Genocídio palestino e o grito de Antígona

Israel tem direito a existir? Mas quais são os seus deveres? Ele só tem direitos? Se ele só tem direitos, e nega-se a cumprir resoluções e leis, estamos diante de um poder absoluto, que tudo pode. Tem o poder de vida e da morte sobre seus súditos, no caso, sobre seus colonizados palestinos. Se o Creonte dos nossos tempos acredita que tudo pode, sejamos Antígona: vamos seguir não reconhecendo o seu poder e exigindo que esta aberração política seja banida da comunidade internacional.

Imagem: Sébastien Norblin, Antígona dando enterro a Polinices, 1825 (Wikimedia Commons)

Por Berenice Bento

Tentarei provar por que Israel é um Estado fora da lei, que tem sistematicamente expandido fronteiras e intensificado, ano após ano, sua política colonial à revelia das Resoluções da ONU. Já antecipo a conclusão: não basta pedir ao governo brasileiro que suspenda as relações diplomáticas com Israel. Sim, este rompimento deve ser feito urgentemente, o que implicará, como efeito secundário, no fim de qualquer comercialização bélica com Israel, conforme tem demandado o Movimente de Boicote, Desinvestimento e Sanções a Israel.

Aqui, seguirei por outro caminho: é necessário que a ONU discuta seriamente a presença de um país que tem se negado a reconhecer as deliberações que as nações reunidas têm aprovado ao longo dos 75 anos da existência de Israel. Todas apontam para abusos e desrespeito à lei internacional cometida pelo poder ocupante, Israel, contra os ocupados, o povo palestino.

A tese do texto é óbvia: para que se possa fazer parte de um organismo internacional, é necessário que os acordos e resoluções aprovados sejam seguidos de forma mandatória.

O que vem antes da lei?

Há, contudo, um nível anterior a esta seara das discussões das resoluções e leis internacionais. Antes de um poder afirmar “eu tenho direito a”, devemos nos perguntar: o que está acima de qualquer poder, quais as esferas da existência humana que transcendem ao desejo do poder instituído, o inegociável? Há âmbitos da existência humana que nenhum poder instituído pode alterar?

Lembro-me de Antígona, que se negou a cumprir uma ordem do rei Creonte, que determinava que Polinice, por ser considerado traidor, estava proibido de ter os ritos funerários. O corpo do irmão de Antígona deveria ser deixado insepulcro para que suas carnes e vísceras alimentassem os abutres. Antígona desobedece e assume a desobediência. Afirma: “[…] e não me pareceu que tuas determinações [Creonte] tivessem força para impor aos mortais a obrigação de transgredir normas divinas, não escritas, inevitáveis; não é de hoje, não é de ontem, é desde os tempos mais remotos que elas vigem, sem que ninguém possa dizer quando surgiram.”

Ter o direito a enterrar o corpo do irmão está para além das normas e das leis. Se ampliarmos a demanda de Antígona para além do caso que a levou à morte por desobediência, quais outros ritos estão acima da lei, aqueles que nenhum poder deve se apropriar? É possível imaginar que crianças não tenham direito ao sono? Que tenham suas noites atormentadas pelo pesadelo de verem suas casas invadidas por soldados?

Eram 6 horas da manhã. O telefone tocou. Mais um alerta. Eu e minhas colegas, que morávamos em Jerusalém Oriental e éramos observadoras internacionais, corremos para o local indicado. A casa estava no chão. As crianças, segurando na barra do vestido da mãe, já sem lágrimas, tinham o olhar perdido, aquela expressão de vazio, da falta de esperança. Segurar no vestido na mãe talvez fosse o apego último ao mundo real. Sentamos, conversamos e choramos juntos e juntas. Naquele mesmo dia, acompanhei o funeral de mais 3 casas. Israel destrói sistematicamente as casas de palestinos que vivem em Jerusalém Oriental. A minha alma ficou tatuada com o olhar daquelas crianças. Talvez elas pensassem: quero voltar a dormir. O pesadelo da realidade é insuportável.

Não seria um direito de toda criança ir para escola com segurança, um direito que existe antes da lei, por ser inalienável? Não para as crianças palestinas. Soldados e colonos israelenses as agridem, as ameaçam. Soldados entram nas salas de aula e as prendem sob a acusação de atirarem pedras. Quando presas, são submetidas a tribunais militares, são torturadas e respondem a um processo na língua do poder colonial: o hebraico. E agora são as inimigas eleitas intencionalmente por Israel. Não estamos diante de danos colaterais. Mais de 5 mil danos colaterais? Isso é possível? Que lei humana ou divina pode justificar esta monstruosidade? Acabar intencionalmente com a infância palestina é, como sonharam os pioneiros sionistas, cortar o mal pela raiz. Na guerra demográfica declarada por Israel contra o povo palestino, mulheres e crianças se tornaram, há muito tempo, os principais alvos.

Eu posso seguir contando relatos do que vi. O processo de mortificação das crianças e do povo palestino pelos sionistas é algo dilacerante. Eu não consegui entrar no campo de concentração de Gaza. O poder ocupante não permitiu. Antígona, se lá vivesse, já teria morrido muitas vezes, porque todos os direitos inalienáveis são negados por Israel, a encarnação atual de Creonte.

Quando o fundamental se torna lei

Exatamente pela existência de Creonte na vida política, foi instituído um conjunto de leis e convenções internacionais que, de fato, incidem em questões fundamentais para limitar os poderes da força ocupante, por exemplo: a proteção da infância, o direito dos prisioneiros, o direito de movimentação, entre outros. Mas não tentem encontrar nenhuma correspondência entre a Lei Internacional e as ações de Israel. Israel é uma entidade política fora da lei.

Uma pergunta ingênua: se Israel é membro da ONU, não deveria respeitar as resoluções ali aprovadas, a exemplo da Resolução 181, de 29 de novembro de 1947 que determinou a partilha da Palestina, uma decisão feita à revelia do povo palestino?

Comecemos pela última resolução aprovada há alguns dias pela Assembleia Geral da ONU e que, ao considerar que os palestinos de Gaza estavam passando fome, sede e todo tipo de precariedade, além de bombardeios indiscriminados, determinou “uma trégua humanitária imediata, duradoura e sustentada que conduza à cessação das hostilidades”. O que Israel fez? Seguiu e segue o genocídio. Mas esta prática não é uma excepcionalidade. É a regra.

Voltemos para o ano de 1948. A mesma ONU que determinou a criação de Israel, estabeleceu na Resolução 194 (11/12/1948): “Os refugiados que desejarem retornar a seus lares e viver em paz com seus vizinhos devem ter permissão de fazê-lo na data mais próxima praticável”. Esta resolução foi motivada pela expulsão de 750 mil palestinos, a destruição de 511 aldeias palestinas e 31 massacres praticados por Israel. Qual a a origem dos moradores de Gaza? Mais de 70% da população que agora está sendo massacrada é de refugiados, a figura que dentro do direito internacional é a mais frágil, principalmente quando são apátridas, como são os palestinos. São herdeiros da Nakba, a catástrofe palestina de 1948. Para Israel, há dois destinos para o palestino: ser um eterno refugiado ou cadáver.

Em 23 de dezembro de 2016, foi aprovada a Resolução 2334 do Conselho de Segurança da ONU, que determinou o fim dos assentamentos israelenses nas terras palestinas, iniciados logo após a ofensiva israelense de 1967. A resolução reputou os assentamentos como “uma violação flagrante do direito internacional”. O que Israel fez? Intensificou o roubo de terras palestinas. Hoje, são mais de 700 mil colonos sionistas, fortemente armados, praticando o terror diário.

Em 21 de outubro 2003, a Resolução 10/13 determinou que Israel eliminasse o muro. O que Israel fez? Continuou a construção e, mais, empurrou o muro para dentro das terras palestinas, roubando mais terras. Hoje, o muro corresponde à distância entre as cidades de Brasília a Belo Horizonte, ou seja, 800 km, com 8 metros de altura. Para que se tenha uma ideia dessa aberração colonial, o muro de Berlim tinha 66 km e 4 de altura.

Em de 20 de agosto de 1980, o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou a Resolução 478 que estabelece que a lei aprovada pelo parlamento israelense e que determina que Jerusalém é a capital de Israel é nula de efeitos, uma vez que constitui uma clara oposição à Resolução 476 de 1980, do mesmo Conselho de Segurança. Israel cumpriu a resolução? Não.

A Resolução 2253, emitida pela Assembleia Geral em 4 de julho de 1967, considerou ilegais todas as atividades israelenses em Jerusalém Oriental. Deveriam, portanto, cessar. O que Israel fez? Não compareceu à Assembleia e desconheceu a decisão. A Resolução 250, emitida pelo Conselho de Segurança em 27 de abril de 1968, determinou que Israel não realizasse uma parada militar em Jerusalém. Mas Israel-Creonte, no poder supremo, fez a parada. E o que fez a desmoralizada ONU? Aprovou outra Resolução: a 251, emitida pelo Conselho de Segurança em 2 de maio de 1968, que condenou a realização da parada militar em Jerusalém.

Eu poderia seguir citando centenas de resoluções, mas acredito que já há elementos suficientes para sustentar minha tese: Israel não respeita a comunidade internacional. E por que ele segue fazendo parte da ONU? Também é possível concluir que o não reconhecimento de Israel da comunidade internacional não começou com Netanyahu, um fiel seguidor dos pais fundadores do sionismo. Nada nesta figura grotesca é original. Tudo nele é cópia.

Pergunto: é possível um país fazer parte de um organismo internacional quando tem reiteradamente se comportado como pária, que planejou e executa um genocídio diante dos nossos olhos?

Israel tem direito a existir? Mas quais são os seus deveres? Ele só tem direitos? Se ele só tem direitos, e nega-se a cumprir resoluções e leis, estamos diante de um poder absoluto, que tudo pode. Tem o poder de vida e da morte sobre seus súditos, no caso, sobre seus colonizados palestinos.

Se o Creonte dos nossos tempos acredita que tudo pode, sejamos Antígona: vamos seguir não reconhecendo o seu poder e exigindo que esta aberração política seja banida da comunidade internacional.


Caminhos divergentes, de Judith Butler
A partir das ideias de Edward Said e de posições filosóficas judaicas, Butler articula uma crítica do sionismo político e suas práticas de violência estatal ilegítima, nacionalismo e racismo patrocinado pelo Estado. Além de Said, reflete sobre o pensamento de Levinas, Arendt, Primo Levi, Buber, Benjamin e Mahmoud Darwish para articular uma nova ética política, que transcenda a judaicidade exclusiva e dê conta dos ideais de convivência democrática radical, considerando os direitos dos despossuídos e a necessidade de coabitação plural.

Ideologia e propaganda na educação, de Nurit Peled-Elhanan
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Cultura e política, de Edward W. Said
Edward Said imprime uma visão universalista em suas análises sobre a questão palestina, inserindo-a no conjunto das grandes lutas pelo reconhecimento de todos os povos a afirmar sua identidade e ter sua expressão política. Sua obra denuncia o racismo ocidentalista, que tenta se legitimar como visão hegemônica do mundo, opõe-se à criminalização da luta do povo palestino e de todos aqueles considerados fora dos padrões da chamada civilização ocidental.

A liberdade é uma luta constante, de Angela Davis
Esta ampla seleção de artigos traz reflexões sobre como as lutas históricas do movimento negro e do feminismo negro nos Estados Unidos e a luta contra o apartheid na África do Sul se relacionam com os movimentos atuais pelo abolicionismo prisional e com a luta anticolonial na Palestina. A obra da intelectual e ativista Angela Davis ensina também a pensar a nossa luta em relação a todos os “condenados da terra”, como escreveu Frantz Fanon.

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Berenice Bento é doutora em Sociologia e professora do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB).

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