Entre Cucas, Robinhos e Alves, as mulheres cabem no futebol?

Torcedoras, jogadoras, árbitras, jornalistas e curiosas, que, movidas pela força da paixão a esse esporte fantástico, desbravam a trilha acidentada e abrem caminho para que muitas mais possam vir. São essas as mãos que, dedicadas, desmantelam a ideia de que é possível amar o futebol e odiar as mulheres. Futebol é incrível porque é coisa de gente. E se é coisa de gente, é coisa de mulher. Tomemos o que é nosso, e não por acidente.

Ruth Escobar e Rose do Rio dão pontapé inicial de jogo no Morumbi, em 1982.

Por Isadora Szklo

O futebol é um fascínio meu desde a infância. Lembranças costuram juntos meu uniforme do Palmeiras usado em festas de aniversário, o CD de hinos da série A todo memorizado, a decepção com meu paquerinha infantil que “virou casaca”, a aula que faltei na primeira série pra assistir ao Mundial de 99 no Japão e a lesão no joelho que herdei de treinos intensos no gramado.

Filha de mãe, pai e irmão palmeirenses, tenho também algumas memórias históricas dentro do Palestra Itália. Mas não muitas. Como boa menina, vivi o funcionamento normal das coisas: fui paulatinamente afastada do futebol, que não era coisa pra mim. Passei décadas sem pisar no estádio do meu time, por falta de companhia e incentivo. Recentemente, já bem adulta, resolvi superar esse problema pouco importante, e passei a ir aos jogos. Ano passado foram 28 jogos assistidos, sozinha.

Em minhas idas quase semanais ao Allianz Parque, me peguei pensando no que me afastou por tanto tempo. Eu, frequentadora tranquila de tantos lugares sozinha – cinema, restaurante, museu –, vi justamente no estádio um empecilho social. E não à toa.

Nas últimas semanas, voltou à tona o debate da violência sexual entre atletas do futebol. Primeiro, a condenação de Daniel Alves na Espanha por crime de agressão sexual contra uma mulher que, longe de buscar fama, sequer nos permitiu saber seu nome. A notícia teve mais impacto ainda por conta dos quatro anos e meio de atenuação de pena paga pela família de Neymar Jr., seu parceiro.

Poucos dias depois, Robinho, um fugitivo da justiça italiana condenado por um estupro coletivo, aproveitou um churrasco na Vila Belmiro, na presença e tranquilidade do elenco, da comissão técnica e da diretoria do Santos. Na última segunda-feira, o Athlético Paranaense anunciou seu novo treinador: Cuca, julgado e condenado por ato sexual coletivo contra uma criança pela justiça Suíça diante de provas contundentes, fugiu do país e nunca cumpriu sua pena. O crime, ocorrido em 1987, prescreveu, e a vítima morreu 15 anos depois, sem ver justiça.

O que os três acontecimentos têm em comum é nítido. Não podemos perder de vista que nenhum deles reconheceu a violência, nenhum deles buscou retratação com as vítimas, nenhum deles demonstrou arrependimento ou mudança. O que faz do futebol um espaço simbólico tão evidentemente permissivo com a violência sexual, e como isso afeta a relação das mulheres com ele?

Numa estrutura que se retroalimenta, os homens são maioria esmagadora em todos os lugares onde existe futebol, desde sempre. O estádio, a quadra da escola, as mesas de bar com vista pra TV às quartas-feiras, os CTs e as salas de comissão técnica são espaços físicos e simbólicos da sociabilidade masculina. Mulheres podem participar de alguns, caso queiram, mas pagam pedágios: constantes interações com conotação sexual, frequentes testes futebolísticos pra provar seu conhecimento, dúvida e diminuição da sua paixão. No estádio, sozinha, nunca venci o receio de ser vítima de algum episódio de violência e, rodeada quase que exclusivamente por homens, não ter com quem contar. Frequentar esses ambientes como mulher é como uma prova de resistência. E não à toa.

Se em muitos dos outros lugares homens e mulheres convivem juntos, o futebol é uma espécie de porto seguro, um campo largo por onde corre cada traço do seu masculino normativo, sem censura. Em um momento histórico no qual as masculinidades e o lugar do homem são frequentemente questionados por mulheres e LGBTs, esse espaço existe, intocável, com a potência da reafirmação do bom e velho macho. Trata-se também de um dos poucos ambientes sociais onde estimula-se a troca de afetos de todos os tipos entre homens, do amor ao ódio. Mas essa troca de afetos não é pra ser compartilhada. É pra ser para eles, com eles, entre eles, como uma constante lembrança de que o futebol deve ser lugar auto-organizado de aliança entre homens. No entanto, vale lembrar que nessa auto-organização não cabe qualquer homem, não cabe o homem gay ou bi, não cabe o homem trans, não cabe qualquer relação com traços identificados como femininos. Não há atmosfera mais favorável à propagação e naturalização da violência de gênero do que essa, em que todos os vínculos, memórias e experiências são estritamente entre homens, e mulheres não são sujeitos e nem agentes com voz ou poder. Onde não cabem mulheres, sobra lugar para aqueles que nos odeiam.

Mesmo assim, nós insistimos na disputa, teimando em fazer desse também nosso lugar. Acreditamos que a potência das experiências de afeto compartilhadas no futebol deve servir como instrumento de reconciliação, e não de abuso.

Torcedoras, jogadoras, árbitras, jornalistas e curiosas, que, movidas pela força da paixão a esse esporte fantástico, desbravam a trilha acidentada e abrem caminho para que muitas mais possam vir. São essas as mãos que, dedicadas, desmantelam a ideia de que é possível amar o futebol e odiar as mulheres. Futebol é incrível porque é coisa de gente. E se é coisa de gente, é coisa de mulher. Tomemos o que é nosso, e não por acidente.


Não perca a live Feminismo, gênero e marxismo, com Carla Rodrigues, Helena Silvestre, Lana de Holanda e mediação de Andrea Dip, dia 8 de março às 14h, na TV Boitempo:

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Isadora Szklo é redatora, professora, linguista e palmeirense até o osso.

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