“Anatomia de uma queda”, de Justine Triet

Como toda obra interessante, "Anatomia de uma queda vale" a pena pelas perguntas que levanta. Qual é a relação entre ficção e realidade e ficção e autoficção? É possível a reciprocidade entre um casal depois de milênios de patriarcado? Qual é a reciprocidade que desejamos? Ela é possível no interior de nosso modo de organização atual?

Por Bruna Della Torre

“O que você quer saber?”, pergunta uma voz feminina por detrás da tela escura. A câmera abre, uma bola rola pela escada, há um cachorro em seu encalço. Ele se detém, olha para o que se passa no cômodo que não vemos e sobe novamente. Um gravador é ligado e outra voz entra em cena: “É perturbador ler o modo como você descreve o acidente de seu filho porque sabemos que é a sua vida… você acha que só é possível escrever a partir da experiência”?

Vencedor da Palma de Ouro em Cannes e candidato ao Oscar nas categorias de melhor filme, melhor atriz, melhor roteiro original e melhor direção, Anatomia de uma queda é, de fato, um dos grandes acontecimentos cinematográficos do ano. O filme conta a história da escritora de auto ficção Sandra [Sandra Hüller], que vai a julgamento após seu marido, Samuel [Samuel Theis], ser encontrado morto num chalé nos Alpes franceses por Daniel, o filho cego [Milo Machado Graner] do casal. A morte ocorre logo após a abertura do filme, na qual Sandra é entrevistada por uma jovem estudante até que uma versão instrumental da música “p.i.m.p” [do rapper 50 Cent] vinda do andar de cima, onde Samuel está trabalhando, inviabiliza a conversa. A entrevistadora vai embora e pouco tempo depois, o corpo é encontrado por Daniel embaixo de uma janela. Como o próprio título do filme indica, a ideia é dissecar essa queda, cortá-la em partes e entender os vários sistemas e órgãos que a compõem. Samuel caiu? Foi empurrado? Suicidou-se? À qual queda o filme se refere?

À primeira vista, trata-se sobretudo de um filme de tribunal – o que desvia o foco, como já alertava Michel Foucault, do crime para a criminosa. A vida de Sandra e seu papel como esposa e mãe são escrutinadas de ponta a ponta por diversos especialistas: é preciso conhecer para julgar, mais do que de provar para condenar. “Eu não o matei”, diz ela a seu advogado [Swann Arlaud]. “Isso não tem a menor importância”, retruca ele, que opta por uma defesa em torno de um possível suicídio de Samuel, respaldada pelo depoimento de Sandra de que uma vez o encontrou desmaiado no chão, ao lado do próprio vômito, no qual se viam pílulas de aspirina semi-dissolvidas, e pela situação psicológica de Samuel, que tomava antidepressivos. A acusação aposta numa espécie de vingança, advinda de uma crise vivida pelo casal. O psicanalista de Samuel acusa Sandra de um comportamento “castrador”; o promotor recorre a um trecho de um de seus livros no qual uma mulher deseja a morte do marido para incriminá-la e insinua que, por ser bissexual, Sandra estava flertando com a entrevistadora do início do filme, o que teria gerado uma crise de ciúmes em Samuel que culminou com seu assassinato.

A prova mais incriminadora contra Sandra – um dos pontos altos do filme – é um áudio encontrado num dispositivo USB do marido, gravado sem que Sandra soubesse; trata-se de um registro de áudio de uma briga ocorrida anteriormente ao dia da morte e que Sandra não havia mencionado nem à corte, nem a seu advogado. Nós havíamos visto Samuel vivo até então, mas esta prova dá ensejo a um flashback por meio do qual Triet contrabandeia para o filme um outro gênero, o do melodrama. Nos vemos diante da cena de um casamento à la Ingmar Bergman ou Michelangelo Antonioni. A partir dela sabemos que o casamento se estilhaçou após o acidente do filho.

Na discussão, Samuel reclama da centralidade de Sandra na relação (“estou te seguindo faz anos”, diz ele), de suas relações extraconjugais, de um possível plágio cometido por ela (“eu sou um homem plagiado e traído”), da falta de tempo que ele tem para escrever por ter que dar aulas e cuidar do filho (“se eu impusesse a você o que impõe a mim, nenhum de nós poderia escrever”), do fato de que ela fala em inglês com ele e com o filho, apesar de morarem na França e ele ser francês, entre outros. Sandra retruca: “Eu não te devo tempo algum. […] Posso escrever em qualquer circunstância […]. Eu não acredito na noção de reciprocidade em um casal. Isso é ingênuo e, para falar a verdade, deprimente e acho que discutir isso é perda de tempo […]. Eu dormi com outras pessoas pois era uma questão de higiene” – ela afirma que Samuel se recusava a fazer sexo após o acidente do filho. Sandra diz ainda que se mudou para a cidade nos Alpes onde Samuel passou a infância por causa da vontade dele, que não o obriga a dar aulas na Universidade ou cuidar do filho (que faz homeschooling parcialmente), que o plágio foi consentido, que a ideia foi transformada em seu livro e que ela assumiria publicamente que a ideia havia sido dele, que Samuel não escreve por uma impotência autoimposta e que ninguém deixa de escrever porque precisa cuidar de filho ou fazer compras e que falar inglês é um caminho do meio entre ambos, pois ela é alemã. Quando o flashback acaba, ouvimos uma série de barulhos que apontam para um conflito físico e Sandra admite ter estapeado o marido, mas alerta que a briga pode ter sido causada de propósito, isto é, para ser gravada.

Samuel gravava a vida da família para um novo projeto literário, ignorado por seu editor, que não respondia seus e-mails. Com base nisso, Vicent, advogado de Sandra, afirma que Samuel se matou, pois Sandra obteve sucesso literário enquanto o marido fracassou em seu grande sonho. Após a fala de seu advogado de defesa, Sandra sussurra a ele: “Esse não era Samuel”. A acusação explora amplamente os casos extraconjugais de Sandra e, a partir deles, finalmente sabemos o que ocorreu em relação ao acidente. Samuel deveria apanhar o filho na escola, era seu dia; mas queria escrever, então, contratou uma babá de última hora para pegar o filho. Esta chegou atrasada e uma moto atropelou a criança de 4 anos e danificou permanentemente seu nervo óptico (à altura do julgamento, Daniel já tem 12 anos). Depois disso, o casamento entrou numa crise profunda.

O desfecho do processo ocorre por meio do depoimento de Daniel. O cachorro, Snoop, que pega a bola que caiu no início do filme é seu cão guia e antes do depoimento, o menino faz uma experiência com ele, alimentando-o com aspirinas para ver como reage. O cachorro quase morre e Daniel decide contar uma história em seu testemunho, o que dá ensejo a um novo flashback, diferente do primeiro. Samuel e Daniel estão no carro, alguns meses antes da morte, levando o cachorro que passava mal ao veterinário, mas a voz que sai da boca do pai é a de Daniel. Ele diz ao filho:

— Não é estranho que ele esteja cansado. Já não é um cachorro jovem. Você consegue imaginar essa vida? Ele não é qualquer cachorro. Ele é um super-cachorro. Extraordinário. Pense: ele antecipa suas necessidades, seus movimentos e te protege do perigo. Ele passa a vida adivinhando suas necessidades, pensando em tudo aquilo que você não pode ver. Talvez esteja cansado. Sempre tomando conta dos outros. Talvez um dia ele não possa mais. É possível. Um dia ele terá que ir e você não poderá fazer nada. Você precisa se preparar porque será duro, mas não será o fim da sua vida.

Daniel sugere que o depoimento da mãe era verdadeiro e que o pai havia, sim, tentado se matar meses antes e que o cachorro teria comido parte de seu vômito e passado mal – algo verificado pela experiência refeita agora com o cachorro. Sandra é inocentada com a ajuda do filho e do cachorro – há aí uma sutil sugestão de que a justiça, quando não é cega a fatores sociais como o gênero, pode ser salva por quem não enxerga (Daniel) e não fala (Snoop). Quando o resultado do julgamento é proclamado, Sandra diz a seu advogado: “se você perde, é a pior coisa; se ganha, espera-se uma recompensa, mas não há nenhuma. Simplesmente acabou”. Ser inocente é uma vitória de pirro. Na última cena do filme, a escritora chora na cama do marido ao lado do cachorro que a consola.

O primeiro flashback está no centro de grande parte da crítica ao filme que viu nessa “queda” a decadência da dominância econômica e intelectual masculina de nossos tempos, seguindo a interpretação do advogado de Sandra: o marido teria se matado por conta de seu fracasso. O comportamento imperscrutável da escritora (distante de uma vítima ou viúva inconsolável), uma espécie de Madame Bovary esclarecida e sem culpa, suscitou uma série de perguntas (“e se as mulheres se comportarem como os homens?”; “e se mulheres poderosas não forem punidas?”), evocando um feminismo muito presente na literatura de autoficção contemporânea que vê nessa equalização de comportamentos uma espécie de vitória política (o que é bem diferente de dizer que homens e mulheres devem ter direitos iguais) e que apresenta mulheres complexas como sua própria invenção e única alternativa à posição de “vítimas” do machismo, o que revela que o feminismo pode, ele também, ser presa da falta de imaginação.

Uma leitura possível, mais interessante, talvez, deve levar em conta os dois flashbacks – que conferem um acesso frágil ao real – e como eles se integram. Se levarmos a sério o que o filme revela – que a crise que levou ao suicídio ou ao assassinato tem como seu ponto o acidente de Daniel, podemos ultrapassar essas interpretações feministas mais rasas e psicologizantes como “só quem faz parte de um casamento sabe o que ocorre nele” – reforçado pela belíssima afirmação de Sandra – “às vezes um casamento é uma espécie de caos e todo mundo está perdido, não? E às vezes nós lutamos juntos e às vezes lutamos sozinhos e às vezes lutamos um contra o outro” – e chegar ao núcleo sociológico e político do filme, pois o acidente do qual tudo decorre está no centro da crise da reprodução social que atinge até mesmo os países mais ricos. Tudo acontece porque Samuel se recusa a assumir inicialmente a sua parte na reprodução: ele falta ao combinado com Sandra porque quer escrever e terceiriza a outra mulher sua função. Por azar, o acidente ocorre naquele dia, fazendo pairar sobre o casal a contabilidade das culpas. Como mostra o primeiro flashback, a questão da reprodução, da falta de tempo para escrever e do protagonismo de Sandra na relação está no centro da insatisfação de Samuel com o casamento. Mas o segundo flashback é igualmente revelador. Se é fato que o cachorro passara mal por conta de sua tentativa de suicídio, o diálogo com Daniel no carro mostra como Samuel, de forma extremamente violenta, associa sua vida à do cachorro do filho. Como afirmou Triet numa entrevista a The New Yorker, “a ironia do filme é essa: a morte de Samuel o permite tomar um espaço que ela [Sandra] não concedia a ele antes”. Mas a morte não garante espaço a ninguém, o que significa que Samuel prefere morrer a ter uma vida de cão, associada à reprodução social. Como a música masculinista que tocava no momento de sua morte, seu machismo também se apresentava de forma instrumental até o diálogo com o filho, sem revelar seu conteúdo em palavras. Aí reside a revelação do filme, ligada ao caráter autodestrutivo do machismo, a recusa a encarar o que as mulheres passaram fazendo nos últimos milênios. Samuel se vinga da esposa ao forçá-la a assumir a reprodução social por completo e ainda dá notícia sobre isso ao filho. Se, por um lado, sabemos que a saída da crise da reprodução social só pode ter uma solução coletiva, por outro, o filme, ao inseri-la no centro da história de uma família específica confere dramaticidade ao problema político abordado e mostra como ele tem estado no centro dos conflitos das relações sociais atuais.

Mas o filme permanece parcialmente codificado. O segundo flashback não tem o mesmo efeito realista do primeiro; embora vejamos a imagem de Samuel, sua voz é a de Daniel, o que nos deixa sem saber ao certo se se trata de uma lembrança ou de algo imaginado. Isso é corroborado pela conversa de Daniel com a assistente judiciária encarregada de protegê-lo de qualquer pessoa (especialmente Sandra) que possa influenciar o testemunho do garoto. Ela diz a ele que “quando não se sabe tudo, é preciso escolher decidir o que se pensa”.

O modo como o filme trabalha com a frustração de nosso desejo de sentido confere à história um ar cult que remete ao cinema da década de 1960 e sua ênfase no próprio processo de narrar (mais do que no sentido fechado da narrativa), acentuado também pelo começo no escuro e pelos zooms constantes da câmera que denotam a sua própria presença e atestam o caráter de construção da obra. No entanto, essa abertura – que provavelmente tem intenção crítica – incorre num risco conservador. Ao não garantir o realismo do depoimento de Daniel, conduz à pergunta: e se fosse ao contrário? E se Sandra fosse um homem? Teríamos dúvida de que se tratou de um feminicídio? Alguém poderia dizer: veja como homens e mulheres são julgados de forma diferente por seu gênero e o fato de Sandra ser uma mulher salvou-a justamente ali onde um homem seria condenado. Triet mesmo diz não saber se Sandra matou de fato Samuel – seu filme visa abdicar da verdade pura, de uma versão neutra da realidade, frustrar o público com a falta de sentido. Resta saber se essa abertura possui o mesmo sentido crítico que há quase 60 anos atrás. Talvez sim, diante dos filmes mais recentes de Hollywood, que poupam o público de qualquer esforço interpretativo. Talvez não, diante do objeto que aborda.

Como toda obra interessante, Anatomia de uma queda vale a pena pelas perguntas que levanta. Qual é a relação entre ficção e realidade e ficção e auto ficção? É possível a reciprocidade entre um casal depois de milênios de patriarcado? Qual é a reciprocidade que desejamos? Ela é possível no interior de nosso modo de organização atual? O final do filme indica que a carga continuará, por enquanto, a recair sobre as mulheres e a natureza. Como muitos dos filmes indicados ao Oscar, a história analisa a crise da masculinidade diante das transformações atuais, de modo inteligente, sem precisar recorrer a superproduções em pink. E nos deixa com a pergunta de Sandra, que também abre o filme: o que te deixa tão furiosa que te faz querer explodir?



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Bruna Della Torre é Horkheimer Fellow no Institut für Sozialforschung em Frankfurt (Otto Brenner Stiftung), pós-doutoranda no Departamento de Sociologia da Unicamp sob supervisão de Marcelo Ridenti (bolsista Fapesp) e membra do comitê editorial da revista Crítica Marxista, da qual foi editora executiva entre 2018 e 2023. Foi pesquisadora visitante no Centro Käte Hamburger de Estudos Apocalípticos e Pós-apocalípticos da Universidade de Heidelberg/Alemanha e realizou pós-doutorado no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP sob a supervisão de Jorge de Almeida, com estágio de pesquisa na Universidade Humboldt (anfitriã: Rahel Jaeggi) e no Arquivo Walter Benjamin/Theodor W. Adorno da Akademie der Künste, em Berlim, com apoio do DAAD. Doutora em Sociologia (bolsista Capes), mestra em Antropologia Social sob a orientação de Lilia Katri Moritz Schwarcz (bolsista Fapesp) e bacharel em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo. Durante o doutorado, realizou estágio de pesquisa na Goethe Universität em Frankfurt am Main (anfitrião: Thomas Lemke) e no Arquivo Arquivo Walter Benjamin/Theodor W. Adorno da Akademie der Künste, em Berlim (bolsista DAAD). Em 2016, realizou um doutorado sanduíche de duração de um ano no Departamento de Literatura da Duke University (EUA) (anfitrião: Fredric Jameson), com bolsa da Capes. Foi, entre 2017 e 2018 e em 2021, professora substituta no Departamento de Sociologia da UnB. É autora do livro “Vanguarda do atraso ou atraso da vanguarda? Oswald de Andrade e os teimosos destinos do Brasil”, colunista mensal do Blog da Boitempo, pesquisadora associada ao Laboratório de Estudos de Teoria e Mudança Social (Labemus) e membra da coletiva “marxismo feminista“. Tem experiência em pesquisa e docência no ensino superior nas áreas de teoria literária, teoria social e filosofia. Suas pesquisas concentram-se, principalmente, nos estudos da relação entre estética e política, cultura, literatura e sociedade, na obra de Theodor W. Adorno e da Escola de Frankfurt e nos debates relativos à teoria crítica e ao ao marxismo contemporâneos.

1 comentário em “Anatomia de uma queda”, de Justine Triet

  1. marcelo brissac // 29/02/2024 às 4:15 pm // Responder

    Maravilhoso o texta da Bruna Della Torre e traz ainda mais importância ao maravilhoso Anatomia de uma queda! Parabéns!

    marcelo brissac músico, radialista, rádio artista, produtor musical musician, radio producer, radioartist,musical producer 55(11)914838848 Itu – SP – Brasil

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