A memória remoída

Conhecer essas histórias, diferentemente do que foi recentemente declarado pelo presidente Lula, não é remoer o passado. O desconhecimento dos fatos ou o voluntário arquivamento da história tem causado danos à democracia brasileira.

Foto: Danilo Verpa / Folhapress.

Por Edson Teles

Entre 2019 e 2022 o país viveu um governo que negou fatos e tentou subverter os sentidos da história ao glorificar a ditadura e homenagear torturadores, como o fez com o coronel Ustra (condenado como torturador da família Teles em todas as instâncias da Justiça). Um dos resultados mais impactantes do negacionismo estatizado foi a recente tentativa de golpe de Estado de nossa história: o de 8 de janeiro de 2023.

A mobilização da massa de apoiadores da extrema direita somente foi possível com a narrativa de que houve na Ditadura de 64 um momento de crescimento e de ordem, favorável às pessoas “de bem” e à “família”. Com essa fake news histórica somada a estratégias nacionais e globais da direita se criaram condições favoráveis à emergência das forças golpistas.

Claro que tudo isso somente sendo viabilizado pela presença e atuação direta das Forças Armadas, instituição historicamente envolvida com os ilegalismos e que saiu da Ditadura sem ser responsabilizada pelas graves violações de direitos cometidas pelos seus comandantes e subordinados. Não se apurou também o sequestro das instituições do Estado para promover o crescimento das grandes corporações do capital por meio da promoção de benefícios econômicos e promovendo processos repressivos contra os trabalhadores, os sindicatos e as populações tradicionais e originárias.

Conhecer essas histórias, diferentemente do que foi recentemente declarado pelo presidente Lula, não é remoer o passado. O desconhecimento dos fatos ou o voluntário arquivamento da história tem causado danos à democracia brasileira, a qual já era, antes mesmo do governo do inelegível, um regime de baixa qualidade. Prova eloquente disso foi a articulação da direita “amiga” tucanada que se aliou às outras direitas (inclusive à extrema direita) para dar o golpe “institucional” contra a presidente Dilma Rousseff. Inclusive utilizando do discurso das pessoas “de bem”, da “família” e do elogio aos torturadores. Parte desta direita se arrependeu da aliança. A outra parte faturou e segue faturando.

Isso indica o contexto no qual a entrevista do presidente se insere. Em seu terceiro mandato Lula evidentemente não tem nem mais o apoio popular que teve em outros momentos, nem um partido com a força de antes. Soma-se a isso o fato de que os militares galgaram lugares de poder nunca antes alcançados desde a Ditadura. Isso o obriga a aliar-se com boa parte daqueles que assinaram o golpe contra a única mulher presidente que tivemos e que estiveram no governo autoritário derrotado nas urnas em 2022.

Sem eles não se governa. O curioso é que com eles também não se governa. O cobertor da democracia é curto e o clima da quebra institucional castiga constantemente.

Nesse contexto, outro aspecto relevante salta aos olhos: a história. O poder dos militares nesse momento é tamanho que nem mesmo a recriação da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos (CEMDP), instituição criada pela Lei 9.140/95 (mediante projeto do governo FHC) pôde ser reconstruída.

Em um jogo desrespeitoso com a sociedade e com os movimentos familiares de desaparecidos políticos e de vítimas desse tal passado, o governo faz o jogo de empurrar a responsabilidade de recriação da Comissão de um ministério para outro e não restabelece o direito humanitário e constitucional de conhecer a história, encontrar os restos mortais e realizar o digno enterro que aquelas pessoas merecem.

Para não falar no devido julgamento dos agentes responsáveis (esse foi sempre um passo inaceitável para a nossa democracia, seja no contexto atual ou nos governos anteriores). Assim, a excelentíssima memória do presidente, ao procurar não remoer o passado, parece politicamente confluir narrativas várias: do Estado, de parte da sociedade, da esquerda, da democracia.

É preciso lembrar que a história hegemonicamente narrada fez o apagamento dos crimes da escravidão. Se construiu a falsa narrativa de que o país viveu uma “democracia racial” para diminuir ou anular os conflitos decorrentes da sociedade racista em que vivemos. Com o passado da Ditadura, o Estado brasileiro parece caminhar na mesma direção ao criar, ao menos até o governo do inelegível, a narrativa de que vivíamos em um regime com instituições consolidadas e que, gradativamente, o país iria crescer, sua economia se desenvolver e a miséria e as desigualdades diminuírem. Vimos que o que se consolidava era o modelo de uma democracia liberal, submissa ao capital das grandes corporações, às aristocracias regionais e ao processo de extração de nossas riquezas, da nossa terra e do nosso povo.

É fato que devemos concordar que o golpe de 1964 é história. Contudo, revivê-lo enquanto fato significativo para a compreensão do presente parece fundamental. Lembro de um discurso do presidente Lula quando ele era deputado constituinte, se encontrava em outro contexto político e o Congresso estava prestes a aprovar a nova Constituição: “Os militares continuam intocáveis, como se fossem cidadãos de primeira classe, para, em nome da Lei e da Ordem, poderem repetir o que fizeram em 1964 […]. Votamos contra porque, mesmo havendo avanços na Constituinte, a essência do poder, a essência da propriedade privada, a essência do poder dos militares continua intacta” (Brasília, 22 de setembro de 1988).


O que resta da ditadura: a exceção brasileira

Bem lembrada na frase que serve de epígrafe ao livro, a importância do passado no processo histórico que determinará o porvir de uma nação é justamente o que torna fundamental esta obra. Organizada por Edson Teles e Vladimir Safatle, O que resta da ditadura reúne uma série de ensaios que esquadrinham o legado deixado pelo regime militar na estrutura jurídica, nas práticas políticas, na literatura, na violência institucionalizada e em outras esferas da vida social brasileira. O livro reúne textos de escritores e intelectuais como Maria Rita Kehl, Jaime Ginzburg, Paulo Arantes, Ricardo Lísias, Tales Ab’Sáber, Janaína de Almeida Teles e Jeanne Marie Gagnebin, que buscam analisar o que permanece de mais perverso da ditadura no país hoje.

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Edson Teles é doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), é professor de filosofia política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Pela Boitempo, organizou com Vladimir Safatle a coletânea de ensaios O que resta da ditadura: a exceção brasileira (2010), além de contar com um artigo na coletânea Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas (2012) e no livro de intervenção O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil (2018). Também assina um dos artigos do dossiê dedicado à Comissão da Verdade do n.19 da revista Margem Esquerda.

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