Musto: A crítica de Marx ao colonialismo é mais relevante do que nunca

Marcello Musto defende que, ao contrário do que afirmam equivocadas interpretações liberais, Marx foi um crítico ferrenho do colonialismo.

Foto: Monumento a Karl Marx em Chemnitz, Alemanha (Wikimedia Commons).

Durante as últimas duas décadas, temos assistido a um ressurgimento do interesse pelo pensamento e pela obra de Karl Marx, autor de importantes obras filosóficas, históricas, políticas e econômicas e, claro, do Manifesto comunista, que é talvez o manifesto político mais popular do mundo. Este ressurgimento é resultado, em grande parte, das consequências devastadoras do neoliberalismo em todo o mundo. Isto é, níveis sem precedentes de desigualdade econômica, decadência social e descontentamento popular, bem como uma intensificação da degradação ambiental que aproxima o planeta cada vez mais de um precipício climático. Junta-se a isso a incapacidade das instituições formais da democracia liberal de resolver esta lista crescente de problemas sociais. Mas será que Marx ainda é relevante para o panorama socioeconômico e político que caracteriza o mundo capitalista de hoje? E o que dizer do argumento de que Marx era eurocêntrico e tinha pouco ou nada a contribuir sobre o colonialismo?

Marcello Musto, importante estudioso marxista e professor de sociologia na Universidade de York em Toronto, Canadá, tem participado desse ressurgimento do interesse por Marx. Musto afirma, numa entrevista exclusiva para a Truthout, que o autor do Manifesto ainda é muito relevante hoje, além de contestar a alegação de que ele era eurocêntrico. O professor argumenta que Marx foi, de fato, intensamente crítico do impacto do colonialismo.

C.J. Polychroniou Na última década, houve um interesse renovado na crítica de Karl Marx ao capitalismo entre os intelectuais públicos de esquerda. No entanto, o capitalismo mudou drasticamente desde a época de Marx, e a ideia de que ele está fadado à autodestruição devido às contradições que surgem do funcionamento de sua própria lógica já não merece credibilidade intelectual. A classe trabalhadora de hoje é muito mais complexa e diversificada do que a da época da Revolução Industrial. Além disso, a missão histórica mundial imaginada por Marx não foi cumprida pela classe trabalhadora. Na verdade, foram estas considerações que deram origem ao pós-marxismo, uma postura intelectual em voga entre as décadas de 1970 e 1990, que ataca a noção marxista de análise de classe e subestima as causas materiais da ação política radical. Mas agora, ao que parece, há um regresso mais uma vez às ideias fundamentais de Marx. Como deveríamos explicar o renovado interesse por Marx? Na verdade, Marx ainda é relevante hoje?
Marcello Musto A queda do Muro de Berlim foi seguida por duas décadas de conspiração de silêncio sobre a obra de Marx. Nas décadas de 1990 e 2000, a atenção dada a Marx era extremamente escassa e o mesmo pode ser dito sobre a publicação, e a discussão, dos seus escritos. O trabalho de Marx — já não identificado com a detestável função de instrumentum regni da União Soviética — tornou-se o foco de um renovado interesse global em 2008, após uma das maiores crises econômicas da história do capitalismo. Jornais de prestígio, bem como periódicos de amplo público, descreveram o autor de O capital como um teórico clarividente, cuja atualidade recebeu mais uma vez confirmação. Marx tornou-se, em quase toda parte, tema de cursos universitários e conferências internacionais. Os seus escritos reapareceram nas prateleiras das livrarias e a sua interpretação do capitalismo ganhou impulso renovado.

Nos últimos anos, assistiu-se também a uma reconsideração de Marx enquanto teórico político, fazendo com que muitos autores de visão progressista sustentassem que as suas ideias continuam a ser indispensáveis para quem acredita ser necessário construir uma alternativa à sociedade em que vivemos. O recente “renascimento de Marx” não se limita apenas à sua crítica à economia política, mas também à redescoberta da ideologia e das interpretações sociológicas do autor de O capital. Ao mesmo tempo, muitas teorias pós-marxistas demonstraram suas falácias e acabaram por aceitar os fundamentos concretos da sociedade — embora as desigualdades que a destroem e minam completamente a sua coexistência democrática estejam a crescer de formas cada vez mais dramáticas.

Certamente, a análise de Marx sobre a classe trabalhadora precisa de ser reformulada, uma vez que foi desenvolvida na observação de uma forma diferente de capitalismo. Se as respostas para muitos dos nossos problemas contemporâneos não podem ser encontradas em Marx, ele centra, no entanto, as questões essenciais. Penso que esta é a sua maior contribuição hoje: ele nos ajuda a fazer as perguntas certas, a identificar as principais contradições. Isso não me parece pouca coisa. Marx ainda tem muito a nos ensinar. A sua elaboração contribui para compreendermos melhor o quão indispensável ele é para traçar uma alternativa ao capitalismo — hoje, ainda mais urgentemente do que no seu tempo.

CJP Os escritos de Marx incluem discussões sobre questões como natureza, migração e fronteiras, que recentemente receberam atenção renovada. Você pode discutir brevemente a abordagem de Marx à natureza e sua opinião sobre migração e fronteiras?
MM Marx estudou muitos assuntos — no passado muitas vezes subestimados, ou mesmo ignorados, pelos seus estudiosos que são de importância crucial para a agenda política dos nossos tempos. A relevância que Marx atribuiu à questão ecológica é o foco de alguns dos principais estudos dedicados à sua obra nas últimas duas décadas. Em contraste com interpretações que reduziam a concepção de socialismo de Marx ao mero desenvolvimento das forças produtivas (trabalho, instrumentos e matéria-prima), ele demonstrou grande interesse pelo que hoje chamamos de questão ecológica.

Em repetidas ocasiões, Marx argumentou que a expansão do modo de produção capitalista aumenta não só a exploração da classe trabalhadora, mas também contribui para o esgotamento dos recursos naturais. Ele denunciou que “todo progresso na agricultura capitalista é um progresso na arte, não apenas de roubar o trabalhador, mas também de roubar o solo”. Em O capital., Marx observou que a propriedade privada da terra por indivíduos é tão absurda quanto a propriedade privada de um ser humano por outro ser humano.

Marx também se interessou muito pela migração e entre os seus últimos estudos estão notas sobre o massacre ocorrido em São Francisco, em 1877, contra os migrantes chineses. Marx criticou os demagogos anti-chineses quando estes afirmavam que os migrantes fariam os proletários brancos morrer de fome. Sua crítica também foi contra aqueles que tentaram persuadir a classe trabalhadora a apoiar posições xenófobas. Assim, Marx mostrou que o movimento forçado de trabalho gerado pelo capitalismo era um componente muito importante da exploração burguesa e que a chave para combatê-lo era a solidariedade de classe entre os trabalhadores, independentemente das suas origens ou de qualquer distinção entre trabalho local e importado.

CJP Uma das objeções mais ouvidas sobre Marx é que ele era eurocêntrico e que até justificou o colonialismo como necessário para a modernidade. No entanto, embora Marx nunca tenha desenvolvido a sua teoria do colonialismo tão extensivamente como a sua crítica da economia política, ele condenou o domínio britânico na Índia nos termos mais inequívocos, por exemplo, e criticou aqueles que não conseguiram ver as consequências destrutivas do colonialismo. Como você avalia Marx nessas questões?
MM O hábito de usar citações descontextualizadas da obra de Marx data de muito antes do Orientalismo de Edward Said, um livro influente que contribuiu para o mito do alegado eurocentrismo de Marx. Hoje, leio frequentemente reconstruções das análises de Marx sobre processos históricos muito complexos que são puras invenções.

Já no início da década de 1850, nos seus artigos (contestados por Said) para o New-York Tribune — um jornal com o qual colaborou durante mais de uma década — Marx não tinha ilusões sobre as características básicas do capitalismo. Ele sabia muito bem que a burguesia nunca tinha “realizado um progresso sem arrastar indivíduos e pessoas em sangue e sujeira, através da miséria e da degradação”. Mas ele também estava convencido de que, através do comércio mundial, do desenvolvimento das forças produtivas e da transformação da produção em algo cientificamente capaz de dominar as forças da natureza, “a indústria e o comércio burgueses [criariam] estas condições materiais de um novo mundo.” Estas considerações refletiam apenas uma visão parcial e ingênua do colonialismo sustentada por um homem que escrevia um artigo jornalístico com apenas 35 anos de idade.

Mais tarde, Marx empreendeu extensas investigações sobre sociedades não europeias e o seu anticolonialismo ferrenho tornou-se ainda mais evidente. Estas considerações são óbvias para qualquer pessoa que tenha lido Marx, apesar do ceticismo em alguns círculos acadêmicos que representam uma forma bizarra de decolonialidade e assimilam Marx a pensadores liberais. Quando Marx escreveu sobre o domínio da Inglaterra na Índia, afirmou que os britânicos só conseguiram “destruir a agricultura nativa e duplicar o número e a intensidade da fome”. Para Marx, a supressão da propriedade coletiva da terra na Índia nada mais foi do que um ato de vandalismo inglês, empurrando o povo nativo para trás, e certamente não para a frente.

Em nenhum lugar das obras de Marx há a sugestão de uma distinção essencialista entre as sociedades do Oriente e do Ocidente. E, de fato, o anticolonialismo de Marx — particularmente a sua capacidade de compreender as verdadeiras raízes deste fenômeno — contribui para a nova onda contemporânea de interesse pelas suas teorias, do Brasil à Ásia.

CJP – A última viagem que Karl Marx empreendeu antes de morrer foi em Argel. Você pode destacar suas reflexões sobre o mundo árabe e o que ele achou da ocupação francesa na Argélia?
MM Contei esta história — tão pouco conhecida — no meu livro, O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881-1883). No inverno de 1882, último ano de sua vida, Marx teve uma grave bronquite e seu médico recomendou-lhe um período de descanso em um lugar quente como Argel, para escapar dos rigores do inverno. Foi a única vez em sua vida que passou fora da Europa.

Devido à sua saúde debilitada, Marx não conseguiu estudar a sociedade argelina como gostaria. Em 1879, já tinha examinado a ocupação francesa na Argélia e argumentado que a transferência da propriedade fundiária das mãos dos nativos para as dos colonos tinha um objetivo central: “a destruição da propriedade coletiva e sua transformação em objetos de compra e venda”. Marx notou que esta expropriação tinha dois propósitos: fornecer aos franceses o máximo de terras possível e arrancar os árabes dos seus laços naturais com o solo, o que significava mitigar qualquer perigo de rebelião. Marx comentou que esse tipo de individualização da propriedade da terra não só garantiu enormes benefícios econômicos para os invasores, mas também alcançou um objetivo político: “destruir os alicerces da sociedade”.

Embora Marx não pudesse prosseguir essa investigação, ele fez uma série de observações interessantes sobre o mundo árabe quando esteve em Argel. Ele atacou, com indignação, os abusos violentos dos franceses, os seus constantes atos provocativos, a sua arrogância descarada, a presunção e a obsessão em vingança — como Moloch face a cada ato de rebelião da população árabe local.

Nas suas cartas de Argel, Marx relatou que, quando um assassinato é cometido por um bando árabe, geralmente com a intenção de roubar, e os criminosos são devidamente detidos, julgados e executados, isso não é considerado castigo suficiente para a família do colono roubada. Exigem ainda a prisão de pelo menos meia dúzia de árabes inocentes: “Uma espécie de tortura é aplicada pela polícia, para forçar os árabes a ‘confessar’, tal como os britânicos fazem na Índia.” Marx escreveu que quando um colono europeu vive entre aqueles que são considerados “raças inferiores”, seja como colono ou simplesmente a negócios, geralmente considera-se mais inviolável do que o rei. E Marx também enfatizou que, na história comparada da ocupação colonial, “os britânicos e os holandeses superam os franceses”.

CJP Estas reflexões lançam alguma luz sobre a perspectiva geral de Marx sobre o colonialismo?
MM Marx sempre se expressou de forma inequívoca contra a devastação do colonialismo. É um erro sugerir o contrário, apesar do ceticismo instrumental tão em voga hoje em dia em certos meios acadêmicos liberais. Durante a sua vida, Marx observou de perto os principais acontecimentos na política internacional e, como podemos ver pelos seus escritos e cartas, expressou firme oposição à opressão colonial britânica na Índia, ao colonialismo francês na Argélia, e a todas as outras formas de dominação colonial. Ele era tudo menos eurocêntrico e fixado apenas no conflito de classes. Marx considerou fundamental o estudo de novos conflitos políticos e áreas geográficas periféricas para a sua crítica ao sistema capitalista. Mais importante ainda, ele sempre ficou do lado dos oprimidos contra os opressores.

Publicado no site Truthout em 14 de dezembro de 2023.
Tradução de Paulo Cantalice para o Blog da Boitempo.


Repensar Marx e os marxismos: guia para novas leituras
Nesta obra, Musto reconstrói, com rigor textual e historiográfico, etapas da biografia intelectual de Marx ainda pouco conhecidas ou mal compreendidas, como sua formação cultural durante a juventude, os estudos de economia política, os primeiros esboços do que viriam a ser os escritos de O capital, assim como a divulgação e a recepção de alguns de seus principais trabalhos como os Manuscritos econômico-filosóficos, o Manifesto comunista e os Grundrisse. O trabalho crítico e inovador realizado por Musto nos apresenta um pensador muito diferente daquele retratado durante todo o século XX por muitos de seus críticos e seguidores: “A obra de Marx abrange as mais diversas disciplinas do conhecimento humano e sua síntese representa um objetivo de difícil alcance mesmo para os estudiosos mais rigorosos”, conta o autor no prefácio à edição brasileira.

O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881-1883)
A partir do estudo de manuscritos que vieram a público recentemente e ainda não foram traduzidos do alemão nem publicados em livro, Musto demonstra que Marx passa a se interessar por antropologia, pelas sociedades não ocidentais e pela crítica ao colonialismo europeu. Por trás disso, não havia, como se tem dito, mera curiosidade intelectual, mas o propósito teórico-político de alargar e refinar a compreensão do capitalismoAlém de desconstruir a imagem de um Marx eurocêntrico, economicista e exclusivamente absorvido pelo tema da luta de classes, esta biografia intelectual, com base nas de outros membros da família, oferece um retrato mais amplo e humano do autor em sua fase final. Permite ainda uma reavaliação inovadora de algumas de suas ideias-chave

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Marcello Musto é professor de Sociologia na York University, em Toronto, Canadá. Suas publicações, disponíveis em seu site, foram traduzidas em vinte e cinco línguas. Pela Boitempo publicou Trabalhadores, uni-vos!: antologia política da I Internacional, O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881-1883) e Repensar Marx e os marxismos: guia para novas leituras, além de colaborações com a revista Margem Esquerda.

1 comentário em Musto: A crítica de Marx ao colonialismo é mais relevante do que nunca

  1. O post demonstra como o pensamento de Marx possui uma crítica ao colonialismo, mas não à colonialidade, que é algo diferente. Faz parecer que a crítica decolonial é ingênua na sua critica ao marxismo, como se ela desconhecesse a posição de Marx contra o colonialismo. Isso é problemático.

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