Lições da eleição portuguesa
O pior erro que a esquerda pode cometer é desvalorizar o impacto da contraofensiva dos neofascistas. Se não forem interrompidos, avançarão.
Foto: Dominik Kuhn (Unsplash).
Por Valerio Arcary
“A dúvida é a sala de espera do conhecimento”
Ditado popular português
1.
No último dia 10 de março, ocorreu a mais importante eleição em Portugal desde a Revolução dos Cravos. Aconteceu um deslocamento de votos à direita e um terremoto de votos à extrema-direita. No próximo dia 25 de abril, aniversário de 50 anos da derrubada ditadura salazarista, estará no poder o governo mais reacionário do último meio século!
O partido neofascista Chega conquistou uma vitória espetacular, encerrando um ciclo de décadas de alternância de governos da centro-direita e centro-esquerda. Mesmo que não venha a ser incorporado ao ministério, André Ventura exercerá um imenso poder de pressão sobre o governo de Luís Montenegro.
Foi a eleição com o maior número de votantes desde 2002: 6.140.289. Mais 750 mil do que em 2022. O campo reacionário, Aliança Democrática e Chega teve a melhor votação deste século: 2.920.086, mais 870 mil do que em 2022. Mas, a centro-direita teve apenas um modesto aumento (+146.700 votos). A esquerda, do Partido Socialista até o Partido Comunista, teve o segundo pior resultado do século, com 2.436.403. Só foi pior em 2011, quando, mesmo assim, teve mais votos do que a direita. O PS perdeu 488 mil votos para 2022.
O Chega teve mais de 1.100.000 votos, subindo 723 mil – número muito semelhante ao da queda da abstenção. O Bloco de Esquerda aumentou, ligeiramente, em comparação com 2022 (+33.800 votos, para 274 mil); mas teve o seu segundo pior resultado eleitoral desde 2002. O PC continuou o seu declínio, com o pior resultado de sempre (202.565); perdeu mais cerca de 34 mil votos.
Em resumo, o naufrágio do governo do PS, depois da renúncia de Antonio Costa, em função de uma investigação suspeita do Ministério Público, dois anos depois da conquista da maioria absoluta, foi desconcertante. Mas não imprevisível.
2.
O governo Lula já completou um pouco mais de um ano de gestão, mas o país continua fragmentado. Isso confirma que, embora em uma relação de forças, politicamente, melhor, porque Lula está no Planalto, a relação social de forças ainda não se inverteu:
(a) as diferentes pesquisas de opinião confirmam que, aproximadamente, metade da população aprova o governo e outra metade desaprova, com pequenas variações. As variações em série longa se mantêm em torno das margens de erro. Há discrepâncias entre o apoio a Lula 47,4% contra 45,9%, e os 40% que dizem reprovar o governo (em janeiro, esse índice era de 39%). Os que aprovam são 38% (uma queda de quatro pontos percentuais em relação ao levantamento anterior), enquanto mais de 18% avaliam a gestão como regular.
(b) o desempenho do governo até agora não conseguiu diminuir a influência da extrema-direita, que mantém uma audiência em torno de um terço da população.1
(c) a divisão sociocultural permanece igual. O bolsonarismo preserva maior influência nas camadas médias que ganham acima de dois salários-mínimos, no sudeste e sul, e entre evangélicos.2 O lulismo é mais influente na maioria mais pobre, nos extremos da escolaridade, nos menos instruídos, e nos que têm nível superior, entre católicos e no Nordeste.3 Em resumo, há poucas mudanças qualitativas. Mas esse quadro não autoriza conclusões tranquilizadoras. Não temos nada a aprender com a derrota do peronismo na Argentina, e do PS em Portugal? Nem sequer alguma dúvida sobre o perigo da linha de ininterruptas concessões? O que vai prevalecer serão mais giros ao “centro”?
O governo não está mais forte, mesmo sendo evidente o contraste na comparação com o governo de Jair Bolsonaro. Depois de um ano de governo, as oscilações nos graus de apoio ou rejeição são pequenas, mas há um viés de baixa mais acentuada no início de 2024. Deslocamentos deste tipo nunca são monocausais. São sempre muitos fatores que incidem sobre a consciência de dezenas de milhões em um país tão desigual. A exploração midiática das fugas de uma prisão de segurança máxima, as chacinas na Baixada Santista e em comunidades do Rio de Janeiro, o crescimento do feminicídios, os roubos de celulares no Carnaval, aumentaram o mal-estar.
A maior epidemia de dengue como efeito colateral de um verão escaldante, antessala de um ano que deve bater todos os recordes históricos de elevação de temperaturas, também. Não deveria nos surpreender que, de longe, os piores resultados estão concentrados entre aqueles que ganham mais de três salários-mínimos, com escolaridade média, homens mais velhos e do Sudeste para o Sul, e evangélicos. Ou seja, no eleitorado de Jair Bolsonaro. Afinal, o fato fundamental da conjuntura foi a manifestação do dia 25 de novembro na Avenida Paulista que aumentou a coesão da corrente de extrema-direita, inclusive com o oceano de bandeiras de Israel. A armadilha bolsonarista voltou às ruas como uma avalanche neofascista. Uma armadilha que colocou um desafio. Por quê?
3.
O caminho da luta política é sinuoso e até labiríntico, cheio de curvas, subidas e descidas, nunca é uma linha reta. A maioria da direção do PT esperou que a exasperação e fadiga do governo de extrema-direita seria o suficiente para Lula derrotá-lo em 2022. Fez a aposta em uma lenta paciência. Venceu, mas foi por pouco. O governo Lula faz agora a aposta de que uma boa gestão, que responda a pelo menos a algumas das necessidades urgentes do povo através de “entregas” será suficiente para vencer em 2026.
Jair Bolsonaro não agirá assim: uma tática quietista de espera. O bolsonarismo é uma corrente de combate. A extrema direita conhece a “patologia” de sua base social. Uma sociedade tão desigual se preserva porque aqueles com privilégios materiais e sociais lutam, furiosamente, para defendê-los. Conhece a prepotência da nova geração burguesa à frente do agronegócio que acumula rancores socioculturais contra o mundo mais cosmopolita das grandes cidades que os despreza como brutos machistas e negacionistas do aquecimento global.
Conhece a arrogância de uma parcela das camadas médias envenenada pelo ódio racista, homofóbico, e pela perda de prestígio social. Conhece a desconfiança anti-intelectual alimentada pelas igrejas-empresas neopentecostais. Sem mudanças muito sérias na experiência de vida – aumento de salários, empregos decentes, educação de qualidade, SUS mais forte, acesso à casa própria – não é possível dividir esta base social.
Derrotar o bolsonarismo exige disposição de luta, habilidade para manobras, audácia para giros, coragem para estratagemas, disposição para confrontos, constância e contenção para ganhar tempo, e depois um novo giro e medição de forças. Mas, até agora, o governo fez, essencialmente, contemporizações. Apostou na “pacificação”. Quase nunca um passo em frente, e depois muitos passos para trás.
Há muitos na esquerda marxista que descrevem esta evolução como tendência à polarização. Em situações de estabilidade do regime democrático-liberal a maioria da população se situa, politicamente, no centro do espectro político, apoiando a centro-direita ou a centro-esquerda, que se alternam na gestão do Estado. Foi assim desde o fim da ditadura, com três governos da centro-direita e depois quatro governos do PT. Esta foi a chave do período mais longo, trinta anos (1986/2016) de estabilidade do regime democrático liberal.
Esta etapa, que era uma hipótese que o marxismo considerava improvável em países da periferia, mas passou a ser possível depois do fim da URSS, se encerrou. Uma das maiores dificuldades da esquerda é admitir que acabou. Mas o que veio depois não se explica em função de uma polarização. Polarização acontece quando os extremos se fortalecem. Não é o que estamos vivendo no Brasil, desde 2016. Desde o golpe institucional, e como efeito da inversão da relação social de forças, somente a extrema direita cresce e “endurece”, exercendo uma pressão de “gravidade” como um arrastão da influência histórica da centro-direita tradicional (MDB, PSDB, União Brasil).
Arrastão unilateral não é polarização. Polarização assimétrica é mais elegante, mas continua sendo desproporcional. No campo da esquerda, lato sensu, se mantém posições, mas não ocorre radicalização. Portanto, a ameaça do neofascismo e seu projeto de subversão bonapartista do regime permanece perigo real no horizonte.
4.
Muitos fatores explicam esta moderação. Medo e insegurança ainda prevalecem no movimento operário e sindical. No povo de esquerda a disposição de luta não é elevada. Não é muito diferente nos movimentos sociais populares. Mas o mais importante são os limites do próprio governo Lula. Eles se expressam em todos os terrenos, mas em nenhum foi mais grave, nas últimas semanas, do que na atitude diante das Forças Armadas. Mesmo depois que ficou claro a cumplicidade com o golpismo. A decisão de não aproveitar a oportunidade do aniversário dos 40 anos do golpe militar de 1964 para uma iniciativa de educação e mobilização política de massas foi desmoralizadora.
O pior erro que a esquerda poderia cometer seria desvalorizar o impacto desta contraofensiva dos neofascistas. Se não forem interrompidos, avançarão. No próximo dia 14 de março, quinta-feira: Quem mandou matar Marielle? E no sábado 23 de março, às ruas, em todo o país: Sem anistia, Ditadura nunca mais, Prisão para Bolsonaro, Palestina Livre!
Notas
1 Em uma escala de 1 a 5, onde 1 é bolsonarista e 5 petista, 25% declaram ser bolsonaristas extremos, na posição 1, e há 7% que se veem como bolsonaristas mais moderados, na posição 2. A taxa de brasileiros extremamente petistas, que se colocam na posição 5 da escala, era de 32% ao fim de 2022, oscilou para 30% em março deste ano, para 29% em junho e agora se manteve em 29%. Os petistas moderados, na posição 4, eram 9% em dezembro de 2022, 10% tanto em março quanto em junho deste ano, e agora são 11%.
2 O índice de bolsonaristas extremos fica acima da média entre brasileiros com renda familiar de 5 a 10 salários (33%), na região Sul (33%), no conjunto das regiões Norte e Centro-Oeste (34%) e no segmento evangélico (38%).
3 Os petistas mais extremos, por sua vez, têm representatividade acima da média na faixa de 45 a 59 anos (39%), entre brasileiros que estudaram até o ensino fundamental (44%), na parcela dos mais pobres (37%), no Nordeste (44%) e entre católicos (37%).
Em Ninguém disse que seria fácil, Arcary lança uma importante reflexão à militância socialista, muitas vezes presa às teorias, análises de conjuntura e trabalho analítico e conceitual. Sem se privar da relação com a teoria, os escritos focam outros aspectos da luta como o sentido humano, as relações entre as pessoas e suas contradições, a necessidade de se deixar de lado o individual ante o coletivo. Para o autor, o momento é de levantar tais questionamentos, especialmente diante da ampla vitória do capital e da extrema direita.
***
Valerio Arcary é doutor em história pela USP, professor do Centro Federal de Educação Tecnológica e autor de As esquinas perigosas da História (São Paulo, Xamã, 2004). É um dos autores de István Mészáros e os desafios do tempo histórico (Boitempo, 2011), organizado por Ivana Jinkings e Rodrigo Nobile e de Ninguém disse que seria fácil (Boitempo, 2022).
Deixe um comentário