Vidas palestinas importam

A desumanização é fundamental para a ofensiva israelense. Serve para que a opinião pública internacional não se sensibilize com a tragédia do povo palestino.

Imagem: Khaled Hourani

Por Luis Felipe Miguel

Na CPI do 8 de janeiro, a oposição quis emplacar a história de que o governo Lula tentou dar um golpe contra si mesmo. A imprensa, com razão, ridicularizou o estratagema.

Mas quando Estados Unidos e Israel dizem que o hospital palestino foi bombardeado pelos próprios palestinos, essa narrativa logo é aceita como digna de atenção.

Embora o governo de Israel já tenha deixado claro, em numerosas declarações, que considera os palestinos como “animais” e que deseja exterminar a população de Gaza – “a única coisa que precisa entrar em Gaza são centenas de toneladas de explosivos da Força Aérea, nem um grama de ajuda humanitária”, disse o ministro da Segurança Nacional israelense, Itamar Ben-Gvir.

Embora Israel tenha o hábito de negar ações de suas forças armadas, até a hora em que não consegue mais desmentir.

Embora Israel tenha atacado o hospital antes, com menor poder de fogo, como “advertência”, para exigir sua evacuação.

Embora Israel tenha sustentado as acusações com base na análise de imagens da Al Jazeera, mas tenha sido levado a apagar das redes sociais sua “análise” quando percebeu que o vídeo era de uma hora antes do bombardeio do hospital.

Embora Israel tenha divulgado um áudio pretensamente interceptado de integrantes do Hamas atribuindo a ataque à Jihad Islâmica – e especialistas (ocidentais!) já tenham constatado que o áudio certamente é falso, devido ao sotaque e péssima pronúncia dos homens que conversam.

Embora um porta-voz do governo israelense tenha admitido a autoria do ataque – e depois apagou o tuíte.

Enquanto a “polêmica” sobre a autoria do ataque monopoliza o noticiário, suas vítimas – 471 civis palestinos, incluídas muitas crianças – passam para um distante segundo plano.

Essa é a tônica da cobertura da imprensa.

Na imprensa, as vítimas israelenses da guerra são pessoas de carne e osso. Aparecem em fotos sorrindo, dançando, os amigos e parentes contam de seus sonhos brutalmente interrompidos. Sentimos empatia, nos entristecemos por elas.

Já as vítimas palestinas são invisibilizadas. São números. No máximo, vemos fotos de Gaza destruída. Parece que não há sonhos que possam ser interrompidos ali – é só brutalidade, violência, morte.

A desumanização é fundamental para a ofensiva israelense. Serve para que a opinião pública internacional não se sensibilize com a tragédia do povo palestino, há décadas submetido à opressão.

E os Estados Unidos são o grande cúmplice. Quase ninguém, na elite política estadunidense, tem coragem de afrontar o poderoso lobby sionista.

Organizações estudantis de Harvard tiveram a ousadia de se manifestar em defesa dos direitos dos palestinos. A resposta não tardou: bilionários anunciaram que vão cortar doações à universidade. Alguém duvida que a reitoria já está se esforçando para calar os estudantes?

No Conselho de Segurança das Nações Unidas, os EUA usaram seu poder de veto para barrar a proposta de resolução brasileira pela paz.

Diziam que, quando Joe Biden morresse, Kamala Harris ia se tornar a primeira mulher negra a ordenar o bombardeio de um país do Terceiro Mundo – uma vitória identitária, sem dúvida. Ainda não chegamos lá, mas a embaixadora Linda Thomas-Greenfield não ficou longe.

Depois, a embaixadora disse que ficou “desapontada” porque o texto proposto pelo Brasil não mencionava o “direito de autodefesa” de Israel.

“Autodefesa”, no caso, é a aplicação da lei de Talião por uma superpotência militar contra um povo devastado.

Mais uma vez, é a desumanização dos palestinos que permite esse discurso.

Vidas palestinas importam. Esse é o recado que precisa ser reiterado.

Originalmente publicado no site A Terra é redonda.


Caminhos divergentes, de Judith Butler
A partir das ideias de Edward Said e de posições filosóficas judaicas, Butler articula uma crítica do sionismo político e suas práticas de violência estatal ilegítima, nacionalismo e racismo patrocinado pelo Estado. Além de Said, reflete sobre o pensamento de Levinas, Arendt, Primo Levi, Buber, Benjamin e Mahmoud Darwish para articular uma nova ética política, que transcenda a judaicidade exclusiva e dê conta dos ideais de convivência democrática radical, considerando os direitos dos despossuídos e a necessidade de coabitação plural.

Ideologia e propaganda na educação, de Nurit Peled-Elhanan
A professora de linguagem da educação investiga os recursos visuais e verbais utilizados em livros didáticos de Israel para representar a população palestina. Mobilizando o arcabouço teórico e metodológico da análise crítica do discurso e da análise multimodal, Nurit Peled-Elhan examina a apresentação de imagens, mapas, layouts e o uso da linguagem em livros de história, geografia e educação moral e cívica. O resultado é uma detalhada exposição dos mecanismos pelos quais esses materiais escolares moldam um imaginário de marginalização dos palestinos. 

Cultura e política, de Edward W. Said
Edward Said imprime uma visão universalista em suas análises sobre a questão palestina, inserindo-a no conjunto das grandes lutas pelo reconhecimento de todos os povos a afirmar sua identidade e ter sua expressão política. Sua obra denuncia o racismo ocidentalista, que tenta se legitimar como visão hegemônica do mundo, opõe-se à criminalização da luta do povo palestino e de todos aqueles considerados fora dos padrões da chamada civilização ocidental.

A liberdade é uma luta constante, de Angela Davis
Esta ampla seleção de artigos traz reflexões sobre como as lutas históricas do movimento negro e do feminismo negro nos Estados Unidos e a luta contra o apartheid na África do Sul se relacionam com os movimentos atuais pelo abolicionismo prisional e com a luta anticolonial na Palestina. Além de sua reconhecida atuação política no combate ao racismo, Davis denuncia também o sexismo, demonstrando de forma muito objetiva a relação entre a violência contra a mulher e a violência do Estado.De acordo com a autora, não há possibilidade de se combater a violência sem desmontar as estruturas do sistema capitalista.

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Luis Felipe Miguel é doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), professor titular livre do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Autor, entre outros livros, de Democracia e representação: territórios em disputa (Editora Unesp, 2014), Dominação e resistência: desafios para uma política emancipatória (Boitempo, 2018) e O colapso da democracia no Brasil (Expressão Popular, 2019). Também é coautor, junto com Flávia Biroli, de Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014). Colaborou com o livro de intervenção O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil (Boitempo, 2018).

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