Se não pudermos transar, não é nossa revolução

Não desejamos a mera inclusão de nossas vidas em uma luta concebida previamente: este é o desejo utilitarista que o heterocispatriarcado “de esquerda” formulou para nós. Desejamos que nossa participação possa apontar as lacunas produzidas por práxis incapazes de não deixar para trás nenhum corpo.

Por Rita von Hunty 

Já não era sem tempo!

É com certo alívio, mas também com desespero que recebemos no Brasil, quase meio século depois de sua publicação original, em 1977, a primeira tradução de Elementi di critica omosessuale. O alívio surge da percepção de que vamos, pouco a pouco, compreendendo, como esquerda radical, que as LGBTI+, as mulheres, as pessoas racializadas, as pessoas com deficiência e os demais grupos minorizados não são “parte” da classe trabalhadora, mas “a” classe em si. Já o desespero é, em parte, fruto de uma dificuldade particular com a qual encaramos, como corpos subalternizados dentro da classe trabalhadora, o conceito de paciência revolucionária. Não é fácil seguir paciente em um país que nos assassina sistematicamente.

Ao longo da História, tivemos (e seguimos tendo) muita dificuldade em integrar tanto os debates quanto as fileiras de movimentos organizados e organizadores da classe trabalhadora que tivessem horizonte emancipatório radical. Vale lembrar, por exemplo, o sintomático fato de que só em 1978 um grupo político organizado de esquerda conseguiu falar pela primeira vez sobre homossexuais como sujeitos políticos no Brasil. Mesmo à esquerda, o que pudemos conhecer como “discurso formal” ora dificultava nosso reconhecimento nos acusando ora de “perversos”, ora de “doentes”, ora de “desajustados” e até mesmo de algum “desvio pequeno-burguês”. Fato é que em maior ou menor grau, no centro do sistema capitalista ou em suas periferias, o que se delimitava era a incapacidade de assimilação de nossos corpos como humanos, mesmo por nossos próprios “camaradas”.

O esforço coletivo de autoras, editoras e tradutoras soma-se num mesmo sentido: apontar que nossos passos vêm de longe e que há muito reivindicamos reconhecimento como vidas vivíveis e vozes escutáveis. Mas não apenas isso, obras como esta ressaltam o valor de nossas contribuições à “ciência imortal do proletariado”. Não desejamos a mera inclusão de nossas vidas em uma luta concebida previamente: este é o desejo utilitarista que o heterocispatriarcado “de esquerda” formulou para nós. Desejamos que nossa participação possa apontar as lacunas produzidas por práxis incapazes de não deixar para trás nenhum corpo.

Se não pudermos transar, não é nossa revolução.


Publicado na Itália em 1977, Por um comunismo transexual é considerado um dos precursores da teoria queer. Abordando a relação entre homossexualidade, homofobia e capitalismo, a obra de Mario Mieli representa, ainda nos dias de hoje, um desafio radical à teoria e à política dominantes. Com um tom de manifesto político, em muitos momentos utópico e voluntarista, a obra apresenta uma abordagem marxista e homossexual.

Fruto da tese de conclusão de curso de filosofia do autor, o livro tem um forte diálogo com a psicanálise. Mieli contesta algumas das teorias psicanalíticas mais conhecidas de sua época sobre a homossexualidade, além de transitar pela história da repressão aos desejos eróticos e como isso está intrinsicamente ligado à história do capitalismo. Para Mieli, o desejo homoerótico é universal e enquanto a sexualidade for reprimida, a homofobia será um problema para todos. Para o autor, a desconstrução do que chama de “norma” heterossexual precisa ser uma luta dos comunistas.

Publicado pela primeira vez no Brasil e com tradução direta do italiano, a edição traz um apêndice crítico, organizado por Paola Mieli, presente na edição comemorativa de 2017. Por um comunismo transexual é uma leitura essencial para todos que procuram compreender o verdadeiro significado da libertação sexual sob o capitalismo de hoje.



Ouça o episódio sobre Por um comunismo transexual no quadro Conversas camaradas, em que recebemos Marília Moschkovich e Renan Quinalha na Rádio Boitempo:

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Rita von Hunty é a persona drag do ator e professor Guilherme Terreri. Com formação em Artes Cênicas pela UNIRIO e Língua e Literatura Inglesa pela USP, Rita conduz – através dos Estudos de Cultura – discussões com seu público sobre temas sociais com horizonte emancipatório radical. Rita tem atuado no cinema, no teatro, na TV e no Youtube com o canal Tempero Drag além de seus trabalhos como colunista na Carta Capital e vídeo colunista em uma série de outros meios.

1 comentário em Se não pudermos transar, não é nossa revolução

  1. Heterocispatriarcado, sei não…

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