Pesquisando as narrativas sobre Luiz Carlos Prestes na historiografia e na memorialística brasileiras: o irracionalismo como reforço ao anticomunismo

No esforço por desconstruir qualquer imagem positiva de Prestes como liderança revolucionária e comunista, os seguidores conscientes ou inconscientes das teorias e dos métodos pós-modernos não só desprezam as evidências existentes sobre seus posicionamentos e suas ações políticas como elaboram aforismos, que insistentemente repetidos adquirem foros de verdades indiscutíveis.

FOTO: ROGÉRIO CARNEIRO/FOLHAPRESS

 Por Anita Leocadia Prestes

Na qualidade de historiadora, há algum tempo venho pesquisando as narrativas sobre Luiz Carlos Prestes encontradas na historiografia e na memorialística brasileiras. A adesão, com o “Manifesto de Maio” de 1930, do então celebrado “Cavaleiro da Esperança” à proposta da “revolução agrária e anti-imperialista”, adotada pelo Partido Comunista, provocou sua condenação generalizada na opinião pública nacional, abrindo caminho para as crescentes investidas de caráter anticomunista contra Prestes.

Algumas das principais lideranças do movimento tenentista, entre as quais destacavam-se ex-comandantes da Coluna Prestes, passaram não só a repudiar as posições de Prestes, mas também a silenciar, desfigurar e/ou falsificar sua atuação anterior durante a Marcha pelo Brasil. As classes dominantes do país jamais perdoariam a Prestes sua recusa a compactuar com os donos do poder – esta era a aposta dos setores oligárquicos de oposição em 1930 – e seu posicionamento junto e à frente dos trabalhadores, dos explorados e dos oprimidos, assim como sua consequente adesão ao Partido Comunista.

Desde então, seja na historiografia seja na memorialística, tornaram-se comuns as repetidas deturpações e falsificações das ideias defendidas por Prestes e de suas atitudes e posicionamentos políticos. Da mesma forma, quando era conveniente aos interesses dominantes, apelava-se para o silenciamento da vida e da obra de Luiz Carlos Prestes na História do Brasil do século XX. Por trás dessa estratégia consubstanciada na História Oficial – elaborada, segundo Antonio Gramsci, pelos “intelectuais orgânicos” das classes dominantes – encontramos a luta ideológica contra o “comunismo”, um fantasma produzido para justificar o combate às ideias e às atitudes contestadoras e/ou contrárias aos interesses dos donos do poder.

Principalmente a partir dos insucessos, durante o ano de 1968, dos movimentos generalizados de rebeldia em vários lugares do mundo, verificamos na intelectualidade acadêmica, nas palavras de Eric Hobsbawm, o “crescente ceticismo concernente ao projeto iluminista de racionalidade”,1 ou seja, um significativo avanço das correntes irracionalistas,2 frequentemente denominadas “pós-modernas”.

Ciro Flamarion Cardoso, com base em trabalhos de autoria do marxista inglês Alex Callinicos, ao examinar “a origem do avanço do paradigma pós-moderno, progressivamente visível ao longo do período 1968-1969”, destaca que o pós-modernismo seria o resultado da

trajetória pessoal de intelectuais que podem ser considerados da “geração de 1968” no decorrer da década de 1970: de portadores de esperanças revolucionárias desiludidas, muitos deles passaram ao abandono da crença na possibilidade de uma transformação social global; daí, ao apoio entusiástico a movimentos parcializados de luta ou reivindicação (feminismo, regionalismo, movimento gay, ecologismo, movimento negro etc.), associado a um “frentismo” mal-explicado; vários indo além, desembocaram por fim na social-democracia, no neoconservadorismo ou no neoliberalismo. Tal processo ocorreu tanto no Ocidente quanto no antigo bloco socialista, mesmo antes de 1989 […].3

Hobsbawm afirma que o chamado pós-modernismo “é profundamente relativista. Se não há nenhuma distinção clara entre o que é verdadeiro e o que sentimos ser verdadeiro, então minha própria construção da realidade é tão boa quanto a sua ou a de outrem, pois ‘o discurso é o produtor desse mundo, não o espelho’.”4 Em contraposição às concepções pós-modernas, segundo as quais todas as narrativas seriam válidas, Hobsbawm afirma como essencial que “os historiadores defendam o fundamento de sua disciplina: a supremacia da evidência”,5 acrescentando que “se a história é uma arte imaginativa, é uma arte que não inventa mas organiza objets trouvés.”6

Ainda segundo Hobsbawm, “insistir na supremacia da evidência e na importância central da distinção entre fato histórico verificável e ficção é apenas uma das maneiras de exercer a responsabilidade do historiador”, destacando que “durante muito tempo, a desconstrução de mitos políticos ou sociais disfarçados como história foi parte das obrigações profissionais do historiador, independente de suas simpatias” e “a crítica cética do anacronismo histórico provavelmente é hoje a principal maneira pela qual os historiadores podem demonstrar sua responsabilidade pública.”7

De acordo com Cardoso,

as ciências sociais, entre elas a história, não estão condenadas a escolher entre teorias deterministas da estrutura e teorias voluntaristas da consciência, sobretudo considerando tais posturas em suas modalidades  unilaterais e polares; nem a passar de uma ciência frequentemente mal conduzida – comprometida com teorias defeituosas de causação e da determinação e com uma análise estrutural unilateral – às evanescências da “desconstrução” e ao império exclusivo do relativismo e da microanálise.8

Ao concordarmos com Hobsbawm, quando afirma que “o problema para os historiadores profissionais é que seu objeto tem importantes funções sociais e políticas” e que “a diferença entre fato histórico e falsidade não é ideológica”, assim como “a verificabilidade histórica de afirmações políticas ou ideológicas pode ser de importância vital, se a historicidade for a base essencial de tais afirmações”,9 percebemos a importância dessas concepções para nossa pesquisa das narrativas sobre Luiz Carlos Prestes presentes na historiografia e na memorialística brasileiras.

A influência crescente das correntes pós-modernas entre historiadores, cientistas sociais e memorialistas tem contribuído, de maneira muitas vezes inconsciente, para que em seus escritos a vida e a obra de Prestes10 seja narrada de acordo com versões inventadas, mentirosas, falsificadas e distantes da realidade dos fatos, ou seja, das evidências, que teriam deixado de ter qualquer significado de acordo com as concepções irracionalistas.  

Autores descomprometidos com uma concepção científica das sociedades humanas, autores que condenam o materialismo histórico, considerando-o um determinismo inaceitável, resvalam seguidamente para o idealismo filosófico, revelando a ausência de qualquer preocupação com as evidências a que Hobsbawm dava tanta importância. Tais autores, ao avaliarem os trabalhos de pesquisadores partidários do esclarecimento dos fatos históricos11 através da utilização da maior quantidade possível de fontes primárias disponíveis, costumam privilegiar, no caso específico de Luiz Carlos Prestes, as narrativas que contribuem para a desqualificação do seu legado histórico e político, encarando as possíveis avaliações positivas desse personagem como resultado de supostas mitificações12 ou da sua “monumentalização”,13 categorias divulgadas por adeptos das concepções e das teorias pós-modernas como Raoul Girardet, Jorge Ferreira, Jaques Le Goff, para citar apenas alguns. Em contrapartida, de acordo com esse discurso, devem ser valorizados os escritos que possam ajudar a “desmistificar” personagens considerados indesejáveis, como seria o caso de Prestes, segundo os critérios pós-modernos.

Podemos registrar que, principalmente no período da vida legal do PCB e dos comunistas (1945-1947), no contexto da democratização da situação nacional e da vitória dos Aliados e em primeiro lugar da União Soviética sobre o nazifascismo, Prestes, recém-libertado após nove anos de prisão, detentor de grande prestígio popular, transformou-se num mito para amplos setores populares e, em especial, para muitos comunistas. As tradições brasileiras contribuíram para isso, dadas a permanente ausência no país de organização popular e a tendência a cultuar um “salvador” da pátria.  Mas havia uma base material, constituída pelas evidências da vida de Prestes, que favorecia essa “mitificação”. O que não pode ser negado, à luz da pesquisa e do conhecimento dos fatos, é a existência de um personagem como Prestes, detentor de traços específicos que justificaram perante uma parte considerável dos seus contemporâneos sua transformação mítica. Se o PCB errou, foi por não se ter se empenhado no combate a essa tendência, avessa aos princípios comunistas.

O descompromisso com qualquer concepção científica do funcionamento das sociedades humanas, assim como o descaso pelas evidências – que devem resultar de pesquisas realizadas nas fontes históricas conhecidas, e cada vez mais diversificadas e abundantes – têm levado numerosos autores pós-modernos a se afastarem do mundo real e a desconsiderarem as circunstâncias e o contexto em que se desenvolvem as ações de todo personagem histórico. No caso de Luiz Carlos Prestes, têm contribuído para o reforço de formas mais sofisticadas de anticomunismo. Se antes, as posições anticomunistas costumavam ser explícitas, através dos recursos cultivados pelos adeptos das correntes pós-modernas, tornam-se ambíguas e, por vezes, difíceis de serem percebidas por grande parte do público às quais se destinam.

No esforço por desconstruir qualquer imagem positiva de Prestes como liderança revolucionária e comunista, os seguidores conscientes ou inconscientes das teorias e dos métodos pós-modernos não só desprezam as evidências existentes sobre seus posicionamentos e suas ações políticas como elaboram aforismos, que insistentemente repetidos adquirem foros de verdades indiscutíveis. Entre muitas dessas sentenças,14 destaca-se a asserção segundo a qual Luiz Carlos Prestes foi um grande general (durante a Marcha da Coluna Prestes), mas teria sido um mau político. Quais seriam as evidências para tal afirmação? Qual seria o parâmetro de um bom político? Seria o modelo do político burguês, disposto a estabelecer qualquer tipo de compromisso para sobreviver no mundo regido pelos interesses burgueses? A questão nunca foi esclarecida em qualquer texto pós-moderno conhecido. Eis a maneira como, através da desqualificação da reconhecida liderança comunista de Prestes no Brasil, o anticomunismo encontra uma forma disfarçada e “moderna” de sair reforçado.

O reconhecimento do referido papel das correntes irracionalistas no reforço ao tradicional anticomunismo na sociedade brasileira constitui a comprovação incisiva de que, na atualidade, a principal forma da luta de classes é a luta ideológica ou, em outras palavras, o embate entre as concepções convenientes à defesa dos interesses da burguesia e as aspirações e os ideais dos combatentes por justiça social e democracia para os explorados e desprotegidos na sociedade capitalista. O conflito entre capital e trabalho não desapareceu; adquiriu novas formas. As concepções pós-modernas contribuem para reforçar o poder do capital.


Notas
1 HOBSBAWM, Eric. Não basta a história de identidade. In: HOBSBAWM, Eric. Sobre a História. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 286.
2 Sobre as diversas posturas irracionalistas, ver CARDOSO, Ciro Flamarion. Ensaios racionalistas. Rio de Janeiro: Campus, 1988.
3 CARDOSO, Ciro Flamarion. História e paradigmas rivais. In: CARDOSO, C. F.; VAINFAS, R. Domínios da História. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 17.
4 HOBSBAWM, E. Op. cit., p. 286; e citação de Stephen A. Tyler. The Unspeakable (Madison, 1987, p.171).
5 Idem, p. 286, grifos meus.
6 Ibidem, p. 287, grifos do autor.
7 Ibidem, p. 288.
8 CARDOSO, C.F. História e paradigmas rivais, op. cit., p. 23.
9 HOBSBAWM, E. Op. cit., p. 284, 287.
10 Neste texto não citarei esses autores, o que devo fazer em trabalhos futuros.
11 O destacado historiador marxista Pierre Vilar afirma que “é evidente que há representação, mas não se pode esquecer o fato”. Referindo-se aos mitos, escreve: “Não se pode negligenciar o fato de que um mito pode engendrar uma ação eficaz e efetiva. Portanto, não negligenciamos o mito, porém certifiquemo-nos de que ele seja inserido numa evolução histórica mais concreta, que deve ser reconstituída.” (D’ALESSIO, Marcia Mansor. Reflexões sobre o saber histórico. Entrevistas com Pierre Vilar, Michel Vovelle, Madeleine Rebérioux. São Paulo: Editora Unesp. 1998, p. 30 e 43).
12 GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. São Paulo: Companhia das Letras, 1987; FERREIRA, Jorge. Prisioneiros do mito: cultura e imaginário dos comunistas no Brasil (1930-1956). Niterói: EDUFF; Rio de Janeiro: Mauad, 2002.
13 LE GOFF, Jaques. História e memória. Campinas: Ed. Unicamp. 2003.
14 Irei abordar essas questões em textos futuros.


Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro, de Anita Leocadia Prestes


A participação de Luiz Carlos Prestes no movimento tenentista – especialmente na Marcha, entre 1924 e 1927, da Coluna que levou seu nome – e no levante antifascista contra Getúlio Vargas inscreveu o nome desse revolucionário singular na trajetória político-social do país. Baseada na metodologia marxista, a obra de Anita Prestes se diferencia das demais biografias já publicadas pela diversidade de documentos originais aos quais a autora teve acesso ao longo de mais de trinta anos de pesquisa. Para além do acervo pessoal, a historiadora realizou vasta investigação em arquivos nacionais e estrangeiros, podendo, assim, consultar fontes primárias fundamentais.

***
Anita Leocadia Benario Prestes  é doutora em História Social pela UFF, professora do Programa de Pós-graduação em História Comparada (UFRJ) e presidente do Instituto Luiz Carlos Prestes. Autora da ambiciosa biografia política Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro (Boitempo, 2015), do livro Olga Benario Prestes: uma comunista nos arquivos da Gestapo (Boitempo, 2017) e de Viver é tomar partido: memórias (Boitempo, 2019), em que narra sua extraordinária trajetória de vida, militância e pensamento. Assina também o artigo “Luiz Carlos Prestes e a luta pela democratização da vida nacional após a anistia de 1979” publicado no livro Ditadura: o que resta da transição? (Boitempo, 2014), organizado por Milton Pinheiro.

Deixe um comentário