Cultura inútil | Sejamos (in)coerentes!?

De Shakespeare a Raul Seixas, passando por Goethe, Drummond, Clarice Lispector e Cássia Eller, Mouzar Benedito faz uma seleção de frases sobre a (in)coerência.

Foto: Nelson Almeida/AFP

Por Mouzar Benedito

Marta Suplicy de volta ao PT, escolhida pelo Lula para ser vice na chapa de Boulos para prefeito de São Paulo. Muitos acharam uma jogada de mestre, outros tantos acharam uma enorme falta de coerência ou coisa pior.

Eu saí do PT por querer ser coerente (pretensão?). No final de 1994, o partido começou a aceitar dinheiro de empresários para a sua campanha e achei incoerência demais. Sempre achamos (eu continuo achando) que um empresário que dá dinheiro a um candidato é com a expectativa de receber de volta essa grana multiplicada por muito. Teve outros motivos, mas esse foi um deles.

Marta Suplicy também saiu do PT alegando coerência, o partido não era mais aquele. Eu já não era do PT e não tinha nada com isso, mas achei coerente. Só que esperava que ela tomasse um rumo coerente também, mas não: pulou para o MDB de Romero Jucá, Eduardo Cunha, Edison Lobão, Sarney e outras figuras que não têm nada a ver com a alegada coerência dela para deixar o partido.

Sou um dos que torcem o nariz para ela e para a decisão do Lula, engolida pelo PT, mas sei que não se pode esperar coerência da grande maioria dos políticos. Em alguns casos, coerência vira defeito. E sobre isso do Lula determinar quem serão os candidatos do PT, embora pretenda votar no Boulos, não tenho nada com isso, pois continuo não sendo filiado ao partido, mas se fosse sairia. E vejo muita condescendência dele com quem sai do partido pela direita, o que não se repete com quem sai pela esquerda.

Volto à coerência como defeito, citando um exemplo: Saturnino Braga se elegeu prefeito do Rio de Janeiro e quis manter coerência com sua vida cheia de ética, não aceitou propinas nem licitações trambicadas e, como resultado, não conseguiu fazer nada, chegou a ser considerado o pior prefeito que o Rio teve até então. Millôr Fernandes escreveu sobre ele: “Saturnino Braga representa a falência da honestidade”.

O humorista Barão de Itararé teve sua coerência criticada quando se candidatou a vereador pelo Partido Comunista, no Rio de Janeiro. Opositores da sua candidatura o criticavam porque o Partido Comunista já não tinha as propostas revolucionárias de antes e o próprio Barão, diziam, tinha mudado suas ideias. Ele respondeu: “Não é triste mudar de ideias, triste é não ter ideias para mudar”.

Como diz um velho ditado, o que não muda de caminho é trem.

Uma historinha meio recente sobre coerência: escrevi um livro, em parceria com o Ohi, ilustrador, pretendendo que fosse lido especialmente por crianças, para que entendessem um pouco e valorizassem a cultura e os povos indígenas. Era uma espécie de pequeno dicionário tupi-português, como uns textos sobre o vocabulário tupi incorporado ao português brasileiro. Seu nome “Palavra de Índio”. Um título afirmativo, valorizando a condição de “índio”. A Editora Melhoramentos topou publicar, passou para seu consultor de assuntos indígenas, Daniel Munduruku, e veio a resposta: tem que mudar o título. A palavra índio é inadmissível, é coisa do colonizador. Mas “Palavra de Indígena!” perderia toda a força, ficaria sem graça. Mudamos então para “Paca, tatu, cutia… Glossário ilustrado de tupi”.

Muito bem… procurei uns livros infantis de Daniel Munduruku e ele usava a palavra índio direto. Achei no mínimo estranho proibir para nós e ele mesmo usar.

Enfim… A coerência é boa ou ruim? Não tenho a pretensão de ser um exemplo de coerência. Já mudei de opinião sobre várias coisas, e se procurarem podem achar exemplos de incoerência nos meus comportamentos. Os leitores que reflitam sobre isso. Para ajudar nessa reflexão, deixo aqui um monte de frases que coletei sobre o assunto. Parte a favor, parte contra. Aliás, a grande maioria, pelo que li, é contra. 

Clarice Lispector: “Se você procura alguém coerente, sensata, politicamente correta, racional, cheia de moralismo… Esqueça-me! Se você sabe conviver com pessoas intempestivas, emotivas, vulneráveis, amáveis, que explodem de emoção, acolha-me”.

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Thomas Morus: “Sê o que quiseres, mas procura sê-lo totalmente”.

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Reinaldo Azevedo: “No Brasil, coerência é oportunismo escrito de trás para a frente”.

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Alfred Adler: “É mais fácil lutar por alguns princípios do que viver de acordo com eles”

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Shakespeare: “Não basta apenas soerguer os fracos; devemos ampará-los depois”.

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Simone de Beauvoir: “A arbitrariedade das ordens e das proibições com as quais me confrontava denunciava-lhes a inconsistência”.

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Thomas Paine: “Para ser feliz um homem tem que ser fiel a si mesmo. A infidelidade não consiste em acreditar ou em não acreditar, consiste em professar aquilo em que não se acredita”.

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Carlos Drummond de Andrade: “Fácil é ouvir a música que toca. Difícil é ouvir a sua consciência. Acenando o tempo todo, mostrando nossas escolhas erradas. Fácil é ditar regras. Difícil é segui-las. Ter a noção exata de nossas próprias vidas, ao invés de ter noção das vidas dos outros”.

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Goethe: “Pensar é fácil. Agir é difícil. Agir conforme o que pensamos, isso ainda o é mais”.

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Alexandre, o Grande: “A coerência é própria do caráter dos homens, mas eu sou incoerente, pois tenho o caráter de um deus”.

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Hilda Hilst: “Se você é coerente consigo mesmo, o resto é suportável. Eu suporto”.

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Oscar Wilde: “A coerência é a virtude dos imbecis”’.

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Thomas Fuller: “Quem não vive segundo o que acredita não acredita”.

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Anaїs Nin: “Ajusto-me a mim, não ao mundo”

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Lewis Carroll: “Não adiantaria falar sobre ontem, porque até então era uma pessoa diferente”.

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Walt Whitman: “Contradigo-me? Pois bem, então contradigo-me. Sou extenso, contenho multiplicidades”.

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Margaret Mead: “O que as pessoas dizem, o que as pessoas fazem e o que dizem que fazem são coisas inteiramente diferentes”

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Falcão (músico): “É melhor cair em contradição do que do oitavo andar”.

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Blaise Pascal: “Nem a contradição é sinal de falsidade nem a falta de contradição é sinal de verdade”.

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George W. S. Trow: “Em muitas circunstâncias, é preocupante pertencer à classe avançada de uma nação atrasada. Rende-se a coerência e inicia-se um difícil processo de escolha que termina, muitas vezes, numa idiossincrasia eclética”.

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Gabriel Marcel: “Quando a gente vive como pensa, acaba pensando como vive”.

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Robert Frost: “Na quadra de tênis vai-se para jogar tênis, não para ver se as linhas são retas”.

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Clarice Lispector: “A coerência é mutilação. Quero a desordem”.

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François de La Rochefoucauld: “A coerência é a virtude dos pequenos espíritos, os grandes nunca têm necessidade dela”.

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Jeanne Moreau: “Moral é o que nos permite ser fiéis a nós mesmos”.

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Mário de Sá Carneiro: “Sou todo incoerências. Vivo desolado, abatido, parado de energia, e admiro a vida, entanto como nunca ninguém a admirou”.

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Tito Plauto: “Faz o mesmo que nos persuades a fazer”.

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Adélia Prado: “Às vezes acho que nasci na década errada. Tenho princípios que já se perderam e amo coisas que já não se dá mais valor”.

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Aldous Huxley: “O homem que pretende ser coerente no seu pensamento e nas suas decisões morais ou é uma múmia ambulante ou, se não conseguiu sufocar toda a sua vitalidade, um monomaníaco fanático”.

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Agostinho Silva: “Muito me reprovo e o aprovo tanto quanto outrora aprovei o que hoje me reprovo”.

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Provérbio chinês: “Somente os tolos exigem perfeição, os sábios se contentam com a coerência”.

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Marilena Chauí: “Se tudo fosse dito, a frase perderia a coerência, tornar-se-ia incoerente e contraditória e ninguém acreditaria nela”.

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Confúcio: “Aja antes de falar e, portanto, fale de acordo com seus atos”.

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Confúcio, de novo: “Não pretenda apagar com fogo um incêndio, nem remediar com água uma inundação”.

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Fernando Pessoa: “Se algumas vezes sou coerente, é apenas como incoerência saída da incoerência”.

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Raul Seixas: “Nada mais é coerente se virar de trás pra frente, tanto fez como tanto faz”.

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Raul Seixas, de novo: “Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”.   

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George Foreman: “Daqui 20 anos eu quero ser o mesmo cara falando com você, feliz, orgulhoso do que aconteceu comigo”.

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José Saramago: “Seria incoerente que me opusesse a que um escritor coma do que escreve; o que me parece, isso sim, condenável, é que escreva quando não tem nada para dizer”.

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Saramago, de novo: “Pretendemos compreender a vida através de suas coerências e identidades, quando certamente estas se explicam por si sós e não nos acrescentam nada. Deveríamos buscar a compreensão a partir de suas contradições, pois estas sim nos acrescentam informação da vida e da realidade”.

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Bernard Berenson: “Ser coerente significa ser tão ignorante hoje como há um ano atrás”.

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Dante Alighieri: “A contradição não consente o arrependimento e o pecado ao mesmo tempo”.

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Cássia Eller: “Não sou muito coerente. Às vezes sou muito rígida com o Chicão e, no outro dia, na mesma situação já sou mais tranquila, relaxo mais. Mas ele também é meio doidinho, acho que entendo isso”.

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Georg Lichtenberg: “Muitas vezes tenho uma opinião quando estou deitado e outra quando estou de pé”.

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Christian Hebbel: “A vida inteira é uma contradição digerível”.

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Millôr Fernandes: “Coerente: um sujeito que nunca teve outra ideia”.

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Antônio Guterres: “A coerência global exige uma cultura de cooperação estratégica permanente em todos os níveis”.

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Nina Hrusa: “A vida é mais brilhante do que pensamos e melhor como somos. Só precisamos abris os olhos e seguir nossos corações”.

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Franz Kafka: “Ah, coerência, aquela velha mentira. Todos os livros estão cheios disso, em todas as salas os professores estão escrevendo no quadro negro; a mãe sonha com isso enquanto o bebê está no peito – e aí está você sentada aqui, me perguntando sobre coerência. Você deve ter tido uma juventude mal aproveitada”.

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André Maurois: “Ser sincero não é dizer tudo o que se pensa, e sim não dizer nunca o contrário do que se pensa”.

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Adam Smith: “Os eruditos ignoram as evidências dos seus sentidos para preservar e a coerência das ideias da sua imaginação”.

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John Trudel “O ser humano é uma gota de chuva. E quando um número suficiente de gotas de chuva se torna claro e coerente, elas se tornam o poder da tempestade”.

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Walter Riso: “Tem gente que funciona como uma escopeta de perdigões: pensa uma coisa, sente outra e seus atos se dispersam sem direção”.

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David Hume: “O coração do homem existe para reconciliar as contradições mais notórias”.

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Gore Vidal: “As contradições nos definem e ao mesmo tempo nos desmantelam”.

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Ralph Waldo Emerson: “As coerências bobas são a obsessão das mentes ruins”.

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Ditado estadunidense: “Se queres mel não dê pontapés na colmeia”.

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Lígia Fagundes Teles: “Não peça coerência ao mistério nem peça lógica ao absurdo”.

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William Blake: “Se o louco persistisse na sua loucura tornar-se-ia sensato”.

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Cora Coralina: “Nasci em tempos rudes. Aceitei contradições, lutas e pedras como lições de vida e delas me sirvo. Aprendi a viver”.

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Joshua Clover: “A história não é coerente; além disso, as políticas de coerência tendem a conduzir a história para direções menos toleráveis”.

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Preti Taneja: “O mundo continua girando. Não existem linhas retas, exceto aquelas da linhagem, e em mapas e teias de aranha”.

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Luis Buñuel: “Nossa memória é nossa coerência, nossa razão, nosso sentimento e até mesmo nossa ação. Sem isso não somos nada”.

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Elias Suleiman: “As pessoas tendem a achar a poesia perigosa porque é perturbadora, porque não conseguem captá-la, não conseguem controlá-la. Preferem a coerência, o que é contundente e tem clareza”.

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Nelson Rodrigues: “Toda coerência é no mínimo suspeita”.

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Virginia Woolf: “Há uma coerência nas coisas, uma estabilidade; algo… é imune à mudança e brilha… diante do que flui, do fugaz, do especial, como um rubi”.

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Rosa Luxemburgo: “Quem é feminista e não é de esquerda, carece de estratégia. Quem é de esquerda e não é feminista, carece de profundidade”.


O Boitatá e os boitatinhas

Em O Boitatá e os boitatinhas, Mouzar Benedito questiona o “progresso” que destrói a natureza e expulsa as comunidades tradicionais. As ilustrações vibrantes de Hallina Beltrão mostram aos pequenos leitores os encantos da fauna e flora.



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Mouzar Benedito, jornalista, nasceu em Nova Resende (MG) em 1946, o quinto entre dez filhos de um barbeiro. Trabalhou em vários jornais alternativos (Versus, Pasquim, Em Tempo, Movimento, Jornal dos Bairros – MG, Brasil Mulher). Estudou Geografia na USP e Jornalismo na Cásper Líbero, em São Paulo. É autor de muitos livros, dentre os quais, publicados pela Boitempo, Ousar Lutar (2000), em coautoria com José Roberto Rezende, Pequena enciclopédia sanitária (1996), Meneghetti – O gato dos telhados (2010, Coleção Pauliceia) e Chegou a tua vez, moleque! (2021, Editora Limiar). Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente.

1 comentário em Cultura inútil | Sejamos (in)coerentes!?

  1. Sergio Guimarães // 10/02/2024 às 11:29 am // Responder

    Boa, Mouzar! “Sou incoerente mas sou feliz. Mais incoerente é quem me…” o quê mesmo?

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