O arquivo morto do DOI-CODI
Parece-me que uma das estruturas fundamentais de impedimento de uma democracia mais abrangente e efetiva é a violência de Estado. Ela impõe a diversos segmentos da população a precarização de seus territórios e seus corpos. É justamente essa violência que classifica e hierarquiza a vida e estabelece quais são descartáveis.
FOTO: OSWALDO SANTOS-JUNIOR
Por Edson Teles
Durante o mês de agosto foi efetivado no país um trabalho praticamente inédito de arqueologia forense. Refiro-me às escavações e análises forenses das paredes de duas edificações onde funcionou o DOI-CODI, cuja sigla abreviava o tenebroso nome “Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna”.
O DOI-CODI foi a instituição que sucedeu, em São Paulo, a OBAN, Operação Bandeirante, centro clandestino de tortura. Com a criação do DOI-CODI, em 1970, o Exército brasileiro oficializou a estrutura de tortura, assassinato e desaparecimento de opositores (e de qualquer outro que os agentes da repressão estatal quisessem). Era coordenado por oficiais do Exército e contava com bandidos das três forças, além de policiais civis e militares.
Suas ações eram alocadas e corroboradas pelo Estado, contando com a conivência de juízes e outros órgãos, e com a ação de ocultação de vítimas via estrutura do Instituto Médico Legal e de parte de seus legistas que produziam laudos falsos; algumas delegacias que corroboravam as versões falsificadas; estrutura cemiterial para o enterramento visando diminuir o registro ou a publicização das mortes. Participaram ainda a grande mídia, como o jornal Folha de S. Paulo1, que mantinha agentes da Ditadura em suas redações e davam ampla cobertura para as narrativas inventadas pelos DOI’s, como eram conhecidos.
A Ditadura montou DOI’s nas principais capitais do país. Mas, em São Paulo, funcionou o principal deles, sob o comando do então major Carlos Alberto Brilhante Ustra. Em ação sob o comando direto desse torturador, eu e minha família fomos presos e encaminhados para o DOI-CODI, em 28 de dezembro de 1972. Contei essa história em diversas ocasiões. Hoje, escrevo para trazer um outro aspecto e dizer algo sobre o modo como produzimos memória sobre momentos históricos de violência. Seja a memória sobre os anos de Ditadura, seja a de outros momentos terríveis de nossa história.
Neste mês de agosto de 2023, pela primeira vez, tive a oportunidade de adentrar com minha mãe, Amelinha Teles, bem como minha irmã, Janaína Teles, nas edificações do centro de tortura. Nos anos 1970, estivemos lá presos, juntamente com César Teles, meu pai, Criméia de Almeida, minha tia, e Carlos Nicolau Danielli, amigo da família. Transitamos nos dois prédios dos fundos e vimos um pouco do belíssimo e importante trabalho de escavação da história realizado por equipes da Unifesp, Unicamp e UFMG. Pudemos ouvir e acompanhar escavações de piso e do pátio, assim como a raspagem das paredes.
Amelinha foi nos contando sobre a cela onde ficava detida, o banheiro no qual tinha de tomar banho ou fazer suas necessidades sob a constante vigia de seus algozes e a sala onde ocorriam as torturas. Tudo isso no prédio de três pisos, o qual é ladeado pela casa onde à época ficavam os agentes em descanso. No pátio consigo me lembrar do cantinho em que eu e a minha irmã passávamos boa parte do dia. Por vezes, o Ustra, posteriormente promovido a coronel pelos trabalhos de violações de direitos cometidos no período, nos conduzia às salas de tortura de outra edificação, a qual não passa hoje por qualquer trabalho de recuperação de sua história.
Trata-se do prédio que abre o espaço DOI-CODI para quem chega pela rua Tutóia e que, hoje, abriga a 36ª Delegacia de Polícia. Nos anos 1970, a delegacia já estava lá, mas tomava um espaço menor. Boa parte do imóvel era dedicado ao centro de tortura. Lá havia 6 celas (na sexta delas minha mãe passou boa parte de seus 45 dias de sequestro, assim como o meu pai e tantos outros). Eu e minha irmã éramos levados para a sala de tortura da atual delegacia para vermos nossos pais machucados. Ustra utilizava da nossa presença para ameaçar nossos pais. No mesmo espaço, Carlos Nicolau Danielli foi assassinado pela equipe do coronel Ustra.
Nesta recente visita, entrei com a Amelinha e chegamos, por meio de um estreito corredor, a uma pequena sala de aproximadamente 2 por 4 metros. À porta uma placa continha a inscrição “Arquivo”. Dentro, um monte daquelas pastas-caixa de papelão guardando velhos e amarelados papéis em estantes de metal (provavelmente boletins de ocorrência anteriores à informatização).
Arquivo morto. Amelinha então nos conta que ali ela testemunhou os últimos suspiros de Danielli. Já todo machucado, sem roupa, largado em um dos cantos. “Marechal”, um dos torturadores, a levou ao local provavelmente para ver o que lhe poderia acontecer. Depois de alguns dias, o “Capitão Ubirajara” (policial civil Aparecido Calandra) mostrou a ela a manchete do jornal diário que anunciava a morte de Danielli em tiroteio com a polícia.
Legítima defesa. Em uma diligência policial, o “terrorista” sacou uma arma e atirou contra os agentes de segurança. No revide, o mesmo veio a óbito. Mentira. E segue a história da violência de Estado. Da “guerra ao terror” à “guerra às drogas”, seguem os autos de resistência e de defesa da ordem.
Segundo diversos testemunhos daquele mesmo “arquivo morto” deve ter saído sem vida o líder estudantil Alexandre Vannucchi. Nas páginas do dia 23 de março de 1973, o jornal Folha de S. Paulo anunciou sua morte por atropelamento. Dois anos antes, Luiz Eduardo Merlino também teria o mesmo fim, provavelmente passando por aquela mesma sala. A versão dos jornais foi de suicídio.
Nos anos 2000, o coronel Ustra foi condenado por torturar a família Teles e pela morte do Merlino.
Hoje, mais de 50 anos da invenção macabra do Exército brasileiro, ao mesmo passo em que se escava a história daquele local, dando materialidade a pequenos objetos e fragmentos de eventos passados, se mantém parte importante daquele centro de torturas como uma delegacia de polícia.
O prédio principal não passa por qualquer trabalho forense e não consta como parte de um eventual lugar de memória. O país segue violando nosso direito à memória, à verdade e à justiça.
Por que não tirar dali a delegacia e criar um centro de trabalhos forenses sobre graves violações de direitos humanos, como as que se verificaram nestes meses de julho e agosto nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia? Por que não promover uma instituição aos moldes do sério trabalho de arqueologia forense ali realizado, coordenado pelas instituições universitárias, autônomas das polícias e do Estado?
Parece-me que uma das estruturas fundamentais de impedimento de uma democracia mais abrangente e efetiva é a violência de Estado. Ela impõe a diversos segmentos da população a precarização de seus territórios e seus corpos. É justamente essa violência que classifica e hierarquiza a vida e estabelece quais são descartáveis.
Se queremos evitar outra ditadura, um outro 8 de janeiro, a extrema desigualdade, temos de começar por abrir, entender e desfazer o “arquivo morto” de nossas histórias.
Nota
1 Sobre a cumplicidade do jornal Folha de S. Paulo com a Ditadura ver o Informe Público da pesquisa “A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a Ditadura“, desenvolvida junto ao Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo (CAAF/Unifesp).
O que resta da ditadura: a exceção brasileira
Bem lembrada na frase que serve de epígrafe ao livro, a importância do passado no processo histórico que determinará o porvir de uma nação é justamente o que torna fundamental esta obra. Organizada por Edson Teles e Vladimir Safatle, O que resta da ditadura reúne uma série de ensaios que esquadrinham o legado deixado pelo regime militar na estrutura jurídica, nas práticas políticas, na literatura, na violência institucionalizada e em outras esferas da vida social brasileira. O livro reúne textos de escritores e intelectuais como Maria Rita Kehl, Jaime Ginzburg, Paulo Arantes, Ricardo Lísias, Tales Ab’Sáber, Janaína de Almeida Teles e Jeanne Marie Gagnebin, que buscam analisar o que permanece de mais perverso da ditadura no país hoje.
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Edson Teles é doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), é professor de filosofia política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Pela Boitempo, organizou com Vladimir Safatle a coletânea de ensaios O que resta da ditadura: a exceção brasileira (2010), além de contar com um artigo na coletânea Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas (2012) e no livro de intervenção O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil (2018). Também assina um dos artigos do dossiê dedicado à Comissão da Verdade do n.19 da revista Margem Esquerda.
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