Novo Ensino Médio: embates em torno da consulta pública
No que se refere às finalidades e organização do ensino médio como etapa da educação básica será necessária uma ampla discussão nas comunidades escolares e acadêmicas para elaborar proposição que faça avançar o estabelecido na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, sem retroceder no direito à educação das classes populares, com pro-postas que intensificam as desigualdades educativas.
FOTO: ANA KEIL / EQUIPE DE COMUNICAÇÃO DO LEVANTE POPULAR DA JUVENTUDE
Por Ana Paula Corti e Márcia Aparecida Jacomini
O Ministério da Educação (MEC) anunciou, no dia 7 de agosto de 2023, os principais resultados da consulta pública para a reestruturação da Reforma do Ensino Médio de 2016, e apresentou algumas recomendações. A Portaria 399, de 8 de março de 2023, que instituiu a Consulta, foi uma vitória dos movimentos que vinham pressionando o governo federal pela revogação do chamado Novo Ensino Médio (NEM). Desde que o novo currículo passou a ser massificado e a ganhar corpo nas redes escolares, começaram a pipocar denúncias de todos os cantos do país.
Em Nota Técnica de 2022, a Rede Escola Pública e Universidade afirmou que o NEM estava piorando as desigualdades escolares em São Paulo, primeiro estado a implementar o modelo. O estudo revelou que os estudantes de níveis socioeconômicos mais baixos têm menos liberdade de escolha dos itinerários formativos por estudarem em escolas periféricas menores e com poucas opções. Cerca de 36% das escolas ofertavam apenas dois itinerários formativos, o mínimo exigido por lei. Em 37 unidades escolares foi ofertado apenas um itinerário formativo. Também foram apresentados dados sobre a falta de professores para as aulas dos itinerários, que estavam deixando os estudantes com aulas vagas em quase 30% do período letivo.
Problemas muito semelhantes foram encontrados no Rio Grande do Sul. Segundo Nota Técnica divulgada em 2023, as escolas com maior oferta de itinerários (lá chamados de trilhas) eram aquelas em que os estudantes tinham nível socioeconômico mais alto. A situação de desrespeito à lei chamava a atenção pois 156 escolas ofertavam apenas 1 itinerário formativo, o que também ocorria em 40% das escolas de ensino médio noturno, aumentando as desigualdades entre os períodos escolares (Saraiva, Chagas, Luce, 2023).
Os dois estudos concluem que a oferta dos itinerários é condicionada pelo tamanho das escolas e pela disponibilidade da força de trabalho docente, uma vez que o NEM não previu novos investimentos nas redes escolares, revelando que a prometida liberdade de escolha dos alunos é uma falácia.
Merece atenção também a redução na carga horária de Língua Portuguesa e de Matemática, consideradas centrais na legislação do Novo Ensino Médio. No 2º ano da rede estadual do Rio Grande do Sul, os estudantes que cursam a trilha de “Sustentabilidade e Qualidade de Vida” têm três aulas semanais de “Noções de legislação ambiental”, mesma carga horária de Língua Portuguesa e de Matemática e superior a todos os demais componentes da Formação Geral, que contam com apenas 1 aula semanal. No 3º ano em São Paulo, os estudantes têm duas aulas de Língua Portuguesa e de Matemática, contra cinco aulas no currículo anterior, sendo a mesma carga horária dedicada ao componente “Projeto de Vida”. A redução das aulas de disciplinas da formação geral foi acompanhada de um crescimento exponencial de novos componentes que invadiram o currículo promovendo enorme fragmentação.
Segundo matéria da Folha de São Paulo, os estados passaram a oferecer ao menos 1.526 disciplinas no Ensino Médio, de forma muito desigual entre si. Enquanto o Piauí oferecia sete disciplinas diferentes, o Distrito Federal implementou 601 novos componentes curriculares. O conhecimento escolar consolidado está sendo substituído por uma profusão de práticas e temas cujas bases epistemológicas são desconhecidas.
A situação caótica criada pela Reforma do Ensino Médio nos estados como consequência da desregulamentação do currículo foi levada ao conhecimento do governo federal nos diversos webinários, seminários e audiências públicas realizadas. Com base nas contribuições apresentadas, o MEC anunciou um conjunto de recomendações para a reestruturação da política nacional de Ensino Médio. Os principais pontos constam no quadro abaixo, que também apresenta as reações que se seguiram ao anúncio do MEC por parte de dois grupos posicionados de forma antagônica no debate sobre o ensino médio: o Todos pela Educação (TPE) e o Fórum Nacional de Educação (FNE).
RECOMENDAÇÕES MEC | Empresariado Todos pela Educação- TPE1 | Entidades educacionais Fórum Nacional de Educação-FNE2 |
1) Ampliação da carga horária da Formação Geral Básica (FGB) de 1.800 para 2.400 horas, com exceção de cursos técnicos com 800 e 1000 horas que poderiam ter mínimo de 2.200 horas. | Parcialmente favorável. Propõe a diminuição da FGB para 2.200 horas. Preocupa-se com possível revisão da BNCC pela utilização da nomenclatura FGB. | Favorável. Defende oferta de educação profissional em escolas técnicas próprias e não nas redes regulares de ensino. Destaca que a nomenclatura prevista no art. 26 da LDB é BNC (Base Nacional Comum) e não FGB. |
2) Definição dos componentes curriculares a serem oferecidos na FGB: espanhol (alternativamente), Arte, Educação Física, Literatura, História, Sociologia, Filosofia, Geografia, Química, Física, Biologia e Educação Digital. | Contrário. | Favorável. Defende a obrigatoriedade dos componentes curriculares, incluído o Espanhol e a Arte. |
3) Redução do número de itinerários formativos, de cinco para três, que passam a se chamar percursos de aprofundamento e integração de estudos: Linguagens, Matemática e Ciências da Natureza, Linguagens, Matemática e Ciências Humanas e Sociais e Formação Técnica e Profissional. | Contrário. Mantem a defesa dos itinerários formativos e sua definição pelos estados. Defende definição de carga horária mínima para os itinerários. | Favorável. |
4) Proibição do uso da Educação à Distância na Formação Geral Básica. | Favorável. | Favorável. |
5) Manutenção do formato do Enem – Exame Nacional do Ensino Médio para 2024, avaliando as disciplinas da FGB | Favorável. Sugere que o Enem 2024 seja alinhado à BNCC. | Favorável. |
6) Formular documento orientador sobre notório saber com ênfase na formação profissional. | Favorável. Considera importante a manutenção do notório saber para a expansão do ensino técnico. | Contrário. Defende a retirada do notório saber da legislação, pela desvalorização e risco à carreira docente. |
7) Forma legal das mudanças. | Por vias infralegais, mantendo a Lei 13.415/2017. | Revogação da Lei 13.415/2017. |
Logo após o anúncio das recomendações do MEC, a coalização empresarial Todos pela Educação (TPE) – que atuou fortemente em defesa da aprovação da Lei 13.415/2017, divulgou documento afirmando que: “[…] o Todos Pela Educação reforça sua defesa da nova organização curricular no Ensino Médio, trazida pela Lei n. 13.415/2017, que estabelece uma formação geral básica pautada na Base Nacional Comum Curricular e itinerários formativos que visam o aprofundamento dos conhecimentos e/ou preparação para o mundo do trabalho.” É notório que a organização manteve sua defesa da Reforma do Ensino Médio, mesmo diante das evidências catastróficas trazidas pelo modelo. Mas também se percebe um reposicionamento diante do que podemos considerar uma derrota parcial dos reformadores, caso se confirmem as recomendações do MEC, principalmente em relação ao retorno de 2400 horas para as disciplinas da base comum e a diminuição e regulação nacional dos itinerários formativos. Tais recomendações ferem o “coração” do NEM, que é a flexibilização, fragmentação e desregulamentação curricular.
Na outra ponta do espectro político temos o Fórum Nacional de Educação (FNE), que também reagiu às recomendações anunciadas pelo MEC para reestruturar o ensino médio. A entidade – que agrega entidades educacionais como Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), Campanha Nacional pelo Direito à Educação e Associação Nacional de pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED) (Brasil, 2023), é crítica à lei 13.415/2017 e defende sua revogação. Em seu documento avalia como positivo o aumento da Formação Geral Básica para 2.400 horas. mas alerta para o fato de que “A Proposta do MEC, apesar de sugerir a possibilidade de retomar uma FGB com os componentes sugeridos, não afirma que eles serão obrigatórios, o que mantém a instabilidade quanto à formação na etapa do Ensino Médio”.
A obrigatoriedade das disciplinas no currículo do ensino médio – como Biologia, Física, Sociologia, Filosofia entre outras – é um ponto central de oposição entre o TPE e o FNE, sendo o primeiro contrário e o segundo favorável à medida. Os itinerários formativos também estão no centro da divergência: o empresariado defende a manutenção tal como prevê a lei atual, permitindo que cada estado da federação continue definindo oferta própria.
As recomendações anunciadas pelo MEC, se implementadas de fato, podem ser consideradas uma quase revogação da reforma do Ensino Médio. Porém o documento não menciona a palavra revogação, que é a principal reivindicação do campo educacional.
Se o MEC ouvir as vozes das ruas, daqueles que estão nas escolas de educação básica, das associações estudantis, sindicais e acadêmicas terá que enfrentar os reformistas e conduzir mudanças na Lei 13.415/2017 a ser apreciada e votada nas câmaras legislativas, contrariando, assim, a proposta do Todos pela Educação de realizar adequações na referida Lei por meios infralegais. Seria um passo importante para frear a desregulamentação curricular do ensino médio, mas não resolveria importantes questões que esta etapa da educação básica enfrenta e que vão desde os problemas de infraestrutura (ausência de laboratórios e bibliotecas, acesso à internet ruim ou inexistente etc.), de material didático (equipamentos para aulas em laboratórios, livros etc.), à valorização da carreira e à qualificação de professores das diferentes disciplinas que compõem o currículo, o que exige do MEC mais investimentos e política nacional de formação de professores.
No que se refere às finalidades e organização do ensino médio como etapa da educação básica será necessária uma ampla discussão nas comunidades escolares e acadêmicas para elaborar proposição que faça avançar o estabelecido na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB/96), sem retroceder no direito à educação das classes populares, com propostas que intensificam as desigualdades educativas.
Notas
1 Principais grupos de empresários ligados ao Todos pela Educação: Indústria (Grupo Gerdau, Votorantim, Metal Leve AS, Grupo Camargo Correa, Suzano Holding AS, Irmãos Klabin & Cia, Grupo Orsa, Grupo Odebrecht, AmBe/InBev); Financeiro (Grupo Itaú/Unibanco, Bradesco, Santander, Citibank Brasil); Comércio e Serviços (Grupo Pão de Açúcar, Grupo Dpaschoal, Grupo Gaber, Ambev); Comunicação (Organizações Globo, Grupo Abril, Grupo RBS de Comunicação / TV Rede Brasil Sul, TVI, Rede Bahia Comunicação, Grupo Bandeirantes, Grupi Ypy, Publicidade e Marketing, Lew’Lara|Tewa Publicidade); Tecnologia e telecomunicações (Telefônica, Grupo Promon); Editorial Grupo Santillana/PRISA. Avalia- Assessoria Educacional); Educação (Grupo Positivo, Yázigi Intermexus) (Martins, 2016)
2 O FNE é constituído por muitos grupos da sociedade civil e do governo, sua composição na íntegra pode ser encontrada na Portaria 718/2023.
Referências
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PESQUISADORES/AS NEGROS/AS ET. AL. Carta Aberta pela revogação da reforma do Ensino Médio (Lei 13.415/2017). São Paulo, 08/06/2022.
BRASIL. Portaria n. 718, de 13 de abril de 2023. Brasília, Diário Oficial da União, publicado em 14/04/2023, edição 72, seção 2, página 20.
FORTUNA, D. Mesmo sem conhecer modelo maioria dos brasileiros aprova novo ensino médio. CBN, 2023.
FÓRUM NACIONAL DE EDUCAÇÃO. Parecer sobre a Proposta MEC para o Ensino Médio a partir do Sumário Executivo dos resultados preliminares da consulta pública para a avaliação e reestruturação da política nacional de Ensino Médio. Brasília, agosto de 2023.
MARTINS, E. M. Todos pela Educação? Como os empresários estão determinando a política educacional brasileira. Rio de Janeiro: Lamparina, 2016.
PALHARES, I. Escolas estaduais ofertam ao menos 1.526 disciplinas no novo ensino médio. Folha de São Paulo, São Paulo, 17 de março de 2023.
REDE ESCOLA PÚBLICA E UNIVERSIDADE. Novo Ensino Médio e indução de desigualdades escolares na rede estadual de São Paulo [Nota Técnica]. São Paulo: REPU, 02 jun. 2022.
SARAIVA, M.; CHAGAS, Â.; LUCE, M. B. O Novo Ensino Médio na rede estadual do RS: balanço de perdas e danos [Nota Técnica: relatório de pesquisa]. Porto Alegre: UFRGS, 26 jun. 2023.
TODOS PELA EDUCAÇÃO. Contribuições para o Novo Ensino Médio a partir das propostas do Ministério da Educação [Nota Técnica]. Agosto de 2023.
Educação contra a barbárie: por escolas democráticas e pela liberdade de ensinar, de Fernando Cássio (org.)
Fernando Cássio, organizador da obra e especialista em políticas públicas de educação, convidou mais de vinte autores para propor um debate franco e corajoso sobre as principais ameaças à educação pública, gratuita e para todas e todos: o discurso empresarial, focado em atender seus próprios interesses; a perseguição à atividade docente e à auto-organização dos estudantes; e o conservadorismo que ameaça o caráter laico, livre e científico do ambiente escolar.
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Ana Paula Corti é doutora em Educação pela USP, docente do IFSP, membro da Rede escola Pública e Universidade.
Márcia Aparecida Jacomini é doutora em Educação pela USP, docente do Departamento de Educação da Unifesp, pesquisadora da Rede Escola Pública e Universidade (REPU) e do Grupo Escola Pública e Democracia (GEPUD).
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