O que é um genocídio?

Genocídio não é algo ligado a algum número absoluto de mortes, mas sim a uma forma específica de política de apagamento dos corpos, de desumanização da dor de populações, de silenciamento do luto público que retiram populações de sua humanidade e expressam processos historicamente reiterados de sujeição.

Foto: Cruzamento de avenidas destruído por ataque israelense na Faixa de Gaza (Getty Images).

Por Vladimir Safatle

No dia 13 de novembro, nomes fundamentais da teoria crítica contemporânea, como Jürgen Habermas, Rainer Forst, Nicole Deitelhof e Klaus Günther, entenderam por bem publicar um texto, a respeito do conflito palestino e suas consequências, intitulado “Princípios de solidariedade. Uma afirmação”.

Começando por atribuir toda a responsabilidade da situação atual aos ataques do Hamas, defendendo o “direito de retaliação” do governo israelense e fazendo considerações protocolares sobre o caráter controverso e polêmico da “proporcionalidade” de sua ação militar, o texto termina por afirmar o absurdo de pressupor “intenções genocidárias” ao governo de extrema direita de Israel, conclamando todos ao mais profundo cuidado contra “sentimentos e convicções antissemitas por trás de toda forma de pretextos”.

O que inicialmente impressiona em um texto escrito por quem seria legatário da força crítica da Escola de Frankfurt e seu comprometimento antiautoritário é aquilo que não tem direito de aparecer quando certos europeus estão a clamar por “princípios de solidariedade”. Pois seria o caso de lembrar que, quando o texto de Habermas e companhia foi publicado, o mundo contava mais de 10 mil palestinos massacrados e o governo israelense continuava a afirmar que nem sequer permitiria um cessar-fogo para a abertura de corredores humanitários.

Poderíamos esperar que isso tivesse a dignidade de nos indignar, que um texto sobre solidariedade, neste momento, começaria dizendo que colocar uma população de 2,5 milhões de pessoas em um estado cotidiano de terror no interior de uma lógica inaceitável de punição coletiva não é maneira alguma de combater o Hamas, mas sim de fortalecê-lo. No entanto, chama a atenção como defensores de princípios universalistas de justiça parecem, na verdade, prontos a usá-los estrategicamente quando é o caso de expiar seus fantasmas locais de responsabilidade perante catástrofes passadas. A não ser que a racionalidade comunicativa tenha, afinal, fronteiras geográficas e esqueceram de nos avisar. Mas uma teoria que nunca pensou estruturas coloniais e seus modos de permanência e desdobramento não está preparada para os desafios do presente.

Pois militantes de direitos humanos, funcionários da ONU, diplomatas dos mais variados países, que insistem nas intenções genocidárias do governo israelense, têm todo o direito de serem ouvidos e levados a sério. Elas e eles estão a defender que “genocídio” ocorre todas as vezes em que o vínculo orgânico de populações ao “genos”, ao que nos é comum, é negado.

Quando o comandante das Forças Armadas israelense diz que do outro lado há “animais humanos”, ele expressa, de forma pedagógica, intenções genocidárias. Quando ministros do governo de Israel afirmam ser plausível o uso de bombas nucleares contra Gaza e não tem outra punição que o simples afastamento de reuniões ministeriais futuras, quando descobrimos planos de deslocamento em massa dos palestinos para o Egito, estamos sim diante de expressões de intenção genocidária. Tais intenções devem ser nomeadas.

Genocídio não é algo ligado a algum número absoluto de mortes, mas sim a uma forma específica de política de apagamento dos corpos, de desumanização da dor de populações, de silenciamento do luto público que retiram populações de sua humanidade e expressam processos historicamente reiterados de sujeição. Quando falamos dos palestinos, estamos a falar de um povo apátrida, sem terra — e, por isso, como bem lembrou Itamar Vieira Júnior na Folha, sem liberdade alguma.

Povo que não pode contar com a solidariedade internacional porque espera há 50 anos que a lei internacional que define a posse de seu próprio território seja respeitada e que, quando se vê vítima de uma punição coletiva em pleno século XXI, encontra textos que nem sequer têm a capacidade de lembrar que nada disso começou com os ataques do Hamas.

O Hamas é efeito terrível de uma causa que merece ser pensada em seu horizonte histórico correto. Tomar o efeito pela causa é a melhor maneira de não resolver problema algum. Alguém deveria lembrar aos signatários do texto em questão que a teoria crítica exige escutar a história dos desterrados e dos vencidos.

Originalmente publicado no jornal Folha de São Paulo.


Neste episódio de Megafone, Sabrina Fernandes lê o capítulo “Sobre a Palestina, a G4S e o complexo industrial‑prisional”, presente no livro A liberdade é uma luta constante, de Angela Davis. O texto é um discurso de Angela Davis realizado na School of Oriental and African Studies, University of London, em Londres, no dia 13 de dezembro de 2013, mas permanece extremamente atual diante do genocídio palestino perpetrado por Israel.

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Vladimir Safatle é professor titular dos departamentos de filosofia e de psicologia da USP. Professor visitante da Universidade da Califórnia em Berkeley. Autor de, entre outros, Só mais um esforço e Em um com o impulso (ambos pela Autêntica); Cinismo e falência da crítica e O que resta da ditadura: a exceção brasileira, esse último organizado com Edson Teles (ambos pela Boitempo).

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