A urgência de Butler para nossos dias

Butler aponta caminhos possíveis, em diferentes temas. Não existe nada de “identitário” em sua obra. Identitária, na minha concepção, talvez seja a linha de pensamento de quem não consegue enxergar o feminismo como algo além de um clube de mulheres brancas, de classe média, que só pensam em suas experiências a partir da biologia. 

Por Lana de Holanda

Para onde caminhamos? Essa é uma pergunta que tenho me feito com muita frequência. Para onde estamos indo enquanto sociedade? Diante do capitalismo desenfreado, das mudanças climáticas que alavancam as desigualdades sociais, do neoliberalismo muito bem direcionado, da extrema direita que ganha cada vez mais solidez na política institucional, o que nos aguarda? Qual é a saída? 

São muitas perguntas, eu sei. Nenhuma resposta concreta, talvez. Mas uma pequena certeza, que carrego comigo, é a importância da luta feminista como uma ferramenta imprescindível para termos alguma chance de construir um futuro vivível. Um futuro de paz e de solidariedade, no qual opressões estruturais se tornem apenas memória documentada, só será possível com o feminismo. Mas não nos serve qualquer feminismo. 

Diante da ameaça autoritária que nos cerca, na qual até mesmo o conservadorismo se espalha por debates do campo progressista, se faz cada vez mais necessário um feminismo libertador. Um feminismo que não tema a diversidade, que não se acanhe e nem se torne reativo diante da pluralidade. Um feminismo que ouse ir além das mulheres. 

Quando Judith Butler nos pergunta “quem tem medo do gênero?”, ela está nos alertando sobre nossos inimigos, externos e internos. Quem são as pessoas, movimentos e instituições que insistem em estereotipar, marginalizar e criminalizar o debate de gênero? Esses grupos, reacionários assumidos ou enrustidos, existem aos montes e estão cada vez mais articulados e organizados entre si. 

Diante da ameaça da possível volta de Trump, precisamos de um feminismo que não abra mão de abraçar travestis e homens trans. Diante da onda de partidos fascistas prestes a dominar diferentes parlamentos na Europa, torna-se urgente um feminismo que caminhe com mulheres trans e pessoas não-binárias. Diante da solidez do supremacismo branco e ocidental, é fundamental um feminismo que seja radicalmente antirracista e decolonial. 

Eu cravo sem medo: Judith Butler é a maior pensadora viva do nosso tempo. Judia, ela não teme se aprofundar na defesa intransigente do povo palestino. Mulher, ela fala com todas as letras sobre as limitações do feminismo que ainda se prende na categoria “mulher” como única possibilidade. Estadunidense, ela denuncia cotidianamente as limitações da estrutura patriarcal (que é compulsoriamente heterossexual e enraizadanente neoliberal) da sociedade norte-americana. 

Butler aponta caminhos possíveis, em diferentes temas. Não existe nada de “identitário” em sua obra. Identitária, na minha concepção, talvez seja a linha de pensamento de quem não consegue enxergar o feminismo como algo além de um clube de mulheres brancas, de classe média, que só pensam em suas experiências a partir da biologia. 

Assim como homens, geralmente brancos, que não conseguem olhar para o nosso tecido social com críticas que não se restrinjam ao debate de classe. Como se raça, gênero, sexualidade e diversos outros fatores não existissem intrincados na classe. Isso é muito identitário. 

Por isso, exalto cada vez com maior frequência o trabalho de Judith Butler. A diversidade está, inclusive, em sua obra, em suas elaborações e linhas de análise. Butler é uma intelectual que se recusou a ficar cristalizada. É uma pensadora em trânsito, que entende que mesmo o feminismo, fundamental pra nossa salvação coletiva, corre o risco de ser contaminado pelo conservadorismo. 


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Lana de Holanda é mulher trans/travesti, comunicadora, escritora e feminista decolonial.

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