Al Nakba, uma tragédia sem fim
Como dizia Edward Said, nenhum povo quer ter que olhar para trás e reconhecer os horrores de sua própria história. Ao mesmo tempo, dizia ele, somente o reconhecimento dos sofrimentos mútuos – dos judeus no Holocausto e dos palestinos na Nakba – poderá gerar a reparação e os elos necessários para uma vida em comum. Enquanto a Nakba continua e se agrava, o reconhecimento da catástrofe apenas começa.
Por Arlene Clemesha
O termo árabe “al nakba”, traduzido como “a catástrofe”, traz a conotação de uma miséria profunda e refere-se à expulsão de 750 mil palestinos do território onde foi criado o Estado de Israel em maio de 1948.
Mais recentemente, os estudos da área começaram a empregar o termo “Nakba contínua”, para referir-se ao fato de que o processo de expulsão, que teve seu auge em 1948, continua até os dias de hoje. Em 1967, outros 350 mil palestinos foram deslocados da Cisjordânia. Fora dos períodos de guerra, o deslocamento forçado ocorre por outros meios, seja através de leis e dispositivos discriminatórios, seja pela invasão e roubo de casas palestinas por colonos radicais – evento recorrente em Jerusalém oriental.
O primeiro a chamar atenção para o caráter contínuo da Nakba não foi um historiador, mas o escritor libanês, ex-combatente da liberdade, ou fida’i em árabe, Elias Khoury. Ferido ao redor dos vinte anos de idade, trocou o rifle pela caneta, e passou a coletar os fragmentos de histórias palestinas e a tecer narrativas que registram o longo, ininterrupto sofrimento e resiliência, desse povo.
Se o ano de 1948 marcou o ápice da Nakba, significou também a criação do Estado de Israel. A concomitância e intrínseca relação entre os dois eventos gerou enormes disputas historiográficas. A versão dos chamados “velhos” historiadores israelenses, foi retratada pela imagem de um David israelense contra um Golias árabe. O jovem Estado de Israel, nascido das cinzas do holocausto europeu, teria enfrentado uma terrível força árabe, cujo desejo seria eliminar o país e lançar os judeus ao mar. A guerra de 1948, segundo tal narrativa, seria uma guerra de defesa. Os palestinos teriam fugido a mando de seus líderes, para dar lugar à entrada dos exércitos árabes.
Um dos primeiros historiadores palestinos, ‘Arif al-‘Arif, era na ocasião o comissário-assistente do distrito de Ramallah e foi encarregado de receber o negociador da ONU, o conde sueco Folke Bernadotte, na terceira semana de julho de 1948, pouco após a queda e o massacre de Lydd e Ramla. Sessenta mil habitantes dessas duas cidades tinham sido forçados a uma marcha da morte em que centenas deles pereceriam desidratados e exauridos antes de chegar a Ramallah. O Conde Bernadotte tinha sido informado pelos oficiais israelenses que os palestinos fugiram a mando de seus líderes.
‘Arif al-‘Arif conta que ele prontamente levou o Conde Bernadotte para encontrar alguns desses líderes nas cavernas onde tinham se refugiado, para ouvir seus relatos. Foram encontros como esse que certamente fizeram com que Bernadotte reportasse à ONU que “nenhum acordo será justo e completo se não for garantido o reconhecimento do direito dos refugiados árabes a voltarem para suas casas, de onde foram desalojados”. O Conde Bernadotte foi assassinado poucos meses depois pelo grupo extremista Lehi, comandado na época por Yitzhak Shamir, que passaria de “terrorista procurado” pelas autoridades inglesas a primeiro-ministro de Israel, em 1983.
O mito do êxodo voluntário dos palestinos perdurou por três décadas, não obstante Folke Bernadotte, ‘Arif al-‘Arif, e o historiador Walid Khalidi, que na década de 1950 foi o primeiro a comprovar a sua falsidade com pesquisas em arquivo. Como a alegação era de que as altas lideranças árabes haviam emitido ordens pela rádio para que os palestinos fugissem, Walid Khalidi revirou o acervo das gravações radiofônicas árabes de 1948, mantido no Museu Nacional de Londres, onde não encontrou nenhum registro de qualquer ordem nesse sentido.
O personagem Adam, do mais recente romance de Elias Khoury publicado no Brasil (Meu nome é Adam, Editora Tabla) pergunta, muito pelo contrário, por que não fugiram?! Morreram estimados 15 mil palestinos na Nakba de 1948. Foram registrados mais de 30 massacres como o de Deir Yassin, ocorrido em 9 de abril de 1948, ou de Tantura, caso investigado por Teddy Katz, aluno do historiador israelense Ilan Pappé na Universidade de Haifa que, após defender sua tese com nota máxima, foi, na sequência, pressionado pela direção da faculdade a alterar suas conclusões.
Na década de 1980, surgiu uma onda de publicações acadêmicas, dos chamados “novos historiadores israelenses” que, mais de duas décadas após os historiadores palestinos a quem ninguém deu ouvidos, também refutaram a velha narrativa sionista do “êxodo voluntário”. Fizeram-no principalmente a partir de arquivos nacionais e militares israelenses abertos 30 anos após 1948. Um novo entendimento foi produzido pela pesquisa do historiador israelense Benny Morris, ao redor de 1987, comprovando que os aproximadamente 750 mil palestinos que se tornaram refugiados em 1948, tinham sido, de fato, expulsos.
Caía por terra, definitivamente, a versão do êxodo voluntário. Mas a discussão passou a girar em torno dos motivos por trás da expulsão. Benny Morris, após titubear, chegaria à conclusão que a expulsão foi a consequência inelutável da guerra de 1948, motivo pelo qual foi duramente criticado pelo cientista político judeu norte-americano, Norman Finkelstein que chamou a tese de Benny Morris de “o meio termo feliz”, já que reconhecia a expulsão, mas negava a motivação.
Vários autores, palestinos e israelenses, de Nur Masalha a Avi Shlaim, fizeram então importantes contribuições ao debate historiográfico e ao processo de desconstrução da mitologia sionista. Contudo, o próximo grande avanço historiográfico viria como resultado da publicação, em 2006, do principal livro de Ilan Pappé, A limpeza étnica da Palestina (Editora Sundermann).
Nele, o autor demonstrou como que na década de 1940, o Fundo Nacional Judeu financiou um projeto secreto para o mapeamento do território da Palestina, ainda sob o Mandato Britânico. O levantamento incluiu os nomes e a localização dos vilarejos, a qualidade das terras de cada aldeia, sua produção agrícola, o número de pomares, o número de árvores em cada pomar, e até de frutos em cada árvore, as fontes de água, carros e carroças, a população masculina adulta, os nomes de todo suspeito de ser um combatente do movimento de resistência do campo, nomes das lideranças e descrição do interior das casas dos mukhtars (líderes/prefeitos), indicando que os espiões judeus eram recebidos com a típica hospitalidade árabe, no interior das casas.
Os arquivos dos vilarejos, construídos de maneira completamente clandestina ao longo da década de 1940 pelos investigadores do Fundo Nacional Judeu, registraram dados extremamente detalhados e cada vez mais relativos às capacidades militares e de resistência dos residentes árabes.
Segundo Ilan Pappé, essa informação foi usada, primeiro, para entender quais terras seriam as mais cobiçadas para a formação do estado judeu quando chegasse o momento; segundo, que tipo de força de resistência poderiam encontrar em cada região e em cada aldeia. Os “arquivos dos vilarejos” teriam fornecido a base de dados para a elaboração do Plano D (Dalet, em hebraico), o plano de guerra do exército israelense em 1948, ou, na visão de Ilan Pappé, o plano para a limpeza étnica da Palestina.
O termo pode ser entendido como uma política deliberada de remoção de populações civis de seus territórios, por meio da violência e do terror, para viabilizar a ocupação por seus perpetradores. Assim, difere da ideia de genocídio, ação onde há uma comprovada intenção de eliminar grupos étnico-raciais, nacionais ou religiosos.
Os ataques aos vilarejos seriam conduzidos inicialmente pelas milícias sionistas, Haganá, Irgun, e Lehi, mais conhecido como o Bando Stern, e teriam início assim que aprovada a partilha da Palestina, em votação da Assembleia Geral da ONU em 29 de novembro de 1947. A ação da Haganá em Wadi Rushmiyya, bairro árabe de Haifa, em dezembro de 1947, foi considerada o marco inicial da limpeza étnica da Palestina. A Haganá aterrorizou os 75 mil habitantes árabes da cidade, incitou-os a fugir, e explodiu suas casas para que não tivessem para onde retornar.
Segundo Ilan Pappé, a primeira fase da limpeza étnica foi realizada de dezembro de 1947 a março de 1948, período marcado por ataques ainda esporádicos das milícias sionistas e episódios de resistência, emboscadas e contra ofensivas palestinas. Em março, foi finalizado o referido Plano Dalet, alterando e acirrando as características do conflito.
Esse plano foi elaborado com base nos dados reunidos nos arquivos dos vilarejos, e traçava as regiões que o movimento sionista deveria tentar conquistar para além das fronteiras designadas pelo ONU. Determinava também os métodos a serem empregados. Segundo Pappé, cercar e bombardear vilarejos e núcleos populacionais; atear fogo às casas, propriedades e bens; expulsar os moradores; demolir as casas; e, finalmente, plantar minas nos destroços para impedir o retorno dos moradores expulsos. Cada unidade paramilitar recebeu uma relação específica de vilarejos e bairros que seriam seu alvo.
O Plano Dalet era a quarta e última versão de planos anteriores que tinham descrito apenas vagamente como a liderança sionista pretendia lidar com a presença de tantos palestinos na terra que o movimento nacional judeu reivindicava. Nas palavras de Ilan Pappé, “o quarto e último traçado dizia clara e inconfundivelmente: os palestinos têm de sair”.
Para Walid Khalidi, o objetivo do plano foi tanto quebrar a resistência palestina, como criar um fato consumado que nem a ONU, nem os Estados Unidos, nem os países árabes, conseguiriam reverter. Isso explica, segundo Walid Khalidi, a velocidade e a virulência dos ataques aos centros populacionais árabes. Na medida em que o plano militar era executado, dezenas de milhares de palestinos seriam forçados a marchar, levando apenas as roupas do corpo, formando rios de refugiados que inundaram os países árabes fronteiriços, na esperança de em breve retornar.
Uma das principais e mais carismáticas lideranças da resistência palestina, Abd al-Qadr al-Husayni, foi morto na batalha de al-Qastal em 9 de abril de 1948. O segundo líder, Hassan Salamah, que conduziu a resistência camponesa al-jihad al-muqaddas, caiu na batalha de Ras al-Ein, em 2 de junho de 1948. A derrota palestina foi selada independentemente do ulterior ingresso dos países árabes na guerra.
Os países árabes votaram contra a resolução AG/ONU 181 que determinou a partilha da Palestina. Jamais concordaram com a instauração do Mandato Britânico da Palestina (1917-1948) e, assim como os próprios palestinos, não aceitavam que uma porção dos territórios árabes fosse entregue para o movimento sionista. Assim que declarada a fundação do Estado de Israel, em 14 de maio de 1948, ingressaram na guerra. O objetivo era, alegadamente, impedir a criação do estado sionista. Na prática, boa parte das tropas enviadas eram irregulares, voluntários mal armados e mal treinados, que tinham por objetivo acudir ao apelo dos irmãos palestinos.
A exceção era a Jordânia, com pretensões de anexar as terras férteis da margem ocidental do rio Jordão. A monarquia hachemita tinha o maior exército árabe da época e, na opinião expressa por Walid Khalidi, não fosse por ela, e pela participação do Egito ao sul, os palestinos teriam perdido todas as suas terras em 1948.
Israel foi criado em 78% do território da Palestina histórica, e não nos 52% designados pela ONU. Nessa porção majoritária do território da Palestina histórica, permaneceram apenas cerca de 150 mil palestinos. A Faixa de Gaza recebeu 200 mil refugiados, cujos descendentes representam 70% da população atual. Outros 550 mil palestinos fugiram principalmente para a Cisjordânia, Jordânia, Síria e Líbano. Salman Abu Sitta, expulso de Beer Sheba aos dez anos de idade, refugiou-se com a família em Gaza e depois foi para Londres, onde se formou engenheiro civil.
Abu Sitta mapeou os 530 vilarejos palestinos esvaziados, destruídos e eliminados pelas invasões das milícias sionistas, e do exército de Israel, de finais de 1947 até os armistícios de 1949, e demonstrou que é falso o argumento de que não há espaço para o retorno dos refugiados palestinos às suas terras e cidades de origem.
Dado que os historiadores palestinos foram largamente ignorados, foi a partir da pesquisa apresentada por Ilan Pappé no seu livro A limpeza étnica da Palestina, que se formou uma nova compreensão acerca da Nakba. Não seria mais o caso de dizer que a expulsão dos palestinos existiu, mas foi consequência da guerra, nem que ela foi um objetivo sistematicamente perseguido durante a guerra, mas sim que a guerra foi iniciada no dia seguinte à aprovação da partilha da Palestina pela ONU, para realizar um plano que previa a desocupação delas para a criação de um estado étnico e majoritariamente judeu.
Desnecessário dizer que a tese de Ilan Pappé desagradou profundamente o establishment sionista. O historiador trocou a Universidade de Haifa pela de Exeter, na Inglaterra, mas não deixou de fazer enorme sucesso entre os israelenses que lutam pela conquista dos direitos palestinos e acreditam que devem encontrar formas menos segregacionistas e mais compartilhadas de viverem juntos, do rio ao mar.
Como dizia Edward Said, nenhum povo quer ter que olhar para trás e reconhecer os horrores de sua própria história. Ao mesmo tempo, dizia ele, somente o reconhecimento dos sofrimentos mútuos – dos judeus no Holocausto e dos palestinos na Nakba – poderá gerar a reparação e os elos necessários para uma vida em comum. Enquanto a Nakba continua e se agrava, o reconhecimento da catástrofe apenas começa.
Publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo.
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Arlene Clemesha é professora de história árabe contemporânea da Universidade de São Paulo (DLO-USP). Autora, entre outros livros, de Marxismo e judaísmo: história de uma relação difícil (Boitempo).