O imperialismo capitalista sustenta o colonialismo racista em Israel

Jodi Dean: "Em um planeta que se aquece rapidamente, dilacerado pelo racismo, pela exploração econômica, pela enorme desigualdade e por uma classe dominante totalmente voraz, se não houver vontade política ou força capaz de impedir o genocídio em Gaza, então essa é uma indicação do futuro que continuará a se desenrolar: tomada violenta e extermínio por quaisquer meios necessários."

Foto: Emad El Byed (Unsplash).

Gercyane Oliveira entrevista Jodi Dean

Entre os principais temas tratados nessa entrevista pela professora e militante comunista Jodi Dean, autora dos livros Camarada: um ensaio sobre pertencimento político Multidões e partido, está o pavio aceso que pode nos levar a revolução, ainda que diante da crise do partido como forma de mobilização, forjada ao fim do século XIX e em boa parte do século XX. É inegável – no neoliberalismo – que o movimento operário e popular enfrenta profunda dificuldade organizativa.

Jodi Dean propõe uma reorganização da forma partido, preparado para as contradições fomentadas pelo capitalismo. Na luta pela emancipação, a organização da classe trabalhadora ainda é tarefa do dia para os socialistas no mundo todo.

O papel dos que lutam por um mundo livre de toda exploração também está presente no desafio de nos levantar pela paz e civilizar o primeiro mundo, que é sedento por guerra, além de parar a mão assassina do imperialismo em Gaza.

Gercyane Oliveira O socialismo ainda é o tema favorito da direita. E não é difícil entender por que os combatentes da direita, como Trump, continuam voltando a esse ponto; afinal de contas, o socialismo é, geralmente, apresentado como o oposto do mais sagrado valor americano, a liberdade. Como os socialistas podem reivindicar as palavras liberdade e democracia contra a direita?
Jodi Dean Não é apenas a direita que odeia o socialismo; são também os principais políticos de esquerda, aqueles que dominam a liderança do Partido Democrata. Se quisermos dizer que todas essas pessoas são de direita, eu concordaria. Isso é correto. Infelizmente, no miserável sistema bipartidário dos Estados Unidos, os democratas são, frequentemente, retratados como se fossem integrantes de um partido de esquerda, quando a realidade é tão clara quanto o dia: eles são antissocialistas, anticomunistas e adotam políticas para o benefício do capital e da riqueza.

Recuperar as palavras é uma questão de dizer a verdade. Essa é uma história antiga, mas que é fácil de esquecer. Os mercados não são espaços de liberdade – nunca foram. Eles são sistemas de compulsão e restrição. É obsceno apresentar opções de moradia, por exemplo, como se fossem escolhas livres. Não é o caso de um comprador ou locatário avaliar racionalmente se deseja morar em uma enorme cobertura ou dormir em um papelão na rua. 

Atualmente, nos Estados Unidos – e a situação é ainda pior na Alemanha – é óbvio que não há liberdade de expressão. Mesmo quando a direita fez da liberdade de expressão nos campi universitários o ponto central de sua campanha contra a cultura “acordada”, ela agora se voltou – com o apoio da maioria da liderança democrata – para atacar a liberdade de expressão em relação ao genocídio, ao sionismo e à libertação palestina. Estudantes, professores e até mesmo reitores de universidades estão sendo vítimas de doxxing, atacados e perdendo seus empregos por criticarem as políticas de um Estado de apartheid que pratica um genocídio. O contínuo aguçamento das contradições está colocando os socialistas do lado da liberdade.

O mesmo se aplica à democracia – a desconexão entre os partidos da classe dominante e a vida, as condições e as demandas dos trabalhadores revelam a falência do sistema eleitoral. Em grande parte do século XX, a democracia foi associada às democracias populares e às lutas anticoloniais. Depois de 1989, os Estados Unidos, em particular, procuraram solidificar um vínculo entre capitalismo e democracia. Para muitos, isso sempre foi claramente falso: submeter novos Estados aos mercados globais significa que as decisões democráticas são superadas ou distorcidas pelas restrições do mercado (que é exatamente como o sistema foi projetado para funcionar). Na última década, a fachada se rompeu. E agora estamos vendo uma luta cada vez mais intensa sobre o que vem a seguir.

GO Você é uma das autoras que tem observado o ressurgimento do partido político nos últimos anos. Por que essa estrutura organizacional está voltando, apesar de todas as críticas a esse formato?
JD O capital é organizado. Nós também temos de ser mais organizados. O partido é uma forma flexível que perdura mesmo quando os movimentos diminuem. Ele permite o aprendizado e o treinamento. Movimentos desorganizados podem gerar um grande entusiasmo momentâneo na multidão, mas o que importa é a capacidade de construir e exercer o poder.

GO O que foi feito na antiga Indochina faz de Kissinger uma das figuras mais sujas da história contemporânea. Se você acrescentar a Indonésia e a América Latina, terá verdadeiros horrores. No entanto, algumas pessoas comentam que Kissinger foi a última voz de prudência na diplomacia dos Estados Unidos quando se tratava de lidar com a Rússia e a China – em geral, algumas pessoas do alto escalão criticam Kissinger por ser um dos responsáveis pela ascensão da China. Como você avalia essa questão hoje? Com a morte de Kissinger, há uma chance de que o belicismo dos Estados Unidos se volte para a China?
JD Obama já direcionou os Estados Unidos para essa direção com seu “pivô para a Ásia”. 

GO Quem faz a revolução? O partido, a classe, o povo?
JD A revolução faz o partido. Em uma situação revolucionária, ou mesmo em uma situação de movimento radical, milhões de pessoas estão engajadas – um povo revolucionário começa a ser formado. Uma tarefa dos partidos comunistas é destacar a natureza de classe do povo e da luta, para ajudar a apresentar ao povo o que ele já sabe: que a luta contra a opressão é uma luta contra o capitalismo e o imperialismo. Vencer nesse cenário exige unidade – além das diferenças que o capitalismo inscreve e amplifica há séculos.

GO Quais são os caminhos que podem levar as mulheres trabalhadoras à sua libertação?
JD Construir organizações comunistas militantes para derrubar o capitalismo e o imperialismo. Nem as mulheres nem qualquer outra pessoa pode se libertar enquanto o capitalismo existir. Em outras palavras, o fato de algumas mulheres serem livres para serem chefes não é a liberação das mulheres.

GO Como as pessoas que trabalham, estudam, perdem horas de suas vidas no transporte público, em longas jornadas de exploração, podem encontrar tempo e disposição para se organizar, se educar e agir politicamente? No caso das mulheres, como elas podem agir politicamente para sua emancipação se a sociedade patriarcal as isola e as mantém longe do poder de todas as formas possíveis?
JD Vamos abordar a questão do ponto de vista da organização: como organizar a classe trabalhadora dadas as condições de vida da classe trabalhadora? Recentemente, coeditei um livro com Charisse Burden-Stelly que reúne escritos de mulheres negras comunistas nos Estados Unidos na primeira metade do século XX. 

Essas militantes insistiam em organizar as trabalhadoras domésticas, especialmente porque as trabalhadoras domésticas negras eram geralmente pessoas importantes em suas comunidades. Elas eram as pessoas que conheciam todo mundo, que entendiam as necessidades básicas e que exerciam a verdadeira liderança cotidiana. Embora fossem excluídas do sistema político oficial – muito explicitamente da negação do direito de voto aos negros e da aplicação violenta da segregação – elas tinham outros locais de conexão e poder.

Além disso, os desafios de organizar os trabalhadores domésticos revelaram outras questões importantes para a organização da classe trabalhadora negra, questões reais de reprodução social ligadas às condições de moradia, à disponibilidade de alimentos nutritivos, ao acesso à educação e a playgrounds, e assim por diante. É responsabilidade dos organizadores oferecer educação política e oportunidades de ação.

GO Em seu livro Camarada, o problema central é repensar a construção do sistema político que dá lugar à posição subjetiva orientada pela ideia do camarada. Para você, camarada não aparece como um adjetivo ou uma forma de tratamento, então o que seria camarada? É um significante que orienta o significado político?
JD Camarada é uma forma de tratamento, portador de expectativas e modo de pertencimento político. Ele designa a relação entre aqueles que estão do mesmo lado em uma luta política. Como uma relação de pertencimento político, nem todo mundo é um camarada. Há uma divisão. Algumas pessoas são nossos camaradas; outras são nossos inimigos; outras são camaradas em potencial. Camaradas não são o mesmo que cidadãos, uma relação mediada pelo Estado. Camaradas são aqueles que pertencem ao mesmo partido, quer entendamos o partido formalmente ou historicamente em um sentido amplo. É mais do que um significante, portanto. É um relacionamento em que esperamos coisas de nossos camaradas que não esperaríamos de mais ninguém.

GO À medida que a guerra de Israel na Faixa de Gaza avança, os Estados Unidos continuam oferecendo seu apoio. Quando perguntado sobre a possibilidade de um cessar-fogo, o presidente Joe Biden respondeu: “Sem a menor chance”. Como o movimento antiguerra está sendo organizado pelos socialistas? 
JD Como todos sabem, esse conflito não começou em 7 de outubro. Ele começou há mais de 75 anos, com a Nakba, que expulsou 750 mil palestinos de suas terras. Poderíamos até dizer que começou antes disso, com o projeto sionista etnonacionalista e o apoio que o imperialismo britânico e, depois, o norte-americano deram a ele. A ocupação e a agressão israelenses também não se limitam a Gaza, como é sabido. Vemos isso nas condições de apartheid contra os palestinos em Israel, nos assentamentos violentos e ilegais na Cisjordânia, na captura e prisão violentas e ilegais de palestinos, nas condições gerais de ocupação militar e colonialismo de colonos e assim por diante.

Desde 2001, a coalizão Act Now to Stop the War and End Racism (Answer) colocou a libertação palestina no centro do movimento contra a guerra. O apoio a essa luta de libertação tem aumentado constantemente, em grande parte devido à inegável violência da ocupação israelense e do colonialismo dos colonos e à violência da resposta sionista às formas pacíficas de resistência, como o BDS. O que tem sido bastante surpreendente é o levante global em apoio à Palestina desde 7 de outubro. Em todo o mundo, as pessoas estão se manifestando para impedir um genocídio e exigir o fim da ocupação. 

Nos Estados Unidos, os socialistas anti-imperialistas trabalharam em estreita colaboração com o Palestinian Young Movement, Students for Justice in Palestine e outros grupos para manter a atenção em Gaza, na Palestina e no genocídio em andamento. Uma das formas foi a campanha internacional Shut It Down for Palestine, que insiste em que não se faça nada como de costume até que a Palestina seja livre, ou seja, suspendendo o cerco, acabando com toda a ajuda dos Estados Unidos a Israel e um cessar-fogo permanente.

GO Sobre a questão da Palestina, o que você acha da situação atual nos Estados Unidos? Os movimentos de solidariedade social estão conseguindo pressionar a classe política? 
JD Sim. Membros do Congresso estão dizendo, anonimamente, que sentem uma enorme pressão. Outros funcionários do governo estão se manifestando, mesmo quando observam que o fato dos Estados Unidos não terem um sistema nacional de saúde torna muito difícil para eles deixarem seus empregos. Se pedirem demissão, eles e suas famílias perderão o seguro-saúde. As primeiras pesquisas também mostram um declínio no apoio a Biden e aos democratas, especialmente entre os jovens. Há uma forte divisão geracional, com a maioria dos jovens apoiando a Palestina e cansados do imperialismo dos Estados Unidos e do apoio militar a Israel.

Também está claro, pela enorme repercussão e reação, que a classe política está sentindo a pressão. Por exemplo, é ultrajante o fato de o Congresso dos Estados Unidos ter aprovado uma resolução que declara que o antissionismo é, antissemitismo. O AIPAC – Comitê Americano de Assuntos Públicos de Israel, um grupo de lobby – está entre os grupos que têm como alvo os legisladores “progressistas” por sua posição em relação à Palestina. 

GO No Brasil, muitos ativistas, políticos e acadêmicos estão sofrendo perseguição política por sua defesa à Palestina. Como tem sido esse cenário para aqueles que denunciam o genocídio em Gaza?  
JD Da mesma forma, pessoas perderam seus empregos; estudantes tiveram ofertas de emprego canceladas. Rashida Talib, membro democrata do Congresso de Michigan e a única palestina americana no Congresso, foi censurada por apoiar a Palestina. E, recentemente, de forma bastante visível, os presidentes de grandes universidades foram levados a audiências no Congresso e interrogados a respeito de acusações de antissemitismo em seus campi. O reitor da Universidade da Pensilvânia acabou renunciando. 

GO Nos Estados Unidos, qualquer pessoa que defenda um cessar-fogo em Gaza é vista como apoiadora do Hamas. Mas os movimentos sociais estão se mantendo firmes em defesa da Palestina. Há cooperação e unidade na ação contra a guerra entre o PSL e os coletivos envolvidos nas manifestações? 
JD Sem dúvida. O que é significativo é o amplo escopo da defesa da Palestina e da oposição ao genocídio que está ocorrendo. Nos Estados Unidos, há uma conexão clara entre o policiamento racista e nosso enorme estado carcerário e as instituições de ocupação e apartheid israelenses. A United Auto Workers se manifestou em apoio a um cessar-fogo. Vimos trabalhadores portuários belgas se recusarem a carregar navios com destino a Israel. Vimos líderes do movimento de mudança climática, como Greta Thunberg, enfatizando a necessidade de um cessar-fogo permanente. 

O que está tomando forma é um movimento global que une a luta pela liberdade dos negros, o trabalho, o clima e o anti-imperialismo. Um dos slogans do movimento é “aos milhões, aos bilhões, somos todos palestinos”. O slogan é um poderoso lembrete de que o mesmo sistema imperialista capitalista que sustenta o colonialismo racista em Israel impulsionou o colonialismo dos colonos e seus estados violentos, racistas e expropriadores em todo o mundo. Isso também é verdade em um sentido concreto e aterrorizante: se Israel e os Estados Unidos saírem impunes desse genocídio, nenhum de nós será livre. 

Em um planeta que se aquece rapidamente, dilacerado pelo racismo, pela exploração econômica, pela enorme desigualdade e por uma classe dominante totalmente voraz, se não houver vontade política ou força capaz de impedir isso, então essa é uma indicação do futuro que continuará a se desenrolar: tomada violenta e extermínio por quaisquer meios necessários. Obviamente, os Estados Unidos e Israel perderam até mesmo a aparência de autoridade moral que tentaram usar para encobrir as realidades do colonialismo dos colonos. 

O que eles estão fazendo é totalmente ilegítimo, como deixam claro os votos da ONU para um cessar-fogo que os Estados Unidos continuam a vetar. Então, será que estamos em um estágio em que a autoridade moral não é mais necessária? Ou será que a legitimidade é importante? Lênin dizia que quando as ordens inferiores não quiserem continuar da maneira antiga e a classe dominante não pode continuar da maneira antiga, então a revolução triunfará. A revolta global que se desenrolou desde 7 de outubro deixa claro que milhões de pessoas estão se recusando a continuar da maneira antiga e tornando cada vez mais difícil para a classe dominante continuar.

GO Por que o socialismo e por que agora?
JD Porque a vida das pessoas e o planeta estão em jogo.

Entrevista publicada no blog Jacobina em 5 de janeiro de 2024.


Camarada: um ensaio sobre pertencimento político, de Jodi Dean
No século XX, milhões de pessoas em todo o globo se dirigiam umas às outras como “camarada”. Hoje, em círculos de esquerda é mais comum ouvir falar em “aliados”. Neste livro, Jodi Dean insiste no fato de que essa mudança exemplifica o problema fundamental da esquerda contemporânea: a sobreposição da identidade política a uma relação de pertencimento político que precisa ser construída, sustentada e defendida. Neste ensaio com recortes e análises bastante originais, Dean nos oferece uma teoria da camaradagem. Camaradas são pessoas que se encontram de um mesmo lado de uma luta política. Unindo-se voluntariamente por justiça, sua relação é caracterizada por disciplina, coragem e entusiasmo.

Multidões e partido, de Jodi Dean
Como agrupamentos de pessoas viram movimentos organizados? Rejeitando a ênfase em indivíduos e multiplicidades, Multidões e partido reitera a necessidade de repensar o sujeito coletivo da política e demonstra a importância de ver o partido enquanto organização capaz de revigorar a prática política. Ensaio sintético com recorte e análise bastante originais, reabilita tradição e prática comunistas clássicas sem apelo a tradicionalismo ou nostalgia, mobilizando linguagem, abordagem e arcabouço teórico ancorados na atualidade política e na filosofia e teoria social contemporâneas.

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Jodi Dean é professora de teoria política, feminista e de mídia em Nova York, onde também está engajada em trabalho político de base. Criada no Mississippi e no Alabama, ela se formou na Universidade Princeton e obteve seus títulos de mestrado e PhD na Universidade Columbia. Seus livros abordam temas como solidariedade, condições de possibilidade para a democracia, capitalismo comunicativo e necessidade de construir uma política que tenha o comunismo como horizonte. Pela Boitempo publicou Camarada: um ensaio sobre pertencimento político (2021) e Multidões e partido (2022).

Gercyane Oliveira é tradutora, redatora e repórter na Jacobin Brasil. Também é jornalista no Opera Mundi, membro do Fórum Latino Palestino.

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