A importância da terra em sua tenebrosa força e vitalidade
Raquel Rolnik desnuda a espantosa aliança que há, em diversas nações, entre, de um lado, a classe dominante e a dominação social e, de outro, as políticas habitacionais e fundiárias e os incorporadores e promotores imobiliários.
Foto: Pablo Vignali
Por Flávio Villaça
A dissertação de mestrado de Raquel Rolnik, de cuja banca participei em 1981, chama-se Cada um no seu lugar!. A tese de livre-docência, que deu origem a este livro – e de cuja banca também tive o prazer de participar, em 2015 –, chama-se Guerra dos lugares. A repetição da palavra “lugar” mostra que estamos diante de uma intelectual que, há muito tempo, estuda o espaço produzido pelo homem e seu planejamento. Já a palavra “guerra”, que aparece no título da tese, indica que estamos diante de uma guerreira que, em sua luta contra a desigualdade e a injustiça, escolheu agora um adversário de peso: o capitalismo global, financeirizado, e a propriedade privada individual da terra.
Uma luta à altura da autora deste livro. Raquel tem décadas de experiência nos temas de planejamento urbano e habitação. Dessa experiência, destaco duas atividades importantes: a primeira é sua atuação como relatora especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada. Nessa função, ela se familiarizou com o campo da moradia popular em diversos países, desenvolvidos e subdesenvolvidos, nos quais não só viu de perto as condições de habitação, como também pôde captar as intrincadas relações entre, de um lado, as políticas habitacionais e, de outro, as políticas financeiras, a terra e sua posse e a propriedade individual. Constatou como são inseparáveis as políticas urbanas, fundiárias e habitacionais. O cargo de relatora facilitou à pesquisadora a aquisição de uma visão ampla e profunda do problema da moradia e de como, em escala global, amplia-se a influência do complexo imobiliário-financeiro sobre as políticas habitacionais e mesmo as políticas urbanas. Em ambas, a terra parece despontar como elemento vital que tudo define e em torno do qual tudo gira. Dificilmente se encontrará uma obra como esta, em que a importância da terra apareça em toda a sua tenebrosa força e vitalidade. Para espanto e tristeza dos planejadores urbanos, grupo no qual me incluo, a autora expõe as mazelas de nossa atividade e não se deixa levar pelas aparências, indo diretamente à essência da questão, revelando de que forma, em vários países, inclusive no Brasil, a classe dominante exerce seu poder através da legislação urbana, da atividade imobiliária e do mercado de terras. Esclarece como o planejamento urbano e a regulação urbanística dele decorrente servem para assegurar a essa classe o controle da produção e da desigual distribuição do espaço urbano.
Põe, assim, a nu a espantosa aliança que há, em diversas nações, entre, de um lado, a classe dominante e a dominação social e, de outro, as políticas habitacionais e fundiárias e os incorporadores e promotores imobiliários.
A segunda atividade de Raquel cuja importância quero destacar é como professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Felizmente para todos nós, de todas as gerações, e para o Brasil, ela colocou sua competência e experiência a serviço do ensino. E agora, com a publicação desta obra singular, seu saber ganha novo alcance e se perpetua de outros modos. Sorte dos leitores.
“Uma denúncia devastadora da incapacidade de nossos sistemas político e
econômico atuais de oferecer abrigo decente em condições de vida dignas
para a maioria dos cidadãos do planeta. Como relatora especial para o Direito
à Moradia Adequada da ONU, Raquel Rolnik adquiriu um cabedal incrível de
experiência global relativa a questões de moradia, ora materializado neste
livro. É uma obra fantástica, que articula e entrelaça de forma admirável o
debate teórico e um rol impressionante de testemunhos pessoais colhidos em
primeira mão ao redor do mundo.”
– David Harvey
Fruto das reflexões que a urbanista Raquel Rolnik elaborou durante e imediatamente após o término de seu mandato como relatora para o Direito à Moradia Adequada da ONU, Guerra dos lugares aborda o processo global de financeirização das cidades e seu impacto sobre os direitos à terra e à moradia dos mais pobres e vulneráveis.Nas duas primeiras partes, Rolnik descreve e analisa as transformações recentes nas políticas habitacionais e fundiárias em vários países do mundo, no marco da expansão de uma economia neoliberal globalizada, controlada pelo sistema financeiro, que provocaram um processo global de insegurança da posse. Na terceira, a urbanista explora a mesma questão, com foco no Brasil. A originalidade da obra reside no enfoque global do fenômeno, investigado a partir da vivência direta de uma autora brasileira olhando as condições de moradia no mundo. A leitura da evolução recente das políticas habitacionais e urbanas no Brasil – inclusive na era Lula – à luz desses processos globais ajuda a pensar as especificidades e as diferenças da crise urbana no país. Também é original o entrelaçamento entre as políticas habitacionais e a política urbana, articuladas pela autora através da construção da hegemonia da propriedade individual e da transmutação dos imóveis em ativos.
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Flávio Villaça foi professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) e participou da elaboração de plano diretores de diversos municípios. Contribuiu para a Margem Esquerda #24 com o artigo “O território e a dominação social”.
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