Ficção americana: antirracialista e anti-identitário
A preciosidade de "Ficção americana" foi a de demonstrar o antirracismo reduzido à lógica comportamental cuja característica é o não questionamento da própria ideia de raça. Um culturalismo difuso, repousado no juízo de que é possível criar uma cultura antirracista sob o regime capitalista através de manuais.
Por Douglas Barros
Cenas
1.
Corre pela boca pequena que certa feita um docente, medalhão de filosofia na USP que já foi se encontrar com o mal irremediável, deparou-se com um excelente projeto sobre Schelling. A banca avaliadora, surpresa diante de um programa de estudos tão sólido e avançado, tinha dado como certa a aprovação. No dia da entrevista, ao ser convocado, o candidato se postou como manda o figurino respondendo de maneira objetiva todas as questões. Dado momento, porém, o medalhão olhou para o projeto e para o candidato e disse-lhe à queima roupa: “Mas você deveria pesquisar sobre questão racial”. Sim, o candidato era um dos raros estudantes negros que, nos anos 1990, habitavam a FFLCH, lugar que à época assemelhava-se mais com a Dinamarca.
2.
Um grande amigo, a quem devo grandes lições sobre a história da música, violinista e negro – retinto como dizem hoje – conversava comigo num bar sobre a história dos instrumentos musicais e algumas frustrações de sua faculdade de música, até que foi interpelado por uma senhora – não por acaso branca – que sorrindo sacou:
– Acho que você se daria muito melhor se voltasse a suas raízes e se dedicasse a outro instrumento como cavaquinho! Posso me sentar aqui? O papo de vocês está muito legal.
Indignados retrucamos a um só tempo:
– NÃO!
3.
Faz-se um silêncio até que Brittany, uma aluna branca, levanta o braço e diz:
– Não tenho nada para falar do texto, mas acho que aquela palavra no quadro está errada!
(No quadro, lê-se “The artificial nigger”, Flannery O’Connor – importante escritora que se destacou nos anos 1940 por apresentar a decadência sulista nos EUA)
O professor retruca:
– Está de acordo com o dicionário, até onde eu sei!
Mas a garota insiste com indignação na voz:
– Não é engraçado. Não deveríamos usar a palavra com N.
– Prestem atenção! – retoma o professor – É uma aula de literatura do sul dos Estados Unidos! Vamos nos deparar com linguagens antiquadas… grosseiras… mas somos todos adultos e acho que podemos entender isso a partir do contexto que foi escrito.
– Bom, eu só acho – volta a interromper Brittany – essa palavra muito ofensiva!
– Com todo respeito, Brittany, se eu superei isso, você também consegue!
– Eu não vejo o porquê…
A cena e interrompida, Brittany aparece saindo da sala chorando e Monk, o personagem central de Ficção americana, retoma irritado a palavra dizendo:
– Certo, agora alguém TEM UM COMENTÁRIO SOBRE O QUE LEU DO TEXTO?
O filme
Ficção americana, filme dirigido pelo estreante Cord Jefferson, trata-se de uma adaptação do livro Erasure, de Percival Everett (sem tradução no Brasil) centrado em Thelonius “Monk” Ellison (Jeffrey Wright). Professor e escritor em crise: segundo as editoras, suas obras são consideradas difíceis e seria melhor, como negro, escrever “coisa de negro”. Lembrança, aliás, sempre suscitada pelo seu agente, Arthur (John Ortiz), que embora acredite no potencial de seu trabalho não deixa de advertir que seus livros, apesar de grandiosos do ponto de vista literário, não vendem.
Acossado pelos pares por conta das tensões que desenvolve com seus alunos engolfados na crença de que o racismo se combate apenas com uma mudança de comportamento, Monk sai de férias. No trajeto, participa de um congresso literário e constata que livros que reforçam a ideia de uma identidade fechada e estereotipada do negro são sucessos.
Sintara Golden (Issa Rae) é a autora sensação do momento – e qualquer semelhança com nossa realidade não será mera coincidência, mesmo os trejeitos da bela interpretação de Issa Rae trazem lembranças bem brasileiras (e atire a primeira pedra quem assistiu e não pensou o mesmo).
Cansado de ver reforçado o caráter identitário do negro, que o objetifica e o coloca na camisa de força do estereótipo, Monk resolve fazer uma boutade: escreve um romance suscitando todos os aspectos identitários dos clichês estereotipados. Se seu objetivo, entretanto, era o de chocar os editores, o livro não só é publicado como traz consigo uma proposta quase milionária, tornando-se rapidamente premiado.
Diante da doença da mãe, da perda repentina da irmã e em crise financeira, Monk se vê na armadilha que ele próprio criou assumindo a tarefa de vestir a camisa de força do estereótipo identitário tão esperado pela classe-média ilustrada. Com ajuda do editor, cria a personagem de um escritor fugitivo; recurso necessário para assinar com a editora. Essa dupla identidade – que podemos ler como o duplo referencial do negro pensado por Du Bois (2021) – traz tensões aos seus relacionamentos especialmente com seu irmão, Cliff (Sterling K Brown) e sua namorada, Coraline (Erika Alexander).
O filme, no entanto, perde a tensão crítica quando passa a se centrar mais na vida familiar de Monk do que nas escolhas que ele fez – algo a se esperar do cinema hollywoodiano, diga-se de passagem. Em todo caso uma grande oportunidade perdida, que poderia tê-lo feito um filme paradigmático.
A atuação do ótimo elenco, todavia, sustenta o enredo. A começar por Jeffrey Wright que consegue romper com o pandêmico anti-intelectualismo atual ao traçar um Monk que, sendo um grande intelectual, nem por isso é pedante. Destaque também para Sterling Brown que, no papel de Cliff, o irmão mais novo, desenvolve uma personagem cheia de nuanças e com uma identidade ambígua pela sua homossexualidade.
A preciosidade de Ficção americana foi a de demonstrar o antirracismo reduzido à lógica comportamental cuja característica é o não questionamento da própria ideia de raça. Um culturalismo difuso, repousado no juízo de que é possível criar uma cultura antirracista sob o regime capitalista através de manuais. Que, sejamos francos, é só mais um dos traços da crença no capitalismo com rosto humano.
Dito isso, permito-me agora retirar de Ficção americana uma cena específica para demonstrar o porquê é antirracialista e anti-identitário:
Antirracialista
Não basta ser antirracista, é preciso ser antirracialista porque a racialização mantém intacta as formas de exclusão, exploração e desumanização próprias à raça. Essa é uma das premissas básicas de Monk. Posição paradoxal, difícil de ser sustentada e, para aqueles que ganham dinheiro com o racismo, assustadora.1 Há uma cena específica em que isso aparece:
Monk sai do aeroporto em Boston – após ter folgas forçadas da faculdade – e caminha com o celular nos ouvidos; do outro lado da linha, seu agente, Arthur, informa que a Echo – editora de prestígio – recusou sua obra e lê o parecer de um dos avaliadores:
– O Patrick da Echo não quis! Quem se importa? Ele é um velho bêbado… Ele disse: o livro é primorosamente construído, com personagens bem construídos e linguagem rebuscada, mas é difícil de entender como a reinterpretação d’Os persas de Ésquilo se relaciona com a experiência afro-americana.
A cena continua com Monk entendendo que seu problema é justamente o de não escrever sobre jovens negros sendo baleados pela polícia ou negras grávidas abandonadas. E eis a ironia: Monk diz não acreditar em raças no exato momento em que estende o braço, um táxi passa por ele e o ignora, pegando um cara branco a poucos passos. Nesse momento Arthur encerra:
– Eu sei. O problema é que todo mundo acredita.
Essa é a contradição fundamental que move as questões raciais contemporâneas: cada vez mais a noção racial tornou-se naturalizada no discurso hegemônico, mas essa naturalização não se dá simplesmente por um ato de vontade senão por uma organização social delimitada pela raça. Não adianta apenas não acreditar. De modo que, fundada no colonialismo, ela foi subsumida pela forma de gestão na passagem ao capitalismo.
Não acreditar na raça, como faz Monk, é como não acreditar em Deus, embora não exista, e não há nada que a justifique senão o controle e a administração de corpos marcados pela racialização. Ela orienta a vida concreta da sociedade no capital organizando o imaginário social. Então, qual o significado de dizer: “eu não acredito na raça”?
Não acreditar é se insurgir contra o horizonte posto. É questionar o lugar imaginário pré-determinado no qual qualquer tipo de mudança não passa de um pequeno ajuste de lugar como se isso consistisse em uma transformação. A característica fundamental do antirracismo-racialista é que ele depende da manutenção da ideia de raça para sua ação e, portanto, não a questiona, mas busca encontrar um lugar ao racializado na ordem exploratória posta. Não acreditar na raça, como faz Monk, é então apostar no que está para além desse horizonte: um gesto que suspende a naturalização da raça e convida a ultrapassá-la ao remontar seu passado buscando superar sua violência presente.
Monk não me parece ser da turma que acredita que a raça é a raça humana, mas daquela que sabe que a raça se construiu para escravizar e justificar essa mesma escravidão na aurora do mercantilismo (embrião do capital). Portanto, se ela se mantém é porque sua funcionalidade foi absorvida pelo modo de produção atual para manter o processo de exclusão que organiza a desigualdade inerente ao sistema.
Assim, a única posição coerente é aquela que para além de antirracista, como sabemos ser Monk, é também antirracialista; aquela que visa superar a estrutura em que a noção racial opera. Essa é a atitude obscena de dizer “eu não acredito na raça”, ela revela o seu real: uma sustentação que se organiza a partir da escravidão e segue orientando a gestão do capital na passagem da sociedade escravocrata à liberal burguesa.
Para entender a questão da suspensão provocada pela descrença, convido o hipotético-leitor a fazer um exercício sobre aquilo que funda a noção racial.
Breve introdução da raça como construção imaginária
Para Mbembe, por exemplo, a ideia de raça por natureza é de ordem disfuncional, quer dizer, tem uma capacidade de se metamorfosear sob vários regimes mudando de sentido. Para compreendê-la então é preciso antes se debruçar na sua finalidade. Para que raça? E não; o que é raça? Esse deslocamento da questão permite apreender que a finalidade da construção racial se efetiva por uma organização exploratória das gentes não-europeias na aurora da modernidade.
Essa dissociação do caráter da raça presta os serviços de controle e construção dos corpos exploráveis que organizam o imaginário necessário à exploração mercantilista e colonial. A ideia de raça assim “consiste naquilo que se consola odiando, manejando o terror, praticando o alterocídio, isto é, constituindo o outro não como semelhante a si mesmo, mas como objeto propriamente ameaçador” (Mbembe).
A raça não é uma essência, mas um estado, e todo estado de raça vale por outra coisa que não ele mesmo. Ele, portanto, nos remete a outra coisa que não o próprio indivíduo que se apresenta, mas ao complexo primário de formação da diferença. Ignora-se o que o outro racializado é em nome de uma fantasia que governa seu imaginário: uma identidade fechada que serve para construção da administração social. Noutros termos, a construção da raça elabora a identidade do indivíduo racializado, dando-lhe um lugar esperado na ordem social.2 Ela foi o primeiro ato identitário.
Por isso, Mbembe dirá: “a raça não existe enquanto fato natural, físico, antropológico ou genético. A raça não passa de uma ficção útil, uma construção fantasmática ou uma projeção ideológica, cuja função é desviar a atenção de conflitos considerados, sob outro ponto de vista, como mais genuínos – a luta de classes ou a luta de sexos, por exemplo” (Mbembe, 2019, p.28-9). Ela, portanto, se constitui como ficção que organiza o horizonte imaginário social.
O colonizador europeu, no afã identitário de construir uma significação e produzir a diferença como inferioridade para legitimar a colonização, fez com que a noção de raça representasse “as humanidades não europeias como se tivessem sido tocadas por um ser inferior” (Mbembe, 2019, p.42). E, desse modo, a raça adubou o solo da modernidade, mantendo-se como horizonte administrativo cuja herança foram os lugares geridos na passagem ao capital, organizando a exclusão e a superexploração sistemática dos racializados.
Por isso, a formulação racialista da sociedade moderna respondeu por uma organização que viabiliza o modo de produção e reprodução dessa mesma sociedade. Isso possibilitou que a ideia de raça atravessasse os séculos e se naturalizasse. No ocaso da modernização, “beneficiando-se do processo de globalização e dos efeitos contraditórios que provoca por toda parte, a lógica da raça volta a irromper na consciência contemporânea. Um pouco por todo lado se reaviva a fabricação dos sujeitos raciais. (Mbembe, 2019, p.47)”. Eis o momento em que o identitarismo grassa como gestão contemporânea dos conflitos.
Sendo a raça ligada à esfera de organização e controle, portanto, ao poder, a própria organização social absorve a construção da diferença exploratória e organiza os espaços distribuídos na ordem social. Num momento de crise, a racialização cresce à medida que o bode expiatório é criado. Evidentemente ele sempre pertence a outra raça para manter a coesão do grupo identitário. Num capitalismo de crise e de concorrência universalizada, a identidade racial fechada será o último nicho de proteção social.
Assim, ao ser uma ficção, a raça não deixa de promover realidade. Além de desacreditar dela é preciso, no entanto, ir até o fundamento social que a mantém, ou seja, ao capitalismo que a subsumiu. Quando Monk diz não acreditar em raça, é isso que está em jogo: a possibilidade de um antirracismo-antirracialista que coloque em xeque a noção de raça e nos dê coordenadas para superar os limites da sociedade baseada no capital.
Anti-identitário
É curioso que Monk, após ter seu livro aceito, tenha que desenvolver um duplo de si mesmo. Quer dizer, ele precisa se encaixar no negro imaginário que a classe-média “ilustrada” espera e, ao mesmo tempo, manter-se como o professor erudito de literatura que sempre foi. O filme, talvez de maneira inconsciente, recoloca o duplo sistema de referências que acompanha o negro desde a criação da raça. Uma tensão que não é a do sujeito consigo mesmo, mas a de uma identidade construída para ele e outra que ele busca construir.
Rios de tintas correram no século XX para deixar claro que a identidade, se levada às últimas consequências como um processo fechado, torna-se objetificação. Embora seja uma ilusão necessária, a partir do momento que se suprime a possibilidade de sua construção, ela se torna negação ao processo que forja a individuação. Ao dar uma identidade fixa ao outro, como fizeram os colonizadores europeus, o que se suprime é a capacidade do indivíduo, e das populações não-brancas, ser o que quiser ser. Ou seja, a liberdade.
Quando a metrópole europeia instituiu identidades a todas as populações de além-mundo, no início da modernidade, deu-se o passo decisivo do identitarismo: o negro é só o negro. Hoje a recomposição identitária se dá por outras vias mantendo, porém, o mesmo sentido: busca o esvaziamento das potencialidades transformadoras criando identidades imaginárias a partir da gestão do capital que conforma grupos de um pertencimento administrado.
E para entender essa engenharia social é preciso lembrar que, diferente do período fordista, cujo domínio se fazia de maneira unilateral e coercitiva, o indivíduo que nasceu sob o pós-fordismo é convidado a se engajar na sua própria dominação. Num cenário de expectativas decrescentes, e no qual tudo se tornou concorrência, a única arma do indivíduo é a disciplina, a autoadministração e o autocuidado. O paradoxo é que quanto mais esse indivíduo concebe sua posição, como a de um agente autônomo, mais se prende às formas de disciplina.
Ele tem por resultado a construção de um Eu igual ao Eu forjado pela concorrência. No novo acerto administrativo, coloca-se central, portanto, a esfera da regulamentação do direito privado. Para evitar qualquer conflito político, a gestão contemporânea do capital busca a consolidação de um pertencimento identitário representável na esfera estatal: as identidades devem ser identificáveis e esvaziadas de acordo com a necessidade. A comunidade imaginária se torna um nicho de mercado organizado pela representatividade.
Enfim, é verdade que o filme poderia ter ido mais longe na crítica a esse antirracismo racialista que se dobrou ao identitarismo, capturando a “culpa branca” e tirando dela aplausos. Mas, ainda assim, é sensível e demonstra que o negro não se reduz à caricatura que o discurso atual faz dele. A quebra desse identitarismo, aceito pelo movimento hegemônico, se dá pela recusa de Monk.
O que exigiram dele foi que se reduzisse a essa identidade imaginária esperada pela gestão: um negro que não quer destituir o lugar de fala, mas reforçá-lo pela imagem daquele que venceu e que serve de exemplo. Quer-se uma identidade coisificada em que o identitarizado se torne o objeto de deleite estético e de diluição da “culpa branca” pela sua impotência.
Monk não acredita na raça, por isso ri, pede coisas absurdas e nos faz rir. Um riso que, diante do apego fetichista à identidade imaginária hoje, faz com que aqueles que não se dobraram não se vejam como solitários. Afinal, se há um Monk até em Hollywood é porque muita gente passou a se dar conta da cilada.
Notas
1 Para quem vê contradição entre racismo, antirracismo e grana, recomendo o livro de Pablo Polese chamado Machismo, racismo, capitalismo identitário.
2 Sobre isso o livro Invenção da África, de Mudimbe, é fundamental.
Referências bibliográficas
DU BOIS, W.E.B. As almas do povo negro. Tradução de Alexandre Boide. São Paulo: Veneta, 2021.
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Douglas Rodrigues Barros é escritor, doutor em Ética e Filosofia política pela Unifesp, editor e conselheiro editorial do Lavra Palavra e autor dos livros Lugar de negro, lugar de branco? Esboço para uma crítica à metafísica racial (Hedra, 2019) e Racismo (Fibra/Brasil, 2020). Militante do movimento negro, foi coordenador político da Uneafro.
Um excelente texto…
Congratulações!!!
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