Para refletir e somar esforços na luta por democracia e liberdade

"Democracia para quem?" é uma importante publicação para aqueles e aquelas que buscam refletir e somar esforços para implementar mudanças profundas em nossas sociedades, começando pelo entendimento sobre democracia e liberdade, superando todos os sistemas de opressão e construindo vidas de direitos e plenas do viver em equanimidade.

Por Juliana Borges

Para muitos, seria óbvio dizer que democracia e liberdade caminham juntas. Contudo, a história nos mostra o contrário. Seja porque democracia é um conceito em constante disputa e formulação, seja porque a liberdade nem sempre foi considerada uma prerrogativa de todos os seres humanos.

A democracia, tal qual a conhecemos, se estabelece no pós-Segunda Guerra Mundial como arma ideológica capitalista no contexto da Guerra Fria para fazer frente a países com regimes de Estado forte e com medidas regulatórias do mercado. O que Angela Davis, Patricia Hill Collins e Silvia Federici, intelectuais fundamentais de nosso tempo, apresentam em Democracia para quem? são as contradições, guiadas sistemicamente pelo capitalismo, que nos fazem falar em democracia e liberdade enquanto convivemos com essas expressões e podemos observar que são pertencentes de forma supremacista à categoria homem-branco-hetero-burguês em nossas sociedades. Assim, é possível explicar que nações possam ser defensoras da democracia e da liberdade ao mesmo tempo que encarceram descontroladamente e têm a violência como política pública.

Mas as autoras vão além. Realizar uma radiografia histórico-política sobre como mulheres – notadamente mulheres negras e indígenas – são marginalizadas para atender ao funcionamento das engrenagens decorrentes de desigualdades, baseadas em hierarquias sociorraciais e de gênero, é a tarefa por elas escolhida para que reflitamos sobre as urgentes transformações estruturais de que necessitamos. Em resposta à pertinente pergunta do seminário “Democracia em colapso?”, realizado pela Boitempo, em 2019, as três ativistas apontam o patriarcado, a exploração das mulheres e o racismo, pela criação e hierarquização de etnias e grupos, como fundamentais a serem superados para que democracia e liberdade sejam palavras, práticas e direitos exercidos por todos. E enfrentam a despolitizante tentativa de tachar as lutas feministas e antirracistas como “identitárias”, tendo em vista que suas bandeiras, formas de organização e projetos políticos visam a presentes e futuros equânimes a todos, implodindo estruturas e propondo novas formas de vida pautadas no bem comum e, tomando a liberdade de expandir, no bem viver.

Assim, Democracia para quem? é uma importante publicação para aqueles e aquelas que buscam refletir e somar esforços para implementar mudanças profundas em nossas sociedades, começando pelo entendimento sobre democracia e liberdade, superando todos os sistemas de opressão e construindo vidas de direitos e plenas do viver em equanimidade.

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Democracia para quem? reúne as palestras proferidas de 15 a 19 de outubro de 2019, por três intelectuais do movimento feminista – Angela Davis, Patricia Hill Collins e Silvia Federici – no âmbito do seminário internacional “Democracia em Colapso?”, promovido pelo Sesc São Paulo e pela Boitempo. No livro, é possível tomar contato com reflexões feitas pelas três autoras – referências globais em suas áreas de estudo e de atuação – sobre temas como capitalismo, racismo, desigualdade social, ecologia, entre outros.

No que se refere, por exemplo, ao papel da mulher na sociedade, Angela Davis afirma que não pode haver democracia sem a luta histórica das mulheres negras: “Quando as mulheres negras se moveram em direção à liberdade, elas nunca representaram apenas elas mesmas”. Para Davis, a figura da mulher negra representa todas as comunidades que sofreram exploração econômica, opressão de gênero e violência racial.

Em sua apresentação, Collins reflete sobre o conceito de liberdade e diz que não faz diferença pensar em liberdade para pessoas negras sem pensar no que isso significa tanto para homens negros quanto para mulheres negras: “Seria maravilhoso se pudéssemos deixar para trás as partes feias do passado. Mas, se olharmos à nossa volta, podemos ver as mesmas relações atualmente e percebemos que esse é um discurso que está mais vivo que nunca e que tem uma longa história”.

Já a italiana Silvia Federici observa a resistência das mulheres em todo o mundo para reconstruir e defender os bens comuns: “Estão defendendo seus bens quando defendem a floresta ou a terra ou as águas de uma empresa de mineração ou de petróleo. Estão dizendo que a Terra pertence a todos e todas”.

Eram os últimos meses pré-pandemia. No início do ano seguinte, o terror sanitário, negacionista e golpista de Jair Bolsonaro e de seus aliados submeteu a democracia brasileira ao mais profundo estresse desde a redemocratização, em 1985. O evento paulistano ganhou um novo e pesado sentido quando o colapso das instituições brasileiras esteve na ordem do dia.

A obra conta ainda com intervenções de Adriana Ferreira, Raquel Barreto, prefácio de Marcela Soares e texto de orelha de Juliana Borges.

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Juliana Borges é escritora e pesquisadora em Antropologia na FESPSP (Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo), onde estuda política criminal e relações raciais. Cofundadora da Articulação Interamericana de Mulheres Negras na Justiça Criminal – Núcleo Brasil. Consultora do Núcleo de Enfrentamento, monitoramento e memória de combate à violência da OAB-SP e conselheira da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas. Feminista antipunitivista e antiproibicionista. Autora dos livros Encarceramento em massa (Coleção Feminismos Plurais, Polén Livros/Selo Sueli Carneiro) e Prisões: espelhos de nós (Todavia). Foi secretária adjunta de políticas para as mulheres e assessora especial da Secretaria do Governo Municipal da Prefeitura de São Paulo.

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