O que é ecofeminismo?

O que é necessário é redefinir a economia patriarcal capitalista que trata o trabalho das mulheres como não trabalho, e o conhecimento das mulheres como ignorância. Toda a humanidade deve deixar para trás a cobiça e a exploração e deve se converter à economia feminina do compartilhar e o cuidar.

Militantes do movimento Chipko, na Índia dos anos 1970. Essas mulheres abraçavam as árvores e formavam barreiras com seus corpos em defesa da conservação da floresta e contra as monoculturas de árvores.

Por Vandana Shiva

O ecofeminismo é uma cosmovisão que reconhece que os seres humanos são parte da natureza, não uma entidade separada dela. Pela noção de interconexão através da vida, a natureza e as mulheres são seres vivos e autônomos, não objetos inertes passivos, explorados e violados pelo poder masculino. A criatividade e a produtividade da natureza e das mulheres são os fundamentos de todos os sistemas de conhecimento e de todas as economias, apesar de ser invisíveis aos olhos do patriarcado capitalista que, como visão de mundo, como sistema de conhecimento e como forma de organização da economia, formou-se durante séculos por efeito do colonialismo, o industrialismo dos combustíveis fósseis e o uso da violência, a cobiça e a destruição da natureza e das culturas. O patriarcado capitalista considera que a natureza é matéria inerte e as mulheres seres passivos.

Os pais fundadores deste sistema edificaram um antropocentrismo baseado na separação dos seres humanos e a natureza, e na superioridade destes sobre as outras espécies, para justificar assim o domínio sobre a natureza. A natureza foi objetivada, convertida em objeto de manipulação, controle e exploração. A mãe terra transformadora, que está viva e que acolhe e propicia a vida, foi convertida em matéria inerte, mera matéria-prima para a exploração industrial.

Francis Bacon, considerado o pai da ciência moderna, referiu-se a esta conversão como “o nascimento masculino do tempo”, a partir de uma concepção profundamente patriarcal do projeto da ciência mecanicista e reducionista. Como escreve Carolyn Merchant, em A morte da natureza, “como marco conceitual, a ordem mecanicista se associou a um sistema de valores baseado no poder perfeitamente compatível com o rumo adotado pelo capitalismo comercial”.

Fiz minha tese de doutorado sobre os fundamentos da teoria quântica da não localidade e a não separabilidade. Minha formação científica me ajudou a superar a mentalidade mecanicista baseada no reducionismo, na fragmentação e na separação, mentalidade que facilita a extração e a exploração.

A “solução científica” da agricultura química industrial, baseada em um paradigma científico reducionista e mecanicista, nos legou o problema da extinção das espécies, o desaparecimento da água, a degradação do solo, a mudança climática e as doenças crônicas. E foi incapaz de enfrentar o problema original que pretendia resolver: a fome. Hoje, um bilhão de pessoas passam fome no mundo. E é o apetite sem limites pela terra e os recursos da agricultura industrial que está na base das novas epidemias e pandemias.

A mente mecanicista também constrói um “limite da criação”, de modo que o conhecimento trazido pelas mulheres, os povos indígenas e o domínio público é invisibilizado, e a apropriação do conhecimento é apresentada como uma “inovação” ou “invenção”. Esta mentalidade predomina de um modo desmedido na área da biodiversidade e do conhecimento indígena. Eu batizei este fenômeno com o nome de “biopirataria”.

No paradigma do patriarcado capitalista, o dinheiro foi transformado em “capital” de força criativa. Conecta falsamente a criatividade e a criação de valor a um construto chamado “capital”, uma abstração baseada no dinheiro. O dinheiro é um meio de troca que reflete o valor real de mercadorias e serviços reais, criados mediante o trabalho real e com a contribuição de uma natureza real e algumas pessoas reais. O dinheiro em sua abstração como “capital” se separa da realidade, e isto torna possível o extravio da criatividade.

O “capital” se tornou o construto dominante de nossa era. A concentração da riqueza e o dinheiro acumulado mediante a violência, guerras e pilhagem foram mistificados como “capital”. E, com isso, a terra criativa foi declarada morta, matéria-prima, e os seres humanos e as comunidades livres e criativas também foram convertidos em inputs passivos, com o rótulo “força de trabalho”.

O que é necessário é redefinir a economia patriarcal capitalista que trata o trabalho das mulheres como não trabalho, e o conhecimento das mulheres como ignorância. Devemos redefinir o trabalho e nos libertar da hierarquia patriarcal capitalista que define o trabalho com nossos corpos como uma forma inferior de trabalho, e o fato de jogar com o dinheiro dos outros no cassino financeiro como a tarefa mais importante. Como dizia Gandhi, “a riqueza sem trabalho é pecado”. Toda a humanidade deve deixar para trás a cobiça e a exploração e deve se converter à economia feminina do compartilhar e o cuidar.


Autora de importantes obras que discutem os ataques ao meio ambiente por grandes empresas e o efeito desastroso de um mau uso do solo, a doutora em física quântica e ativista ambiental Vandana Shiva faz nesse livro uma volta a suas raízes, revendo uma trajetória que acabaria por definir os movimentos em que se engajou. Assim, ela aborda fases como a infância rural vivida na Índia, sua criação na fazenda dos pais em meio às florestas, a educação libertária que recebeu deles, passando pela mudança de vida e de perspectiva que teve ao entrar na faculdade e viver em grandes centros urbanos na Índia e no exterior. Tudo isso culminando na descoberta dos movimentos de luta em defesa da natureza e dos povos nativos e de sua influência na política ambiental mundial.

Por mais de quatro décadas, a autora tem defendido de forma veemente a diversidade, o conhecimento dos povos originários, a democracia real e a soberania alimentar, além de denunciar a ligação entre o capitalismo predatório e a destruição da natureza. Ao longo de todo o livro, é apresentada ao leitor a busca de Shiva por um caminho intelectual único, que combina física quântica com ciência, tecnologia e política ambiental.

Lançada originalmente em 2022, a obra narra os caminhos e escolhas que levaram a autora a se envolver na luta pela natureza, o que inevitavelmente a fez mergulhar no debate sobre questões éticas e políticas que afetam o planeta e seus povos. Terra viva traz à tona os desafios que enfrentamos no presente – incluindo aqueles realçados pela crise da covid-19, a privatização da biotecnologia e a mercantilização de nossos recursos biológicos e naturais.

Publicado em Instituto Humanitas Unisinos. Tradução do Cepet.

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Vandana Shiva é filósofa, física, ecofeminista e ativista ambiental indiana, diretora da Fundação de Pesquisas em Ciência, Tecnologia e Ecologia, com sede em Nova Délhi, e uma das líderes e diretoras do Fórum Internacional sobre Globalização. Também é fundadora da ONG Navdanya, que promove a biodiversidade de sementes, as plantações orgânicas e os direitos de agricultores. É autora, entre muitas outras obras, de Staying Alive: Women, Ecology and Survival in India (Nova Délhi, Kali for Women, 1988) e A violência da Revolução Verde: agricultura, ecologia e política do Terceiro Mundo (trad. Luís Humberto Teixeira, Albergaria-a-Velha, Mahatma, 2015). Terra vida: minha vida em uma biodiversidade de movimentos é sua primeira obra pela Boitempo.

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