O “livro proibido” que ainda mobiliza nossos dilemas contemporâneos

A qualidade destes ensaios evidencia que HCC continua sendo incontornável: diante da permanência onipotente do capital como sujeito da história e da precarização do trabalho, ainda se espera o Augenblick, a irrupção espontânea de uma dinâmica social revolucionária, inscrita na história e entrelaçada dialeticamente a uma perspectiva, por meio da qual seria possível consolidar uma transformação que não terminasse em rigidez teórica nem em ditadura.

Imagem: Kasimir Malévich

Por Arlenice Almeida da Silva

O principal mérito dessas recentes interpretações de História e consciência de classe (HCC) é o de diluir o esquema que reiteradamente opõe a “ortodoxia marxista” ao “marxismo ocidental”; com isso, alarga-se o campo das abordagens marxistas sobre as contradições do capitalismo, no interior das quais o livro sui generis de György Lukács distingue-se pela originalidade e pela coragem. Nessa direção, História e consciência de classe, cem anos depois: reflexões sobre o livro que mudou o pensamento crítico do século XX, com textos meticulosamente selecionados por José Paulo Netto, provocam vários confrontos de ideias, os quais não permitem que se separe o filósofo do revolucionário ou a teoria crítica da práxis. O efeito é perturbador: reverbera, mais uma vez, o impacto produzido por esse “livro proibido”, que, desde sua publicação em 1923, em linguagem ultraesquerdista, desloca radicalmente a filosofia, ao exibir um misto de lucidez e entusiasmo.

Os confrontos ocorrem entre diferentes leituras de HCC. De um lado, sublinha-se a ousadia solitária de Lukács ao vivificar a dialética materialista, entrelaçando a realidade vista pelas lentes da mercadoria, com Marx, a racionalização generalizada, de Weber, e a dialética, de Hegel. São análises que ressaltam o método, a noção de totalidade, a centralidade do problema da reificação e o vir-a-ser da consciência revolucionária proletária, como invenção subjetiva-objetiva, em uma feliz síntese de luxemburguismo e leninismo. De outro lado, há estudos que, privilegiando a trajetória, partem do prefácio revisionista de Lukács, de 1967, e denunciam os erros do livro, seu idealismo e uma compreensão insuficiente do marxismo, tendo em vista as conclusões do maduro Lukács em sua Ontologia. Condenam, assim, a indistinção entre objetividade e alienação, a construção especulativa da totalidade e as ausências da teoria do reflexo, da dialética da natureza e da centralidade do trabalho.

A qualidade destes ensaios evidencia que HCC continua sendo incontornável: diante da permanência onipotente do capital como sujeito da história e da precarização do trabalho, ainda se espera o Augenblick, a irrupção espontânea de uma dinâmica social revolucionária, inscrita na história e entrelaçada dialeticamente a uma perspectiva, por meio da qual seria possível consolidar uma transformação que não terminasse em rigidez teórica nem em ditadura. Ao propor que a luta contra os limites da democracia não resulta em barbárie, mas na própria revolução, cem anos depois, HCC ainda mobiliza nossos dilemas contemporâneos.

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Organizada por José Paulo Netto, a obra busca celebrar e trazer para o debate do século XXI o monumental livro História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista, de György Lukács, como forma de homenagear e celebrar os cem anos de sua publicação, ocorrida em 1923. Desde essa época, o livro foi alvo de polêmicas, duras críticas, mas também de aplausos e de reconhecimento.

A partir dos anos 1960, com o relançamento oficial, acrescentado de um prefácio escrito por Lukács, o interesse pelo livro se acentuou e uma série de estudiosos começou a debater seu conteúdo e sua importância na cena marxista. História e consciência de classe, cem anos depois, reúne vários pontos de vista sobre o livro, em treze textos, incluindo o prefácio de Lukács escrito para a edição de 1967. Assinam os artigos Antonino Infranca, Eduardo Sartelli, Guido Oldrini, Henrique Wellen, Koenraad Geldof, Lucien Goldman, Marcos Nobre, Mauro Luis Iasi, Michael Löwy, Nicolas Tertulian, Ricardo Musse e Slavoj Žižek.

Os textos, alguns deles nunca traduzidos para o português, são reunidos aqui junto com outras  informações de natureza histórica e bibliográfica nem sempre facilmente localizáveis. Olhares múltiplos sobre um autor cujas ideias, por vezes desconcertantes, permanecem extremamente vivas e atuais.

O livro, organizado por José Paulo Netto, tem prefácio de Celso Frederico, texto de orelha de Arlenice Almeida da Silva e capa de Antonio Kehl e Ivana Jinkings a partir de Kasimir Malévich.


Veja o lançamento de História e consciência de classe, cem anos depois, com debate entre Arlenice Almeida da Silva e Marcos Nobre, mediação de Claudinei Cássio de Rezende, na TV Boitempo:

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Arlenice Almeida da Silva graduou-se em história na USP, onde também concluiu o doutorado em filosofia, com tese defendida sobre o Romance histórico, de György Lukács. De 2005 a 2009, foi professora de estética no departamento de filosofia da Unesp, campus de Marília. Desde 2010 é professora de estética e filosofia da arte no departamento de filosofia da Unifesp. Pela Boitempo, publicou Estética da resistência: a autonomia da arte no jovem Lukács (2021).

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