“Vidas passadas” e a efemeridade do existir
Sem tirar do filme sua belíssima especificidade, digo que é uma obra existencial, quase metafísica. A vida passada de Nora é Na Young, uma vida para sempre perdida. Mas no fundo não somos todos nós imigrantes em nossas próprias vidas, futuristas ou nostálgicos habitando corpos que um dia nos pertenceram, mas que já não existem, pois não são os mesmos, ainda que sejam únicos?
SEM SPOILERS
Por Cauana Mestre
Edward Said uma vez disse que a experiência de ser imigrante provoca uma fratura incurável, um “entre antes e depois” jamais apagável. O filme de estreia de Celine Song, Vidas passadas, fala exatamente disso – e de forma brilhante.
Na Young e Hae-Sung vivem em Seoul, têm 12 anos e, além da amizade, um amor platônico. A família de Na Young decide emigrar e escolhe a América do Norte; ela vai embora sem que um dos dois possa encontrar uma palavra justa para essa despedida, numa cena silenciosa e encantadora.
No Canadá, Na Young se torna Nora Moon, interpretada pela fabulosa Greta Lee. A menina e a infância ficam para trás, na mesma escada onde ela deixa o melhor amigo. Hae-Sung (Teo Yoo) cumpriu o serviço militar e faz engenharia. 12 anos depois, quando os amigos se encontram pela internet, Nora, que agora mora em Nova York, redescobre o movimento de escrever em coreano ao mesmo tempo em que recupera não apenas o amigo, mas a própria criança, antes perdida.
Outros 12 anos se passam e de repente há um trio, com John Magaro no papel de Arthur. Não posso dizer muita coisa sem derrapar nos spoilers, mas posso dizer que as cenas protagonizadas por esses três personagens são de tirar o fôlego.
O que eu mais gostei no filme de Song é que esse espanto fica por conta de uma simplicidade sofisticadíssima, uma arte apurada no detalhe. O movimento lento da câmera, os olhares que se alongam, os diálogos medidos e cautelosos, revelando a difícil verdade que tentamos com muito esforço contestar: as palavras nem sempre alcançam.
Sem tirar do filme sua belíssima especificidade, digo que é uma obra existencial, quase metafísica. A vida passada de Nora é Na Young, uma vida para sempre perdida. Mas, no fundo, não somos todos nós imigrantes em nossas próprias vidas, futuristas ou nostálgicos habitando corpos que um dia nos pertenceram, mas que já não existem, pois não são os mesmos, ainda que sejam únicos? Não somos todos feitos dessas coisas que se perdem, das escolhas que fazemos – ou que fazem por nós –, das realizações e dos arrependimentos que delas decantam?
Por que escolhemos isso e não aquilo e assim transformamos nossa vida no que ela é hoje e não em outras tantas coisas que ela poderia ter sido?
É uma pergunta bonita e que vez ou outra é preciso fazer para lembrar da efemeridade do existir. Mas sempre com certa reserva, pois não dá pra correr o risco de se perpetuar nessa sequência de “por um triz” que, afinal, é a vida em si.
Esse filme é uma das coisas mais bonitas que eu já vi. Vou revê-lo e recomendá-lo muitas e muitas vezes. É daquelas obras que nos lembram de que, como disse Greta Gerwig, a gente sabe reconhecer o cinema quando ele está diante de nós.
***
Cauana Mestre é psicanalista, mestre em Literatura pela UFPR.
Gostei muito do filme. Realmente me surpreendeu pela beleza e simplicidade bem como profundidade.
Importante entender a dicotomia entre Na Young e Nora Moon e tudo que envolve estas duas vidas numa só.
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eh isso!!!
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