram o inimaginável. Desde o PPD de Sá Carneiro, hoje o PSD de Durão Barroso, até o Partido Popular Monárquico (PPM), todos reivindicavam alguma forma de socialismo, o que explica a retórica da Constituição que até hoje produz espanto.
As eleições para a Constituinte
A situação aberta pela queda de Spínola trazia maiores e mais perigosos desafios. A burguesia exigia ordem e, sobretudo, respeito à propriedade privada. Diante das pressões, o PS e o PCP as únicas forças políticas – e, de longe, majoritárias – com autoridade na direção dos Governos Provisórios – além do MFA, dividiram-se e provocaram uma cisão irremediável entre os trabalhadores.
Um ano depois do 25 de Abril, as eleições para a Constituinte surpreenderam. O PS foi o grande vencedor com espetaculares 37,87%. O PCP decepcionou com somente 12,53%. Revelou-se um abismo entre sua força de mobilização social e a eleitoral. O PPD, hoje conhecido como PSD, de Sá Carneiro, um líder liberal dentro das estruturas do regime salazarista, ficou em segundo lugar com 26,38%. O CDS (na extrema-direita, dirigido por Freitas do Amaral), o Movimento Democrático Português (MDP) – uma colateral do PCP que vinha do tempo das eleições sob Caetano – e a UDP de inspiração “albanesa”, conseguiram, também, representação parlamentar.
Três projetos e três legitimidades entraram em conflito. Essa divisão atravessou, também, o MFA. Surgiram três campos: o do governo de Vasco Gonçalves com o PCP, que se apoiava na maioria do MFA; o de Soares, que reivindicava a autoridade da votação nas umas e tinha o apoio dos Estados Unidos e da Europa; e o mais frágil, subjetivamente, porém, o mais temido, porque anticapitalista, aquele que nascia dos embriões de poder popular.
No dia 25 de novembro de 1975 explodiu uma rebelião militar no quartel dos paraquedistas que não aceitaram uma provocação do VI Governo provisório, liderado pelo almirante Pinheiro de Azevedo, que tinha substituído o coronel Vasco Gonçalves em agosto, e imposto a dissolução de sua unidade militar. Foi o sinal para um contragolpe militar chefiado por Ramalho Eanes, com o apoio de todas as forças reacionárias e contrarrevolucionárias. Em abril de 1976, com o apoio do PS de Soares, Eanes foi eleito presidente da República. A situação revolucionária estava encerrada.
Notas
1 Ainda hoje “não se sabe quantos informadores teria a DGS, em 1974“. O Serviço de Coordenação da Extinção da PIDE/DGS e Legião Portuguesa (que ficou conhecido por “Comissão de Extinção”) calculou 20 000. Kenneth Maxweel, historiador, citando um “documento encontrado em Caxias” apresentou esta contabilidade: 1 em cada 4000 portugueses “teria recebido (…) pagamentos da PIDE/DGS por informações prestadas”.
2 Marcelo Caetano, Depoimento, Rio de Janeiro, Record, 1974, p.194.
3 CARVALHO, Otelo Saraiva de, Memórias de Abril, Los preparativos y el estallido de la revolución portuguesa vistos por su principal protagonista, Barcelona, Iniciativas Editoriales El Viejo Topo, s/data, p.163.
4 As discussões dos tempos da revolução e dos critérios para aferição das relações sociais de força pode ser encontrada em meu livro As esquinas perigosas da História. Situações revolucionárias em perspectiva marxista. São Paulo: Xamã, 2004.
5 Uma fascinante tese sobre o Vinte e Cinco de Abril com inspiração na sugestão braudeliana sobre as longas durações atribui às pressões de uma situação internacional interpretada como adversa e ao atraso material, cultural e político do país, a explicação para seus resultados: “Portugal não revolucionou as estruturas profundas de sua organização socioeconômica (…). A democracia liberal que Portugal nunca havia conhecido de fato, esta sim se instalou, e o liberalismo e o republicanismo do século XIX precisaram, paradoxalmente, da retórica socialista para se implantarem.” Lincoln Secco. A Revolução dos Cravos. São Paulo: Alameda, 2004, p. 153.
6 Champalimaud em declaração ao matutino Diário de Notícias, Lisboa, 25 jun. 1974 apud LOUÇÃ, Francisco. 25 de abril, dez anos de lições. Ensaio para uma revolução. Lisboa: Cadernos Marxistas, 1984, p. 36.
7 Canais Rocha ao Diário de Lisboa, em 24 jun. 1974, apud LOUÇÃ, Francisco. 25 de abril, dez anos de lições. Ensaio para uma revolução. Lisboa: Cadernos Marxistas, 1984, p. 36.
8 LOUÇÃ, Francisco. 25 de abril, dez anos de lições. Ensaio para uma revolução. Lisboa: Cadernos Marxistas, 1984, p. 35.
Em Ninguém disse que seria fácil, Arcary lança uma importante reflexão à militância socialista, muitas vezes presa às teorias, análises de conjuntura e trabalho analítico e conceitual. Sem se privar da relação com a teoria, os escritos focam outros aspectos da luta como o sentido humano, as relações entre as pessoas e suas contradições, a necessidade de se deixar de lado o individual ante o coletivo. Para o autor, o momento é de levantar tais questionamentos, especialmente diante da ampla vitória do capital e da extrema direita.
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Valerio Arcary é doutor em história pela USP, professor do Centro Federal de Educação Tecnológica e autor de As esquinas perigosas da História (São Paulo, Xamã, 2004). É um dos autores de István Mészáros e os desafios do tempo histórico (Boitempo, 2011), organizado por Ivana Jinkings e Rodrigo Nobile e de Ninguém disse que seria fácil (Boitempo, 2022).
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