Argentina na berlinda, 40 anos depois da redemocratização

Por Rejane Carolina Hoeveler

O dia 30 de outubro de 1983 é considerado o marco histórico da volta da democracia à Argentina, com a eleição de Raúl Alfonsín, e o fim definitivo do regime empresarial-militar instaurado em 24 de março de 1976 – por isso é considerado Dia da Restauração da Democracia.

Há quarenta anos desse dia histórico, em um processo de redemocratização marcado por mais rupturas que continuidades e por uma Justiça de transição exemplar a nível internacional, muito mais avançada que a brasileira (Friedrichs, 2017), a Argentina vive hoje o drama de entrar para o rol de países cujas democracias – já frágeis, pois implementadas sob signo neoliberal – foram hackeadas pela ultradireita, como o Brasil de Bolsonaro e os Estados Unidos de Donald Trump.

São as eleições mais incertas desde 1983. Pela primeira vez há chances reais de chegar ao poder um candidato fundamentalmente antidemocrático, com um discurso político de conteúdo fortemente antipopular e antinacional, não somente antiperonista (o que não deixa de ser significativo também, pois recordemos que até mesmo o ex-presidente Mauricio Macri se viu obrigado a declarar-se peronista na reta final das eleições de 2015).

Javier Milei, por pouca diferença o segundo candidato mais votado no primeiro turno das eleições gerais de 2023, abraçou todos os negacionismos e tem como vice Victoria Eugenia Villarruel, uma notória defensora da ditadura, familiar de torturadores e defensores de primeira ordem do chamado Processo de Reorganização de 1976 – e a quem Milei promete, se eleito presidente, poderes extraordinários para manter a ordem e segurança interna em caso de protestos.

Como a Argentina chegou até aqui?

A busca pelo Bolsonaro argentino terminou…

Desde 2019, acompanhamos algumas movimentações da ultradireita argentina, a começar pelos efeitos políticos da vitória de Bolsonaro no Brasil, em 2018 (Hoeveler, 2023), e as andanças de Eduardo Bolsonaro, o principal articulador internacional do bolsonarismo. O movimento que conduz Milei à sua atual posição no cenário político argentino tem um salto de qualidade com as queimas de máscaras no Obelisco no final de 2020, durante a pandemia da covid-19, em um contexto no qual a gestão de Alberto Fernández teve orientação contrária àquela adotada por países como Brasil, onde imperou o negacionismo e o desastre foi muito maior. A quarentena na Argentina era denunciada como “infectadura” e se potencializava com o negacionismo climático e o pânico moral com relação à educação sexual nas escolas.

Nos marcos de um capitalismo dependente gerenciado pelo Kirchnerismo versão Fernandista, Milei oferece a uma juventude que não consegue trabalhos decentes, ou condições dignas para estudar, um direcionamento de suas frustrações: a culpa é da “casta”, dos políticos, dos partidos, dos kirchneristas e do Estado. O apelo ao exotismo, como a prática de telepatia animal com os cachorros mortos (como no olavismo, onde também há ocultismos); uma suposta vida sexual exuberante (provavelmente Milei também é “imbrochável”…), entre outros temas, promove uma sorte de poluição informativa, e, na economia da atenção em que vivemos, o escandaloso e o curioso se alastram mais rápido que o debate de ideias. É muito mais fácil espalhar uma fake news do que desmenti-la.

Ao mesmo tempo, Milei sabe produzir um discurso suficientemente convincente para aqueles que buscam uma racionalidade tecnocrática para o arrocho, através do linguajar mistificador da (disciplina) Economia – sem Política. Recordando Leda Paulani em seu belo livro Modernidade e discurso econômico, hoje vemos um desdobramento mais vulgar e sombrio do mesmo fenômeno que marcou a emergência da modernidade capitalista. A opacidade do economês funciona de forma fetichista a cegar os sujeitos reduzidos a expectadores, servindo basicamente para a defesa de um darwinismo social cru, independente de consequências sociais. É a apologia da guerra de todos contra todos e salve-se quem puder.

Conforme assinalamos em outro espaço, o anarcocapitalismo ou libertarianismo, conhecido pela sigla ancap, é uma ideologia e um movimento que remontam a Murray Rothbard, discípulo americano de F. von Hayek, um dos próceres do pensamento neoliberal. Essa corrente esteve historicamente vinculada a grupos de extrema-direita como a Ku-Klux-Klan (KKK) nos Estados Unidos.

O leão, o pato e os gorilas

O fracasso da direita neoliberal tradicional talvez seja o fenômeno mais importante desse processo eleitoral argentino, com o naufrágio da candidatura de Patricia Bullrich. Ainda enquanto formalmente apoiava Bullrich, o ex-presidente Macri, na prática, já havia embarcado na campanha de Milei. Tal como no Brasil de 2018 com Alckmin, e conforme apontou Claudio Katz, a aposta do establishment falhou eleitoralmente e seu futuro político ficou ainda mais comprometido com a adesão imediata de Bullrich e Macri a Milei logo após o primeiro turno. O Leão Milei abraçado com “Pato” (apelido de Patrícia) Bullrich foi o meme da semana pós-primeiro turno.

Existe ainda uma outra “estrutura de sentimento” para a votação massiva em Milei: a ideia de que a Argentina seria povoada por “gente inferior”. Milei considera Macri um bom representante de Estado sobretudo porque ele é um branco de olhos azuis mais parecido a um europeu, como ele (Milei). Alguns de seus consortes, como Albert Benegas Jr., defendem a própria colonização espanhola, na linha do Foro de Madrid, aparelho transnacional de ultradireita impulsionado pelo Vox espanhol e que inclui Milei, Eduardo Bolsonaro e o neopinochetista José Antonio Kast do Chile. Seria um complexo de vira-lata a la Argenta?

O sentimento antinacional no caso de Milei chega à sua máxima potência quando ataca o Papa Francisco como “comunista”, ou quando reiteradamente elogia Margareth Thatcher, figura (corretamente) odiada pelos argentinos. Só faltou cuspir no túmulo de Maradona e dizer que Messi é um fracassado.

É no terreno do gorilismo que as direitas argentinas têm se movido nos últimos anos, pelo menos desde 2019. E tudo indica que, caso vença Massa, diferente do período anterior, a oposição de direita terá como pólo condutor e aglutinador seu setor ultradireitista. E caso vença Milei, o caos é o mínimo a ser esperado.

A insanidade apenas começou….

Todo o conteúdo e forma dos frequentes e já míticos “descontroles emocionais” de Milei, que foi o que em primeiro lugar lhe propiciou o rating necessário para se tornar um produto da indústria cultural e de aí passar para a política, seriam um prato cheio para a psicanálise.

Agora que Milei precisa se mostrar mais razoável para tornar-se presidente, existe obviamente grande dificuldade em reverter esse modus operandi midiático, sob o risco de perder parte da base que quer escutar justamente o discurso tresloucado e radical.

Um dos elementos que podem fazer a diferença é o voto feminino e a militância feminista. Em entrevista realizada logo após o primeiro turno, na qual Milei estava surtando, o candidato à Presidência soltou mais uma frase repugnante, afirmando que “enquanto os jovenzinhos estão olhando a senhorita pela internet, eu estou metido nos seus lençóis”. Veem à tona declarações anteriores com Milei usando imagens mentais brutais do tipo: “vários bebês nus enfileirados com vaselina e o Estado abusando de todos eles”.

Em um país ainda tão marcado pelo abuso infantil e pelo feminicídio como a Argentina (não por acaso existe o movimento Ni Una Menos), são imagens e frases que chocam e demonstram perversão, algo que só poderia passar pela cabeça e ser dita por um perverso. Lembra Bolsonaro falando sorridente de quando “pintou um clima” com adolescentes, ou de Damares Alves, atualmente senadora da República, “denunciando” supostos abusos infantis com riqueza de detalhes tão cruéis quanto inimagináveis. Soma-se isso à defesa do armamentismo, que sabemos que aumenta o feminicídio.

Outra tática que tem demonstrado eficácia, pelo menos no terreno exclusivamente eleitoral e no curto prazo, é o “janonismo cultural” importado do Brasil. Quem não se lembra da importância, nas semanas anteriores à eleição de 2022, dos vídeos resgatados por André Janones sobre Bolsonaro, como aquele em que o então deputado admitia ter praticado canibalismo, ou sua palestra na maçonaria? Táticas insanas para tempos insanos…

Trata-se de uma eleição em que uma das partes, munida do negacionismo da ditadura, está questionando o próprio sistema eleitoral, alegando ter tido milhares de votos roubados, e já preparando terreno para posteriores questionamentos judiciais ao resultado das eleições, caso seja desfavorável a ele – bem como Bolsonaro fez no Brasil ao “denunciar” as urnas eletrônicas. É uma candidatura que desafia abertamente o regime democrático, ameaçando golpes no melhor estilo gorila do século XXI, inspirados naqueles que bombardearam a Casa Rosada em 1955, inaugurando uma triste tradição de ataque à sede central do Estado por parte das próprias Forças Armadas (e que conheceria continuidade no dia 11 de setembro de 1973 no Chile com o bombardeio de Pinochet ao La Moneda). Mais ainda: uma candidatura cuja nostalgia histórica é de uma Argentina oligárquica e sem as massas na política.

Em suma, tal como ocorreu no Brasil, o esgoto que corre pela deep web foi parar no mais alto debate político de uma eleição presidencial. Uma vez que se desce a tais profundezas, o caminho para a subida será longo. E provavelmente esse não é ainda o fundo do poço: a Argentina é a bola da vez da ultradireita mundial, e mesmo que Milei perca, o investimento internacional no fomento de movimentos fascistizantes no país vizinho será crescente. Está aberta a caixa de Pandora.

Referências bibliográficas
HOEVELER, Rejane Carolina. Observando a extrema-direita na América Latina: comparações entre o bolsonarismo e o neofascismo libertário argentino. In: GRANEMANN, Sara; BOSCHETTI, Ivanete et all. Os direitos não cabem no Estado. Trabalho e política social no capitalismo. Rio de Janeiro: Usina Editorial, 2023. p.91-116.
HOEVELER, Rejane Carolina. Organizando la reacción: los aparatos privados de hegemonía de la extrema derecha en el Cono Sur desde 2015. In: MECHI, Patrícia SPOSITO & DULCI, Tereza M. Spyer. Extrema-direita e neoconservadorismo na América Latina e no Caribe. São Carlos: Pedro & João Editores, 2023. p.65-89.
PAULANI, Leda. Modernidade e discurso econômico. São Paulo: Boitempo, 2005.  
FRIDERICHS, Lidiane Elizabete. Transição democrática na Argentina e no Brasil: continuidades e rupturas. Revista Aedos, v.9, n.20, p.439-455, 2017.

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Rejane Carolina Hoeveler é historiadora. Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e pós-doutoranda em Serviço Social na Universidade Federal de Alagoas (PPGSS-UFAL). Desde 2015, vem publicando artigos, capítulos de livros e outros materiais sobre a extrema-direita brasileira e latinoamericana. Colunista do portal Esquerda Online e colaboradora de veículos como Le Monde Diplomatique Brasil.