Por que se adere ao bolsonarismo? Alguns apontamentos e notas iniciais

O bolsonarismo envolve investimento militante, ativismo político – ainda que atrelados a formas e metas regressivas e passivas. Milhões de pessoas na sociedade brasileira pautam-se, referenciam-se, espelham-se, identificam-se, projetam-se no bolsonarismo. Uma parte dessas milhões de pessoas, além disso, encontra-se em estado de mobilização e engajamento, atuando como militância bolsonarista.

Por Felipe Brito

Às 19 horas e cinquenta e seis minutos daquele domingo, dia 30 de outubro de 2022, o então candidato à Presidência da República Luís Inácio Lula da Silva foi considerado matematicamente eleito, após a apuração de 98,91% das urnas. Lula obteve, no total, 60.345.999 votos, o equivalente a um percentual de 50,99% dos votos válidos. Em meio a um cenário de devastação socioeconômica, Bolsonaro foi votado por 58.206.354 de eleitores (as) brasileiros (as) – número que correspondeu a 49,10% dos votos válidos. Em 19 de março de 2023, foi divulgada uma pesquisa na qual apenas 22% dos entrevistados avaliaram que Bolsonaro deveria ser investigado, julgado e perder os direitos políticos pelas invasões e quebradeiras no Palácio do Planalto, no Congresso Nacional e no STF do dia 8 de janeiro de 2023. Um percentual de 51% dos entrevistados considerou que o ex-presidente não teve responsabilidade perante os atos de 8 de janeiro de 2023 e 44% indicaram uma ameaça de instalação do comunismo no Brasil, “parcial” ou “total” (seja lá o que isso seja), diante da vitória eleitoral de Lula.1

As mobilizações para recepcionar Bolsonaro da viagem de 3 meses aos Estados Unidos podem ser consideradas como acanhadas. No dia 30 de junho de 2023, o Tribunal Superior Eleitoral julgou procedente a Ação de Investigação Judicial Eleitoral 0600814-85 e tornou Bolsonaro inelegível, condenando-o por “abuso do poder político e uso indevido dos meios de comunicação”. Uma avalanche eleitoral bolsonarista, pelo menos nos moldes que se sucederam em pleitos anteriores, tende a ser improvável no pleito de 2024. Entretanto, a incidência econômica, política e cultural do bolsonarismo na sociedade brasileira atual continua elevada e capilarizada. Identificamos, também, incidências que alcançam as dinâmicas afetivas de milhões de brasileiros e brasileiras, posto que o bolsonarismo também se configurou (e se configura) como um agregado psíquico/afetivo, além de político, econômico e cultural.

Logo, a tarefa de analisar o bolsonarismo preserva atualidade e relevância. Na condição de agregado político, econômico e cultural, psíquico/afetivo, é constituído por múltiplas dimensões e perspectivas que, de algum modo, se articulam entre si, tornando-o complexo. Apesar de muito tosco e grotesco ou, a despeito de ser muito tosco e grosseiro, a apreensão do bolsonarismo requer empenho de complexificação das análises. Além do mais, a investigação do bolsonarismo serve como uma alavanca estratégica para mapear e analisar a sociedade brasileira contemporânea – nos seus aspectos novos, mas também nas suas renitências históricas, e isso conduz, direta ou indiretamente, ao agenciamento de fatores “estruturais” e “conjunturais”, considerando, por um lado, as bases constitutivas da formação social brasileira e, por outro, a aplicação brasileira do neoliberalismo, o contexto do impeachment fraudulento de 2016, além de aspectos fundantes do capitalismo financeirizado em vigência e da crise econômica estrutural (que é também crise social). Ademais, a investigação do bolsonarismo leva à análise de expressões, manifestações subjetivas que circulam na sociedade brasileira atual.

Por que a sociedade brasileira comporta um agregado político, econômico, cultural e psíquico/afetivo como o bolsonarismo? Por que parte numerosa da sociedade brasileira está suscetível a se “identificar” com um agregado desse tipo, a se “referenciar”, a se “projetar” no mesmo? E por que, no âmbito dessas milhões de pessoas identificadas e referenciadas nesse agregado, um segmento (ainda que minoritário, porém numeroso) se encontra em estado de mobilização e engajamento, atuando como militância bolsonarista?

Posicionando o foco nas questões registradas acima, cabe propor alguns módulos de análise da balbúrdia golpista de 8 de janeiro de 2023, bem como dos seus preparativos e ensaios. Caracterizei como “balbúrdia golpista” porque, decerto, há elementos robustos que comprovam a intencionalidade e direcionamento golpistas do episódio. Os autoproclamados “patriotas” voltaram-se a uma ruptura golpista, e essa perspectiva precisa ser, devidamente, considerada. Mas, avalio que o cálculo golpista se manteve equidistante com uma descarga de destrutividade, altamente performática, cujos efeitos “estéticos”, “pirotécnicos” foram registrados em tempo real, por meio de selfies e vídeos nas redes sociais, sem nenhuma preocupação de esconder os rostos – o que gerou, inclusive, material probatório abundante para a abertura de inquéritos e o ajuizamento de ações penais. É possível considerar que, em algum sentido, para parte considerável dos “patriotas” do 8 de janeiro, a descarga de destrutividade se autorreferencializou, de modo que a meta golpista e a meta destrutiva performática se amalgamaram, misturaram, equipararam ou, pelo menos, se mantiveram muito próximas.

Sem subestimar os investimentos em uma ruptura golpista, isso permite captar e assinalar algo de “canhestro”, “estapafúrdio”, “patético” no 8 de janeiro e no próprio bolsonarismo. Entretanto, considerar esse viés de balbúrdia não significa menosprezar a corrosividade da carga sociocultural e afetiva do bolsonarismo; captar alguma coisa de “patético”, “fanfarrônico” no bolsonarismo não é captar algo de inofensivo, tolo. Considero esse debate relevante, dentre outros motivos, por oferecer uma via cabível para se analisar o viés “antissistêmico” do bolsonarismo e, com isso, propor caminhos de respostas às questões do porquê parte numerosa da sociedade brasileira se “identifica”, se “espelha”, se “projeta”, se “referencia” com um agregado político, econômico, cultural e afetivo desse tipo e por que um segmento, dentre essas milhões de pessoas, se dispõe, ainda, a atuar como ativistas, militantes?

Diante dos solavancos socioeconômicos cotidianos, de ambiências culturais e afetivas truculentas, do distanciamento/estranhamento perante os (rarefeitos) espaços de participação política, há lastro empírico para considerar que milhões de pessoas no Brasil foram e permanecem apartadas, desvinculadas, abstraídas de vivências públicas (que envolvem formas diversas de interação e elaboração coletivas). Esse abstencionismo não se refere apenas a aspectos subjetivos individualizados, mas adquire o estatuto de posição, estrutura, topos social e, enquanto tal, assenta-se em bases materiais, objetivas da sociedade. Como exemplo dessas bases materiais, é possível destacar a vinculação de três características prevalescentes no mundo do trabalho atual (agudizadas em países periféricos e semiperiféricos) – fragmentação, precarização e superacumulação de uma massa de pessoas desempregadas, subempregadas, uberizadas, “se virando” na informalidade, “desalentadas” etc.

É muito difícil que caiba alguma vivência pública no “corre” diário de um (a) trabalhador (a) uberizado (a), absorto (a) na tarefa de obtenção/geração imediatista de rendimentos pós ou não-salariais. Além do mais, a “viração” de um dia a dia sem salário, sem emprego formalizado, sem direitos trabalhistas, sem direitos previdenciários, sem respaldo sindical provocam ou, pelo menos, favorecem formas hiper-individualistas, “ensimesmadas” de agir, sentir e pensar, ligadas a modos de adestramentos subjetivos que visam a obtenção/geração imediatista de rendimentos pós ou não-salariais. Contrastando com uma imagem midiática idílica, isso também pode ser considerado o tal do “empreendedorismo”, por que não!? Fixada no “empreendedorismo”, nas exigências de respostas à “viração” desse tipo de dia a dia, um contingente dessa massa de trabalhadores (as) passa, inclusive, a tratar mobilização coletiva por direitos sociais, trabalhistas, previdenciários não apenas com desconfiança, mas, até mesmo, como algo “ameaçador”. Modos de adestramentos subjetivos como esses podem favorecer aproximações, adesões ou, mesmo, incorporações de esquemas restritivistas de se inserir em sociedade e de enxergar uma sociedade, como o bolsonarismo oferece. Nessa perspectiva, é possível localizar, por exemplo, o ativismo armamentista tanto da militância bolsonarista quanto da política governamental bolsonarista e a afinidade correlata de milhões de pessoas que não se converteram em militantes bolsonaristas, mas compuseram as fileiras eleitorais em favor do campo bolsonarista.

É importante considerar que a referida posição abstencionista adquire inumeráveis formas de individuações, com redes de causalidades e efeitos muito diversos, pois cada pessoa, enquanto ser social, é um universo – afirmação elaborada e (re)elaboarada, em variadas perspectivas, nos âmbitos da Psicanálise, Psicologia, Pedagogia, Sociologia, Filosofia etc. Registrado isso, é possível considerar que um modo muito marcante desse abstencionismo se expressar acontece por meio de um senso de avacalhação, esculhambação, achincalhamento diante do establishment institucional, econômico, político, midiático, cultural, impulsionado por afetações que alternam indiferenças, ascos/ojerizas, ódios destrutivos, ressentimentos. E esse senso de avacalhação pode se veicular como destrutividade, com ou sem cálculo político, e uma base afetiva de asco/ojeriza se desdobrar em ódio destrutivo e ressentimento. Do mesmo modo, um extravasamento de destrutividade, com ou sem militância política, pode se alternar com um senso de esculhambação ou, mesmo, conter um núcleo de avacalhação, e uma base afetiva de ódio destrutivo e ressentimento se desdobrar em ojeriza e/ou indiferença, formando vários circuitos de sentir-agir-pensar (não, necessariamente, nessa ordem) com aspectos e direcionamentos regressivos.

Sem incorrer em generalizações, o bolsonarismo pode ser lido como um dos efeitos, resultados, produtos de uma posição abstencionista diante das vivências públicas. Ao mesmo tempo, o bolsonarismo fornece contornos, coordenadas, referenciais, representações e, com isso, uma destinação a essa posição abstencionista, de modo que milhões de pessoas no país se identifiquem, se referenciem, se balizem, se projetem e encontrem uma via de destinação ao seu abstencionismo e, por conseguinte, um formato para estar, se inserir, atuar na sociedade. Voltando ao exemplo aludido de base material da posição abstencionista, a vinculação de fragmentação, precarização e superacumulação de uma massa de sobrantes no mercado de trabalho desmancha o fio que liga formalização do trabalho, assalariamento e integração social mediada por direitos – historicamente débil no âmbito da formação social brasileira. Na medida em que ocorre, de fato, uma acumulação massiva de trabalhadores (as) redundantes/sobrantes e, correlativamente, uma corrosão de formas de se integrar pessoas ao tecido social (e esse mesmo tecido se encontra profundamente corroído), a posição abstencionista pode se converter em um eixo mais “acessível”, mais “próximo” de “inserção” social.

 Com efeito, um dos pilares da política governamental bolsonarista foi um circuito de conturbação/destruição, que favoreceu um efeito de “espelhamento” e de implicações recíprocas entre a aludida posição absenteísta de milhões de pessoas no país e a governança abertamente devastadora sob a presidência de Bolsonaro. Ao longo de quatro anos de mandato, “dia sim, dia também”, o Chefe do Poder Executivo Federal e os seus tentáculos agrediram, pressionaram, tensionaram, achincalharam, avacalharam um arco muito amplo e variado de instituições do regime político-institucional erguido posteriormente à ditadura empresarial-militar de 1964-1985 no Brasil. Do CONSEA (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional) ao STF (Supremo Tribunal Federal), do IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Renováveis) à Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) ao Ministério da Cultura, da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) à FUNAI (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) etc.2

Junto a carga pesada de acuamento e esculhambação, o Poder Executivo Federal e os seus tentáculos perpetraram uma política diretamente destrutiva. Nessa perspectiva, quando o então Ministro bolsonarista do Meio Ambiente anunciou, em uma reunião oficial de governo, de maneira raivosa, o “esforço” de “ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas”, reiterou uma tecnologia de governança que, no âmbito das instituições diretamente voltadas ao meio ambiente (como o próprio Ministério, IBAMA, ICMBio etc.), acionou 224 medidas de desmantelamento do repertório de regulamentações, fiscalizações e proteções, em um intervalo de 12 meses, entre 2020 e 2021. Foram “76 reformas institucionais, 36 medidas de desestatização, 36 revisões de regras, 34 de flexibilização, 22 de desregulação e 20 revogaços”.3 Logo, nessa chave de análise, as devastações social, econômica, política, cultural, afetiva não devem ser tratadas somente como efeitos/consequências/resultados. O circuito de conturbação/destruição constituiu-se como dispositivo estruturante da política governamental bolsonarista, conforme registrado neste parágrafo e no anterior.

É relevante assinalar, também, que o bombardeio diário das chamadas “fake news” e a “política do cercadinho no Palácio do Planalto” compuseram essa tecnologia de governança bolsonarista e se prolongam como alicerces do ativismo bolsonarista. As formas debochadas e grosseiras de emitir declarações no tal “cercadinho” do Palácio do Planalto e nas lives, baseadas ou em mentiras deliberadas ou em “fundamentações” aleatórias e estapafúrdias, oficializaram um senso de esculhambação/avacalhação, alimentaram a corrente de conturbação institucional e espalharam um caldo favorável a atuações diretamente destrutivas, como as de 8 de janeiro de 2023, com ou sem investimento militante. O Presidente da República “chutava o balde”, “falava, mesmo, na lata”, e, enquanto era parlamentar, fazia o mesmo, sem “mimimi”.

A propósito, o bolsonarismo demonstra que calculismo político, desatino, traços paranoicos, estupidez não, necessariamente, são incompatíveis. Quando anunciou, por exemplo, a intenção de nomear um dos filhos como Embaixador nos EUA, Bolsonaro “justificou”: “fala inglês, espanhol e frita hambúrguer também”; “ele sempre quis morar lá”; “indicado para a embaixada tem que ser filho de alguém, por que não meu?” Essa suposta “naturalidade” comunicativa, na verdade, contém e veicula ostentação/esbanjamento autoritário de poder político, cujo alcance pode ser dimensionado não apenas pela meta de pautar o debate público, mas de pautar o debate público “chutando o balde”, renunciando, de maneira desdenhosa e provocativa, a necessidade de fundamentação pública. Logo, os desatinos das lives e do “cercadinho” funcionaram como mecanismos de avacalhação e constituíram mecanismos de exercício de poder político. Esse modus operandis encontra eco na posição abstencionista. Simbolicamente, a suposta “naturalidade” comunicativa, o “falar na lata, mesmo”, sem “mimimi”, o deboche escancarado, as “fundamentações” estapafúrdias e aleatórias foram recepcionadas e interpretadas por milhões de brasileiros e brasileiras como “sinais de autenticidade”.

O bombardeio de fake news compôs a tecnologia de governança bolsonarista, continua desempenhando função central no bolsonarismo e colaborando, significativamente, no prolongamento da posição social abstencionista. É comum que as abordagens do fenômeno se atenham, exclusiva ou prioritariamente, à questão da falsidade das informações disseminadas. Entretanto, constato que a inverossimilhança dos conteúdos alardeados (algo, sem dúvida, gravíssimo, com efeitos sociais muito deletérios) representa a “ponta do iceberg”. Sem nenhum intento de propor uma suposta “fórmula geral” explicativa que seria aplicável aos (às) milhões de alvos da indústria das fake news, avalio ser plausível considerar que as fake news atuam no reforço de determinadas (pré)disposições afetivas reativas e mecanismos psíquicos de defesa. Com isso, favorecem condições nas quais pessoas agarram enunciados “convenientes”, “adequados”, “compatíveis” ao propósito de repelir o objeto da “ameaça”, não obstante portarem conteúdos inverossímeis, falsos e, muitas vezes, flagrantemente absurdos. O que dizer, por exemplo, do emaranhado de fake news vinculado às fantasias de “mamadeira de piroca”, “Kit gay”, “banheiro unissex para crianças e pré-adolescentes nas escolas” etc!? Não se trata, exatamente, de uma operação intelectiva de “convencimento” ou, pelo menos, não se trata prioritariamente disso. Os processos de adesões a fake news correm por outras vias, e uma chave plausível para se explicar esses intrigantes processos de adesões reside na ostensividade, na impregnância, na contaminação, no bombardeio, cuja munição provém de materiais “ameaçadores”, quando não “transbordantes”, que reforçam determinadas (pré)disposições afetivas reativas e mecanismos psíquicos de defesa, atiçando tendências reativas/acuadas/constritivas de comportamentos que, todavia, podem se exteriorizar de modos violentos/truculentos. Esses reforços de determinadas (pré)disposições afetivas reativas e mecanismos psíquicos de defesa, esses atiçamentos de tendências reativas/acuadas/constritivas de comportamentos facilitam adesões a esquemas restritivistas de se inserir e tratar a sociedade, tal qual o bolsonarismo veicula (e com ativismo armamentista).

Com efeito, prosseguindo no empenho de propor um mosaico de análises, é importante considerar que a imensa abrangência da camada “antissistêmica” (que remete à camada “antipolítica”) na constituição e funcionamento do bolsonarismo não significou (e não significa) a abdicação do exercício da política nos marcos “pró-sistêmicos”, em consonância com os parâmetros convencionais do modus operandis hegemônico do regime democrático brasileiro instaurado após a ditadura empresarial-militar de 1964-1985. Achincalhou, avacalhou, conturbou, mas, também, colocou-se em posição pragmática de disputa, pautada em expertise política. A governança bolsonarista “jogou” pesado o “jogo” contido no establishment político brasileiro, compondo um roteiro especialmente direcionado ao objetivo de perpetuação no comando do Poder Executivo Federal, de expansão das bancadas parlamentares e de manutenção/expansão de governadores aliados. Antes, em troca de blindagem parlamentar, diante dos 158 pedidos de impeachment e dos corriqueiros e deliberados cometimentos de crimes de responsabilidade, participou de um tipo de composição com o “Centrão” que, sem exagero, capitaneado pelo então Presidente da Câmara dos Deputados Federais, capturou o orçamento público federal por meio do “orçamento secreto” – o que proporcionou um empoderamento de alcance inédito a esse segmento político, presente ao longo de toda a “Nova República, como engrenagem do chamado “presidencialismo de coalizão”.

Como exemplos da mencionada dimensão “pró-sistêmica”, vale elencar medidas que objetivaram incidir na base fiel de eleitores lulistas, visando alguma clivagem para levar a eleição presidencial ao segundo turno, em um contexto de polarização não apenas eleitoral, mas política, em geral. O governo Bolsonaro obteve a aprovação de uma Proposta de Emenda Constitucional voltada a fornecer ao Presidente da República a prerrogativa excepcional de, em pleno ano eleitoral, criar Auxílios ou majorar valores de Auxílios existentes. Por intermédio de uma tramitação aligeirada, repleta de manobras oriundas da própria presidência da Câmara e irrigada pelo “orçamento secreto”, a Câmara Federal aprovou a chamada PEC dos Auxílios, que legalizou o aumento do Auxílio Brasil de R$ 400,00 para R$ 600,00 e o pagamento de um Auxílio a caminhoneiros no valor de R$ 1000,00 – ambas as medidas com previsões orçamentárias até dezembro de 2022, ou seja, somente até logo após o pleito eleitoral. Ademais, é relevante também citar a instrumentalização deliberada da Caixa Econômica Federal, a partir de duas Medidas Provisórias: uma para a concessão de empréstimos consignados em cima do Auxílio Brasil e outra para um programa chamado SIM Digital. No primeiro caso, os (as) beneficiários (as) do Programa foram autorizados (e incentivados) a comprometerem até 40% da renda mensal com os empréstimos, cujos pagamentos ocorreriam por meio de parcelas descontadas nos auxílios que seriam pagos nos meses subsequentes. A liberação dos empréstimos iniciou apenas em 10 de outubro de 2022, isto é, oito dias depois do primeiro turno das eleições e, até o dia 1º de novembro de 2022 (dois dias após o segundo turno das eleições), foram concedidos R$ 7,595 bilhões para 2,9 milhões de beneficiários – montante que representou 99% do conjunto dos consignados do Auxílio Brasil no ano de 2022.4 No segundo caso, a instrumentalização da CEF foi dirigida à concessão de empréstimos entre R$ 300,00 e R$ 1 mil a pessoas (eleitores, dado o contexto eleitoral) classificadas (os) como “negativadas (os)”, com endividamento de até R$ 3 mil. Com as duas linhas de créditos, a CEF canalizou R$ 10,6 bilhões – R$ 7,6 bilhões para o Consignado do Auxílio Brasil e R$ 3 bilhões para o SIM Digital. A socialização das perdas oriundas dessa instrumentalização da CEF virá dos recursos do FGTS, em um montante estimado em R$ 1,8 bilhão, e de um adicionamento da Caixa Econômica Federal na casa dos R$ 600 milhões. Para a viabilização das medidas, a CEF precisou mobilizar (leia-se: dissipar) considerável quantidade de recursos. No último trimestre de 2022, havia R$ 70 bilhões a menos, tomando-se como parâmetro o espaço de 1 ano, no Índice de Liquidez de Curto Prazo, que diz respeito a uma espécie de piso de dinheiro disponível que o Banco Central exige das instituições bancárias.5

Concomitantemente, estratagemas de perpetuação do poder mais característicos da chave bolsonarista “antissistêmica” foram acionados. A sistemática campanha governamental de deslegitimação da urna eletrônica e, por extensão, do sistema eleitoral vigente no país conectou-se com as ações da Polícia Rodoviária Federal no Nordeste para obstruir, atrapalhar ou inibir o deslocamento de eleitores aos locais de votação. O aumento na “fiscalização” de ônibus na região habitada, preponderantemente, por eleitores fiéis ao lulismo, elevou-se em até nove vezes no contexto da disputa eleitoral de 2022, alcançando o triplo da média nacional registrada.6 Essa interferência direta da PRF na circulação de eleitores durante o pleito eleitoral baseou-se em um relatório feito pelo Setor de Inteligência do Ministério da Justiça, que indicou os locais de maior concentração de votos no Lula, e contou com a atuação direta do então Ministro da Justiça que, posteriormente, também iria se envolver na balbúrdia golpista de 8 de janeiro de 2023.

Analisando e articulando peças golpistas do 8 de janeiro (bem como dos seus preparativos e ensaios), cabe registrar: foi insuficientemente sublinhado o fato de que a bomba colocada em um caminhão-tanque repleto de querosene nos arredores do Aeroporto de Brasília, no dia 24 de dezembro de 2022, não explodiu, mas chegou a ser acionada, conforme indicaram as investigações dos peritos, e compunha um plano mais amplo que envolvia explosões de subestações de energia, arquitetado no tal acampamento “patriótico” no Quartel General do Exército em Brasília. Um dos militantes bolsonaristas que participou do plano e da ação escancarou o programa – espalhar o caos para provocar uma intervenção militar, dita “constitucional”, por meio do artigo 142 da CF. Tal intento também esteve contido na tentativa de invasão da sede da Polícia Federal em Brasília, no dia 12 de dezembro de 2022, acompanhada de depredação dos arredores e do ateamento de fogo em carros e ônibus. A propósito, já estava “rascunhada” uma “minuta” de golpe, encontrada na casa do então Ministro da Justiça do governo Bolsonaro, Anderson Torres, Secretário de Segurança do Distrito Federal na época do 8 de janeiro – uma minuta de decreto para a instauração de um “estado de defesa” na sede do Tribunal Superior Eleitoral, visando alterar o resultado das eleições presidenciais. Também foi encontrada uma “minuta” de golpe no celular do Tenente-coronel Mauro Cid, ex-assessor de ordem de Bolsonaro, e grande quantidade de documentação correlata com os mesmos propósitos.

Lato sensu, esses eventos, dentre vários outros (com maior ou menor visibilidade), compuseram um fio de agitação e conturbação que atravessou todo o governo Bolsonaro, com influxos provenientes do próprio governo, usando e abusando da estrutura do Estado. É notório que lideranças da militância bolsonarista circulavam pelos espaços oficiais do Poder Executivo Federal e do Poder Legislativo, revelando que áreas significativas do próprio governo e da base aliada impulsionavam e forneciam direcionamentos, quando não militavam diretamente. No que tange a aspectos organizativos da militância bolsonarista, vale observar esses influxos de direcionamentos e comandos abrigados nos próprios escaninhos oficiais do exercício do poder. Porém, com atenção análoga, verificar o quanto a rede bolsonarista adquiriu capilaridade e flexibilidade para, em certo sentido, “agir por conta própria”, bombeando a mobilização e agitação.

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Setores dominantes e amplamente majoritários da elite empresarial brasileira abdicam, ostensivamente, de qualquer esboço de (re)elaboração/atualização de um projeto de desenvolvimento econômico para o país, e reforçam o atrelamento aos ganhos rentistas e financeiro-especulativos, decorrentes da propriedade de ativos financeiros (como ações nas Bolsas de Valores e títulos da dívida pública), patentes, terra, imóveis etc. É relevante frisar que a primazia rentista e financeiro-especulativa envolve, na realidade, alguma forma de espoliação, expropriação, pilhagem de ativos públicos, fundo público, recursos naturais e socioculturais, e que a política governamental bolsonarista exerceu um intenso direcionamento pró-cíclico a essa primazia e ao supracitado circuito de espoliações, expropriações, pilhagens.

A captura da Petrobras à tarefa de maximização da renda de grandes empresas (sobretudo financeiras) que figuram como acionistas minoritários, por meio do pagamento recordista de dividendos, é um exemplo de orientações e práticas que conectaram a Faria Lima à política governamental bolsonarista, que percorreu as trilhas do “Ponte para o Futuro”, o programa econômico formulado no bojo das maquinações em torno do impeachment fraudulento de 2016. É possível verificar, na imensa maioria da elite empresarial brasileira, uma confluência de gramática econômica e um correlato apoio às linhas gerais de política econômica bolsonarista. Para ilustrar essa verificação, cabe registrar mais alguns exemplos: às vésperas da Petrobras ser convertida em maquinário recordista de pagamento de dividendos para grandes empresas e super-ricos (remuneração que no Brasil é isenta de Imposto de Renda da Pessoa Física), o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) forneceu largas contribuições, vendendo quase todas as ações que detinha da empresa.7 O mesmo banco estatal de “fomento” que foi submetido a uma desidratação, por meio de um bombeamento de recursos para o Tesouro Nacional que, na prática, foram transferidos, majoritariamente, às grandes empresas financeiras, via pagamento de juros da dívida pública. Essa desidratação do BNDES serviu, também, para turbinar o Mercado de Capitais (leia-se: Bolsa de Valores). Entre 2015 e 2016, a capitação via mercado de capitais foi de 120 bilhões de reais; de janeiro até setembro de 2022 foi de 407 bilhões de reais.8 O mesmo banco estatal de “fomento”, ainda, que promoveu uma inédita inversão de prioridades, de modo que o agronegócio obteve mais financiamento do que o setor industrial, em um contexto de ampliação da dependência do país perante a exportação de commodities ao mercado externo, perante um esvaziamento crônico da rubrica orçamentária investimento público, rebaixada a patamares da década de 40 do século XX.9

Para uma parte da elite empresarial e da direita neoliberal “convencional”, essa confluência de gramática econômica e esse correlato apoio às linhas gerais de política econômica não, necessariamente, se traduziram em uma adesão ao bolsonarismo. Não é propósito deste texto expor e analisar amiúde essa questão. Seguindo os passos aqui trilhados, cabe considerar que o governo Bolsonaro, além de exercer um ativo direcionamento pró-cíclico às formas rentistas de se acumular dinheiro e aos mecanismos subjacentes de espoliações, expropriações, pilhagens, atuou em modo diretamente militante a favor de segmentos e setores envolvidos com tais formas e mecanismos, como, por exemplo, os vinculados ao garimpo e à mineração em terras indígenas. Vale lembrar que, em outubro de 2021, o próprio Presidente da República, inclusive, participou de uma atividade oficial de governo em uma área de garimpo ilegal na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, com veiculação militante de conteúdo pró-garimpo. Parece que, diante disso, uma parte da elite empresarial e da direita neoliberal “convencional” buscou se esquivar desse banditismo extrativista considerado mais “barra pesada” e do próprio bolsonarismo (tratado, neste texto, como agregado político, econômico, cultural e psíquico/afetivo).

Para os propósitos do texto, essa consideração é pertinente para ajudar a sublinhar que, ao mesmo tempo, vários segmentos da elite empresarial brasileira extrapolaram a referida confluência de gramática econômica e o correlato apoio às linhas gerais de política econômica em direção a uma adesão ao bolsonarismo, formatada, muitas vezes, como ativismo militante. Nesses casos, o bolsonarismo forneceu (e ainda fornece) contornos, coordenadas, referenciais, representações e serviu (e ainda serve) como um tipo de destinação à posição estrutural de renúncia/desprezo à (re)elaboração de um projeto de desenvolvimento econômico para o país.

Logo, o bolsonarismo pode ser lido, dentre outras chaves cabíveis de leitura, como um resultado, efeito, produto de posições abstencionistas variadas, constituídas em diferentes setores da estrutura social brasileira contemporânea. Ao mesmo tempo, na condição de agregado político, econômico, cultural, psíquico/afetivo, o bolsonarismo fornece referenciais, parâmetros, representações, contornos, coordenadas, e, com isso, destinações a essas posições abstencionistas variadas. Na medida que o faz, põe à disposição formatos para se inserir, estar e atuar na sociedade brasileira contemporânea, que milhões de pessoas lançam mãos.

Na balbúrdia golpista de 8 de janeiro de 2023, foi possível verificar uma equidistância entre finalidade golpista e descarga de destrutividade (que, além de altamente performática, em muitos casos se autorreferencializou). Modalidades reativas, defensivas, acuadas, constritivas de comportamentos (suscetíveis de se manifestarem de formas truculentas/violentas) constituem uma dimensão relevante do bolsonarismo. Entretanto, além dessa base meramente reativa, o bolsonarismo envolve investimento militante, ativismo político – ainda que atrelados a formas e metas regressivas e passivas. Milhões de pessoas na sociedade brasileira pautam-se, referenciam-se, espelham-se, identificam-se, projetam-se no bolsonarismo. Uma parte dessas milhões de pessoas, além disso, encontra-se em estado de mobilização e engajamento, atuando como militância bolsonarista.

Não obstante o funcionamento da sociedade brasileira empurrado por altas dosagens de abstencionismos e automatismos, mas também por causa desse funcionamento, ainda há circulação social de demandas de mobilizações, investimentos, engajamentos políticos. Os conteúdos, formas e direcionamentos estão em disputas.


Notas
1 Pesquisa realizada pela Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica (IPEC).
2 Algumas dessas instituições até antecedem o regime político-institucional erguido posteriormente à ditadura empresarial-militar de 1964-1985, mas foram reelaboradas mediante a promulgação da Constituição Federal de 1988.
3 Gussen, Ana Flávia. Com Salles, governo assinou em um ano 721 medidas que impactam o meio ambiente. 2021.
4 Dados da Caixa mostram que Bolsonaro fez uso eleitoral de consignados do Auxílio Brasil. 2023.
5 Bolsonaro provocou calote bilionário na Caixa para tentar vencer as eleições, diz site. 2023.
6] Correia, Tatiane. PRF aumentou em nove vezes operações no Nordeste, diz jornal. 2022. Disponível em:
7] Konchinski, Vinicius. BNDES vende ações da Petrobras por R$ 22 bi e perde R$ 20 bi em dividendos. 2023.
8] Essas informações foram passadas pelo ex-Secretário do Tesouro Nacional dos governos Temer e Bolsonaro que pegou a “porta-giratória” e adentrou na cúpula do BTG Pactual, convertendo-se em sócio e Economista-chefe. Ver Roncaglia, André. Anatomia do Discurso FariaLimer. 2021.
9 Westin, Ricardo. BNDES muda o foco e financia mais agro do que indústria; economistas e senadores criticam. 2022.


Notas
1 Pesquisa realizada pela Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica (IPEC).
2 Algumas dessas instituições até antecedem o regime político-institucional erguido posteriormente à ditadura empresarial-militar de 1964-1985, mas foram reelaboradas mediante a promulgação da Constituição Federal de 1988.
3 Essas informações foram passadas pelo ex-Secretário do Tesouro Nacional dos governos Temer e Bolsonaro que pegou a “porta-giratória” e adentrou na cúpula do BTG Pactual, convertendo-se em sócio e Economista-chefe. Ver Roncaglia, André. Anatomia do Discurso FariaLimer. 2021.


Desinformação, militarismo, genocídio, pandemia e Judiciário são alguns dos temas tratados na obra Brasil sob escombros: desafios do governo Lula para reconstruir o país. Novo volume da coleção Tinta Vermelha – dedicada à intervenção sobre acontecimentos atuais e vendida a preço de custo –, a obra faz um balanço dos anos do governo Bolsonaro e do processo eleitoral e traz perspectivas sobre o terceiro governo do presidente Lula.


Juliana Paula Magalhães comenta os caminhos para a reconstrução do Brasil, especialmente diante dos desafios colocados ao governo Lula após os retrocessos do bolsonarismo.


Luiz Felipe Osório apresenta os desafios do governo Lula após a destruição provocada pelo bolsonarismo nos últimos anos.


Luis Felipe Miguel comenta a degradação na forma da disputa política brasileira desde a Lava Jato até a ascensão do bolsonarismo. O cientista político analisa as diversas dificuldades do debate político: a falta de um referencial de realidade compartilhado em razão das estratégias de desinformação, a ausência de espaços de negociação, a permanente agressividade com os adversários, a falta de responsabilização de agentes políticos golpistas e a polarização política assimétrica.


Felipe Labruna comenta a situação de abandono e genocídio dos povos originários durante o governo Bolsonaro.


Gabriela Calazans faz um balanço do governo Bolsonaro sobre o prisma LGBTQIA+, destacando como o campo dos ativismos resistiu e se diversificou mesmo diante de um contexto político de devastação.

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Felipe Brito é docente do curso de Serviço Social da UFF (Universidade Federal Fluminense) no Campus de Rio das Ostras. Pela Boitempo, organizou, com Pedro Rocha de Oliveira, o livro Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social (2013). Autor do artigo “Territórios Transversais” (em conjunto com Pedro Rocha de Oliveira), que integra o livro Cidades Rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil.

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