Cem anos de “História e consciência de classe”

Cem anos depois, quase ninguém mais quer lembrar que foi esse vigoroso livro que abriu caminhos para pensar a dominação indireta exercida pelo capital, à sombra do fetichismo. "História e consciência de classe" foi o grande abre alas para compreendermos as figuras do capitalismo e o processo de subjetivação executado sob sua lógica.

Por Douglas Rodrigues Barros

Os dramas que envolvem uma publicação e acompanham o autor constituem matéria de interesse para aqueles que são apegados, como eu, às grandes fofocas. Conclusão ainda mais ilustrada – com perdão do trocadilho – pelo fato que já nos primeiros raios da modernidade, após a derrota da primeira revolução campesina (Cf. BLOCH, 1973), com o mercantilismo funcionando, quem fosse encontrado com o Benefício de Cristo em mãos corria sério risco de ser supliciado.1

As aventuras dos livros são dignas de nota. Se debruçar, por exemplo, no esforço homérico de Diderot para levar a cabo o empreendimento da Enciclopédia, por quase trinta anos, mesmo com a Igreja no encalço e todo tipo de contratempo, ilustra esse mercado que envolve todo tipo de esforço teórico, de aventuras pecuniárias e de tramoias. Quando o mercado se assentou, nem por isso a publicação se tornaria algo tranquilo. Marx e Engels, ao lançarem o Manifesto, depararam-se com condições muito interessantes: o livro já era uma publicação internacionalizada em 1848, desnudando como o comércio de livro era o mais mundializado à época.

Todo esse preâmbulo me serve para dizer que poucos livros do século XX possuem uma verve cheia de tramas como História e consciência de classe, de György Lukács (Cf. LUKÁCS, 1974). Sem dúvida, do ponto de vista do marxismo, um dos livros mais vibrantes e imaginativos. Sabemos que sua condenação não se deu à toa. Afinal, como um livro luxemburguista seria bem recepcionado diante da perda de rumo dos princípios revolucionários de antanho? Como um livro que colocava em xeque o dogmatismo e a crença escolástica poderia sobreviver aos anos sombrios que seguiram após a morte de Lênin? Costumo dizer aos amigos que a tragédia desse livro foi também a da revolução.

Na altura da escrita, uma luta pela direção acabava de dividir o movimento operário na República de Weimar e, menos de um ano após seu lançamento, Lênin falecia abrindo caminho para uma luta fratricida que daria curso ao império da burocracia que enterraria literalmente todos os mais destacados revolucionários bolcheviques; nascia o deletério stalinismo. No que nos concerne, talvez, seja interessante refletir sobre os caminhos que levam até História e consciência de classe, pois o percurso de Lukács será decisivo para o século XX.

Em 1912, após ter aulas com Simmel em Berlim, Lukács chega em Heidelberg depois de um relativo sucesso obtido com o livro A Alma e as formas. No pequeno cenáculo em que é convidado a participar, e cujo líder era Max Weber, Lukács conhece Ernst Bloch que lhe dá uma dica: iniciar um esforço de sistematização estética que corroborasse com as intenções de Weber de torná-lo responsável por uma cátedra na universidade. Os ventos da história, entretanto, iriam contra a intenção de Weber que, ao que tudo indica, era uma figura muito gentil.

Com a deflagração da Primeira Guerra Mundial, a sistematização estética tem que aguardar. As preocupações de Lukács incidem sobre o significado da guerra e ele vai buscar respostas nos autores russos. Um novo estudo sobre Dostoiévski dará forma à Teoria do romance e orientará o olhar de Lukács para além das fronteiras europeias. Com a catástrofe da guerra e com a traição da social-democracia – que desde a Segunda Internacional, sob a tutela de Bernstein, cada vez mais fazia conciliações espúrias com os governos burgueses – aos poucos a preocupação estética do jovem se torna eminentemente ética.

Em 1918, Lukács chega a entregar o texto de habilitação para a docência, na universidade de Heidelberg, mas obtém parecer negativo de Heinrich Rickert. Assim diz um trecho do importante livro de Arlenice Almeida: o “parecer negativo… encerra uma fase na vida de Lukács. A recusa se faz acompanhar da adesão do autor ao Partido Comunista” (SILVA, 2021, p.325). Com a Revolução de Outubro, ocorrida no ano anterior, Lukács inicia uma aproximação importante com Béla Kun, que se tornará líder da revolução húngara, e se liga ao Comitê Central do partido. No curto período da comuna na Hungria, Lukács foi comissário do povo na Instrução Pública e comissário político do Exército Vermelho. É nesse momento que o livro passa a ser editado.

Seu interesse pela filosofia alemã, nesse período, guiava-se pelo frenesi político, que não se deu sem hesitação. Apesar de mais tarde entrar na burocracia e ser vitimado por ela, olhando para a trajetória de Lukács, é possível perceber que ele recalcou grandes discordâncias em nome da unidade partidária. Curioso é que Lukács, que em 1923 criticava grande parte dos alemães por sacrificarem a integridade intelectual no altar da solidariedade ao partido, anos depois seria obrigado a sacrificar a sua própria quando abandona seu livro e deixa Reboquismo e dialética na gaveta. Por ironia da história – conceito romântico que conhecia de perto – Lukács caiu em sua própria máxima.

A luta comunista começa por afastá-lo do messianismo revolucionário, impelindo-o a realizar intensos debates marcados de início por um suposto “sectarismo neófito” que não passará despercebido por Lênin. Em 1920, na revista teórica Kommunismus, o líder da Revolução de Outubro irá criticar de maneira ácida o artigo de Lukács no qual denunciava o parlamentarismo como forma histórica ultrapassada diante da democracia direta dos conselhos revolucionários. Ora, mas quem aí estava errado?

Seja como for, o que guiava as reflexões de Lukács, diante do quente terreno cheirando a pólvora, era a filosofia clássica alemã como arma de combate contra Kautsky e Plekhanov que insistiam na realpolitik contra a vocação transformadora do proletariado. Em 1919, quando escreve o célebre ensaio “O que é marxismo ortodoxo?” tinha em mente rebater esse fetiche pelos fatos econômicos que orientava a Segunda Internacional e fazia o gosto do marxismo vulgar. Não à toa, ele aderiu à “Ação de Março”, em 1921, também criticada por Lênin, que foi fragorosamente derrotada em 1923.

Enquanto isso, na Hungria, subia ao poder o protofascista Horthy, que iria reprimir violentamente o PC húngaro e colocar as atividades de Lukács na clandestinidade. Quando, em 1929, ele é detido na Áustria, um interessante retrato de seu pensamento é feito por ninguém menos que Thomas Mann. Na sua defesa, o autor escreve ao chanceler austríaco: “Eu o conheço pessoalmente. Em Viena, ele me expôs, durante uma hora, suas teorias. Durante todo o tempo em que falava, tinha razão. Mas, em seguida, não restava de tudo aquilo senão a impressão de uma abstração inquietante” (Cf. TERTULIAN, 2008, p.43).

Dizem que o personagem Leon Naphta do maravilhoso A montanha mágica era baseado em Lukács – fico me perguntando se Settembrini não seria Weber. Isso basta para tecer um retrato do contexto no qual a obra História e consciência de classe surge. É um livro escrito sob o influxo das revoluções e seus impasses, sobre a vontade de transformação revolucionária contra os limites dos fatos. No livro de 1923, o que Lukács levava em consideração era a busca por uma verdadeira realidade distante da autonomia das forças produtivas do capitalismo. Esse é o leitmotiv da obra.

Paradoxalmente paulínea, aquilo que constituía sua força foi também sua maior fraqueza: ao proletariado se dava uma missão histórica universal equivalente ao devir do Espírito hegeliano, o que incidia numa metafísica confiante no curso da história. Otimismo, diga-se de passagem, que irá impregnar o horizonte revolucionário pelo menos até os anos 1960 do século XX, quando os fracassos revolucionários sairão das sombras e, com eles, o trunfo de uma nova figura do espírito do capitalismo gerada nos porões ditatoriais do terceiro mundo: o neoliberalismo.

Hoje são mais conhecidas as fraquezas da obra – graças, sobretudo, a Žižek: a ideia do proletariado como sujeito da história através da identidade sujeito-objeto – do que seus méritos, que envolvem o olhar clínico sobre o conceito de fetichismo da mercadoria e a transformação da sociedade em culto ao capital. Se esquece que o livro surgiu dez anos antes de se descobrir os manuscritos parisienses de Marx que confirmavam as teses de Lukács e Korsch – outro injustiçado – acerca de sua filiação ao pensamento de Hegel.

Então, o livro condenado supostamente por ser idealista na verdade era responsável por uma das primeiras leituras robustas de Marx, que colocava no centro das preocupações o fetichismo da mercadoria como cerne da dominação do capital. Além de demarcar a complexidade da ordem do real e a “necessidade de uma adaequatio rei et intellectus como resultado de uma adaptação dinâmica ao devir da realidade” (TERTULIAN, 2008, p.24).

O capítulo “A reificação e a consciência do proletariado”, de pouco mais de cem páginas, é um dos mais importantes da história do marxismo e do pensamento social contemporâneo. Até onde se saiba, essa foi a primeira obra marxista a colocar no cerne de suas preocupações a forma mercadoria e a teoria do fetichismo de Marx. Não por acaso sua profundidade causou um tremendo impacto em pensadores que se tornariam centrais. Horkheimer, Adorno, Benjamin, Sohn-Rethel, Sartre, Merleau-Ponty, Guy Debord, Lucien Goldmann e mesmo Lacan, dentre vários outros, sofreriam influências decisivas ao pensar como o fetichismo da mercadoria detém centralidade na formação subjetiva sob o regime capitalista. 

Evidentemente não posso aqui tecer uma análise pormenorizada do alcance que a concepção lukacsiana de reificação, através do fetichismo da mercadoria, teve no século XX. Ofereço ao hipotético-leitor somente uma breve descrição introdutória convidando-o a se debruçar nessa obra cuja atualidade permanece vertiginosa.

Lukács percebeu de maneira seminal que a exposição conceitual da lógica da mercadoria apresentava o traço constitutivo da sociedade capitalista. Delimitada pela abstração do dinheiro – no qual sua forma busca se tornar autônoma em relação ao conteúdo – a mercadoria se torna o motor da relação social. Rapidamente, e com os olhos atentos em Hegel, Lukács percebeu que no conceito simples de mercadoria estão contidos, ou abstraídos, todos os desenvolvimentos subsequentes do capitalismo: “os valores de uso adquirem uma nova objetividade, uma nova coisidade que não tinham numa época de trocas meramente episódicas e que destrói sua coisidade própria e originária” (LUKÁCS, 1974, p.107). Ou seja, a mercadoria não é um simples produto (valor-de-uso da coisidade), mas algo que encarna a forma social da produção e reprodução.

O grande salto da sociedade capitalista foi o de conseguir criar uma equivalência entre mercadorias díspares e nela resumir todo o seu modo de sociabilização. O caráter contraditório da mercadoria como valor-de-uso e valor – este último como representação de uma quantidade de trabalho abstrato – desnuda a especificidade da organização capitalista frente às demais: “o movimento das mercadorias no mercado, a constituição do seu valor, numa palavra, o enquadramento real de todo o cálculo racional, não só se encontram sujeito a leis rigorosas, como pressupõem também uma rigorosa adequação de todo o devir” (LUKÁCS, 1974, p. 106). A vida social se torna refém da lógica de abstração de equivalentes em produtos díspares, que se tornam mercadorias e impulsionam a realização do capital através da valorização do valor absorvendo toda atividade social.

Em termos simplórios: a forma mercadoria só é possível pela equivalência do valor, este por sua vez possibilitado por meio do quantum de dispêndio de trabalho. E é, por isso, que a mercadoria representa uma coisa sobrenatural pois exprime a abstração de trabalhos que se equiparam através do valor assumido como algo “natural”. As primeiras lições d’O capital, como irá ilustrar Lukács, desnudam o fato que uma mercadoria exprime de modo sensível o valor de uma outra: o dinheiro. Ou seja, na mercadoria se encarnam qualidades suprassensíveis que lhe são alheias; na sua concretude ela é uma simples portadora da abstração necessária para a troca de equivalentes encontrados por meio do trabalho abstrato. Assim, a realização do valor em valor-de-troca será a dinâmica de toda a sociedade sob o ímpeto do capital. A mercadoria é já fetichizada porque o trabalho que possibilita o valor é abstraído quantitativamente possibilitando a realização da troca. Na mercadoria, portanto, há algo para além de sua concretude enquanto produto para uso; há uma abstração cheia de sutilezas metafísicas que encarna a relação de produção.

E, sendo assim, o valor de uma mercadoria assume de maneira “natural” e fantasmagórica a forma de uma outra mercadoria; o dinheiro – ao subsumir a universalidade abstrata do valor produzido enquanto trabalho abstrato dispendido. A realização efetiva do valor se torna, portanto, a única finalidade da produção social. Com um gesto impulsivo e solipsista, a forma valor conduz uma repetição – espiralada e não circular – que condiciona toda a vida social a realizá-lo enquanto valor-de-troca através do mercado que aos poucos – e hoje sabemos bem – se torna um deus.

Enquanto objetividade, o valor é aquilo que Marx chamava de uma geleia de trabalho humano indiferenciado estabelecendo um nível ontológico que diverge da existência concreta da mercadoria: um equivalente possível realizado na troca via mercado. Isso significa que o valor se autonomiza de seu conteúdo para se realizar enquanto processo abstrato de quantificação encarnada na mercadoria especial: o dinheiro. Aí o que menos importa é o uso, mas a potencialidade de realização como mercadoria através da troca.

O resultado é que enquanto o dinheiro se torna algo a ser cultuado, ao indivíduo resta a possibilidade de realização de si através da troca no mercado. A esse fenômeno Lukács dará o nome de reificação. Para ele a mecanização racional da abstração do valor penetra a alma do indivíduo. Lembro que Lukács pensou sobre tudo isso nos anos 1920, uma análise crítica, até então inédita, que hoje se tornou lugar comum para a minoria que segue de olho no capital.

Esse impulso autofágico de valorização do valor vai marcar a dinâmica da vida social de maneira global, levando a operacionalização do fetichismo da mercadoria de maneira totalitária. O fetichismo da mercadoria como vai insistir Marx “é uma relação social definida entre homens, que assume aos olhos deles a forma fantasiosa de uma relação entre coisas”. Trocando em miúdos: o mundo sensível é vertido numa representação que está para além da realidade, é fantasmagórica, e ao mesmo tempo se faz reconhecer como realidade. Se trata de uma naturalização da realização do valor em que o processo de abstração do capital domina todos os recônditos da vida social impregnando o modo de ação dos indivíduos sem que isso pareça ser algo social ou historicamente orientado.

É ele, o fetichismo, que impregna a forma determinante das interrelações através de um contrato entre pessoas livres iguais aos olhos da lei. O modelo é o da troca mercantil que condiciona as formas subjetivadas dos indivíduos sob o império da abstração organizando toda a vida social para a realização do valor. Como anteviu Lukács cem anos atrás, o imperativo para a realização da mercadoria é transformar o mundo num gigante mercado. Sob sua forma, o único sujeito é o capital enquanto os indivíduos tornam-se potenciais portadores de sua realização. Ela, a mercadoria, “imprime a sua estrutura a toda a consciência do homem: as propriedades e faculdades desta consciência não estão ligadas somente à unidade orgânica da pessoa, aparecem como coisas que o homem possui e exterioriza, tal como os diversos objetos do mundo exterior” (LUKÁCS, 1974, p.115). Noutras palavras, Lukács anteviu aí a capacidade que o capitalismo tinha, tem e terá enquanto existir, de condicionar a consciência do indivíduo à realização de sua valorização.  

Cem anos depois, quase ninguém mais quer lembrar que foi esse vigoroso livro que abriu caminhos para pensar a dominação indireta exercida pelo capital, à sombra do fetichismo. História e consciência de classe foi o grande abre alas para compreendermos as figuras do capitalismo e o processo de subjetivação executado sob sua lógica. Um livro, como costuma dizer Paulo Arantes, – e eu, particularmente, gosto bastante –, de outra era geológica. Suas esperanças andam na contramão de nosso desespero. O curioso é que naquilo que o próprio jovem Lukács desesperava reside sua atualidade.

Viva, História e consciência de classe!

Nota
1 Fiquei sabendo das aventuras do Benefício de Cristo por um romance fundamental e, infelizmente, pouco conhecido entre nós e que se chama Q, o caçador de hereges escrito por Luther Blisset.

Referências bibliográficas
BLOCH, Ernst. Thomas Müntzer: Teólogo da revolução. Rio de Janeiro: Biblioteca Tempo universitário, 1973.
LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe: estudos de dialética marxista. Porto: Publicações escorpião, 1974.
MANN, Thomas. A montanha mágica. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
SILVA, A. A. Estética da resistência: a autonomia da arte no jovem Lukács. São Paulo: Boitempo, 2021.
TERTULIAN, Nicolas. Georg Lukács: Etapas de seu pensamento estético. São Paulo: Editora Unesp, 2008.


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Douglas Rodrigues Barros é escritor, doutor em Ética e Filosofia política pela Unifesp, editor e conselheiro editorial do Lavra Palavra e autor dos livros Lugar de negro, lugar de branco? Esboço para uma crítica à metafísica racial (Hedra, 2019) e Racismo (Fibra/Brasil, 2020). Militante do movimento negro, foi coordenador político da Uneafro.

1 comentário em Cem anos de “História e consciência de classe”

  1. Gosto de seguir vocês porque fico aqui, trampando na construção do evento sobre feminismo e trabalho e lá vem a consciência de classe… e seria uma consciência também feminista?

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