Além do luto: sobre amar e ficar com aqueles que morrem em nossos braços

Não, Judith Butler, não podemos lamentar os nossos mortos. Como grita o nosso povo em Gaza, nada resta senão agonia. O mundo colonial permanece em silêncio. Mas ouvimos os seus gritos e clamores, amada Gaza. Seguimos em sua direção, nos esforçamos para estar presentes para você, nós te amamos. Abandonamos a dor enquanto observamos o relógio, esperando que a hora da vida passe enquanto a morte encerra cada respiração.

Resposta a Judith Butler

Por Devin G. Atallah

Tradução de Marcelo Bamonte


Hoje (24), em Boston, recebi um telefonema de um membro do meu povo, na minha aldeia de origem na Cisjordânia.1 Eles me ligaram para chorarmos juntos, para estarmos presentes no genocídio em Gaza, para abraçarmos uns aos outros, e para abraçarmos toda a dor e horror que sentimos no interior de nossos ossos. Durante esse mesmo telefonema, comemoramos o aniversário de um adorado membro da nossa comunidade. Mesmo neste período, estivemos presentes no aniversário do nascimento da Palestina, amando a sua vida, lembrando e honrando a nossa perseverança intergeracional. Por telefone, conversamos sobre como podemos encontrar a expansividade do espírito para estarmos presentes, em tempos de genocídio, na vida das crianças, no nascimento, para uns aos outros. Choramos por todos os nossos bebês palestinos massacrados, e pelas nossas famílias que enfrentam a aniquilação pela violência colonial israelense. Lembramos as palavras do poeta palestino Mahmud Darwich, que escreveu: “o amor nasce como uma criatura viva antes de se tornar uma ideia…”.

O que é necessário para amar os nossos bebês, os nossos vivos e os nossos mortos no meio da expansão colonial genocida de Israel? Como cuidamos dos nossos corpos massacrados e de todos os resíduos coletivos de horror, à medida que o nosso povo é tão violentamente expulso da consideração humana? Quando poderemos chorar nossas lágrimas e deixá-las cair livremente? Isso não é luto. Este é o nosso amor revolucionário nativo lutando contra a violência apocalíptica do genocídio. E quando amamos assim, ancorados na práxis feminista palestina, vivemos e morremos com dignidade e nos tornamos a liberdade que exigimos.

A partir desta práxis do amor palestino e nativo, faço um questionamento às recentes interpretações de Judith Butler sobre o sofrimento. Em 13 de outubro de 2023, seis dias após o genocídio de nossas famílias por Israel, a London Review of Books publicou um ensaio de Butler intitulado “O alcance do luto”, no qual ela condena a violência do Hamas e do regime israelense e apela à não-violência. — Embora admita que a não-violência não é uma política que possa “possivelmente funcionar como um princípio absoluto a ser aplicado em todas as ocasiões”.  

Mas ela a aplica. Butler prossegue dizendo que “a bússola mais ampla do luto resulta em um ideal mais substancial de igualdade, que reconhece a igual capacidade de luto das vidas, e dá origem a uma indignação de que essas vidas não deveriam ter sido perdidas, que os mortos mereciam viver mais, e um reconhecimento igualitário por suas vidas”. Ela pergunta se “podemos lamentar, sem ressalvas, pelas vidas perdidas em Israel, bem como pelas perdidas em Gaza?”.

A minha resposta a Butler: sim, podemos lamentar as vidas israelenses perdidas no ataque do Hamas. Mas, como palestinos, não temos acesso ao luto pelos nossos entes queridos, mortos pela agressão colonial e genocida israelense.

É por isso que me encolhi e me exaltei enquanto lia as interpretações dissimuladas de Butler. Senti mãos coloniais guiando sua bússola, apontando para o norte. Os imaginários de paz e não-violência do Sul Global aboliram há muito esta bússola colonial do Norte. Onde Butler estava? Naufragada há muito tempo nas margens do Mpondo, no Cabo Oriental da África do Sul, como Hugo Canham escreve tão lindamente em Riotous Deathscapes, emergente dos fracassos da esperança branca, nós, como teóricos transnacionais decoloniais originários e negros, temos trabalhado para nos orientarmos para longe de zonas destrutivas coloniais de segurança, proteção e certezas. Nos orientamos em direção às nossas águas, para os nossos mares mutáveis, para os nossos poços e nascentes. Encontramos maneiras de fluir, de resistir à aceitabilidade e ao conhecimento categórico.

À medida que o nosso povo palestino enfrenta o desmascaramento genocida do mundo colonial, sabemos que quando os colonizadores falam de “segurança”, estão falando, na verdade, de “violência”. No câmbio colonial – ou na troca “columbial”, já que Colón significa Colombo em espanhol – a segurança torna-se violência e a violência torna-se segurança. Elas se fundem e se tornam a mesma palavra.

Tareq Baconi escreveu recentemente: “durante décadas, Israel tem operado com o pretexto de poder fornecer segurança aos seus cidadãos, ao mesmo tempo que submete o povo palestino a um regime de apartheid. Agora, essa pretensão foi destruída.” Israel mentiu ou desinformou os seus cidadãos durante mais de sete décadas? Não. Em vez disso, a questão é de semântica. A promessa de Israel de que proporcionaria segurança aos seus cidadãos sempre foi, na verdade, uma promessa de que lhes proporcionaria violência, como ilustrado no trabalho de Nadera Shalhoub-Kevorkian.

Como palestinos, não temos o privilégio de nos enlutarmos porque não podemos lamentar os nossos cadáveres assassinados como parte desta contínua violência columbial. Sabemos, no interior de nossos corpos, que, para sofrer, devemos ter acesso à fluidez do tempo que nos foi roubado junto com nossa terra. O luto é para cadáveres que tiveram acesso à vida enquanto estavam vivos, e que foram então cerimonialmente enterrados na terra e no céu, em cemitérios, na fumaça. Os corpos dos colonizadores têm esses privilégios. No entanto, nós, os colonizados, ainda não conseguimos recolher as partes dos nossos corpos, estraçalhadas pelos espaços e tempos. Desde agora, na Cidade de Gaza, até há quarenta anos em Sabra e Shatila; desde há alguns meses em Jenin até há vinte anos em Belém; de dois anos atrás em Sheikh Jarrah há um ano atrás em Nablus; há nove anos, em Khan Younis, há 75 anos, em Deir Yassin; e assim por diante. É por isso que nós, os colonizados, não podemos lamentar os nossos mortos. Somos obrigados a roubar o nosso presente para lutar pelo nosso futuro.

Mesmo quando não podemos sofrer, ainda assim escolhemos o amor. Afirmamos o nosso amor palestino com recusa, persistência e cuidado. Como meu amigo Abdullah, um palestino de Gaza, compartilhou comigo ontem, quando visitei ele e seu bebê de três anos, e com amor e carinho perguntei a ele se ele precisava se abrir, e ele compartilhou essa história: “Você conhece o Devin, habibi, estou tentando me segurar ao nosso amor nativo, agora, mais do que nunca. O amor nativo, para mim, significa relações vivificantes entre terra, solo e alma, que sinto em meu próprio corpo quando abraço meu filho. Estive em casa com ele durante todo o genocídio dos últimos 12 dias, enquanto falo ao telefone ou envio mensagens à minha família e à minha comunidade em Gaza.

Estive ao telefone com uma funcionária da linha da frente de uma organização de ajuda humanitária palestina que respondia aos bombardeios de ontem em Gaza. Ela estava me explicando como ela e outros membros de sua equipe estavam lutando para encontrar sobreviventes, corpos, cadáveres. Enquanto ela partilhava isto comigo, reparei que de repente comecei a viajar no tempo, sendo inundado com memórias de 2008, quando era tradutor e jornalista, reportando um massacre de agricultores numa comunidade em Gaza. Estive num local onde 28 membros de uma família foram mortos num bombardeio israelense e, enquanto lutava para retirar os escombros das casas, tropecei numa mulher que estava no chão, a gritar e a dar à luz. Ainda não havia assistência médica e o exército israelense não permitiu a entrada de ambulâncias na área.

Ajoelhei-me ao lado dela e percebi que ela estava gravemente ferida e sangrando por toda parte. Ela estava tendo contrações, prestes a dar à luz. Eu levantei e segurei sua cabeça do chão enquanto ela empurrava seu bebê para fora. Assim que o bebê nasceu, eu sabia que precisava cortar o cordão umbilical, mas não tinha ferramentas. Minhas mãos e tudo ao meu redor estavam cobertos de poeira e sangue. Vi que a mãe estava em péssimas condições e provavelmente morreria. Percebi que tinha apenas três opções: tentar salvá-la de alguma forma, ficar com ela enquanto ela morria em meus braços ou deixá-la e continuar procurando outras pessoas que poderiam ter chances maiores de sobreviver. E o bebê? Eu estava paralisado neste estado impossível de inexistência. Era o inferno na Terra. Fiquei com ela, no inferno. Estes são momentos palestinos que muitos de nós lembramos e armazenamos sob a nossa pele, especialmente nós de Gaza.

Então, viajei no tempo novamente e estava de volta com a atendente da linha de frente que ainda falava no meu outro ouvido, descrevendo cenas de horror do momento presente, do agora, onde partes de corpos estão por toda parte, pessoas gritando, com pontas afiadas a cada esquina, tudo está quebrado e em colapso. Ela estava conversando comigo sobre as mesmas decisões que tive que tomar em 2008: “procuro sobreviventes ou fico com pessoas que estão morrendo em meus braços?”

Ao telefone, era como se ambos estivéssemos correndo, ambos perdendo o fôlego juntos, perdendo tudo. Era como se estivéssemos caindo no abismo do genocídio, um buraco negro forte o suficiente para engolir a nossa luz. Eu podia ouvir nossa luta para respirar ao telefone. Ela sabe que eu sei. Ela sabe que eu entendo. Eu a apoio na tomada de decisões impossíveis, compartilhando palavras de amor, carinho e apoio. Ao nos despedirmos, eu digo a ela “ma’ al-mahabba” [com amor].

Não, Judith Butler, não podemos lamentar os nossos mortos. Como grita o nosso povo em Gaza, nada resta senão agonia. O mundo colonial permanece em silêncio. Mas ouvimos os seus gritos e clamores, amada Gaza. Seguimos em sua direção, nos esforçamos para estar presentes para você, nós te amamos. Abandonamos a dor enquanto observamos o relógio, esperando que a hora da vida passe enquanto a morte encerra cada respiração. Nós, os nativos em 2023, confiamos à terra a nossa dor e o nosso amor. Os colonizadores vêm e vão. Mas a terra permanece, assim como as nossas almas. E como nos lembra o nosso provérbio palestino: الارض تعادل الروح [A terra equivale à alma].

Publicado originalmente em Institute for Palestine Studies.

Nota
1 Não estou especificamente nomeando o meu povo, ao oeste da Cisjordânia, nem sua conexão comigo, para preservar sua privacidade e segurança em tempos de uma violência extraordinária contra nosso povo.


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Devin G. Atallah é professor assistente de psicologia na Universidade de Massachusetts Boston (UMB). Sua equipe de pesquisa e militância na UMB é o Coletivo DARA. Ele é um palestino da diáspora dos EUA e do Chile. Como ativista, investigador, acadêmico, praticante e curandeiro, o Dr. Atallah dedica-se aos movimentos decoloniais e à libertação palestina, e o seu trabalho centra-se na compreensão e contribuição direta para a resistência intergeracional e a práxis de justiça curativa. Atallah desenvolveu um guia de cura decolonial palestino com colegas, CURCUMs Trees: A Decolonial Healing Guide for Palestinian Community Health Workers, que está disponível em inglês e árabe na Mayfly Books.

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