O mito do “ódio branco” da classe trabalhadora

Os trabalhadores brancos pobres e os trabalhadores racializados convergem em seus anseios: querem manter sua autodeterminação, assegurar reconhecimento para suas tradições culturais, conquistar igualdade de tratamento perante os governos, garantir boas escolas para seus filhos, receber algum apoio para seus pequenos negócios em momentos de crise e ampliar os investimentos na infraestrutura de suas comunidades.

Cena do filme “Nomadland”

Por Ruy Braga

A ascensão de lideranças nacionalista autoritárias como Donald Trump, Viktor Orbán, Marine Le Pen, Matteo Salvini e Andrzej Duda, para não mencionar Jair Bolsonaro, em diferentes contextos políticos nacionais, parece ter revitalizado a empoeirada tese do autoritarismo operário popularizada por Seymour Martin Lipset no início dos anos 1960. Tanto na academia quanto na imprensa, nunca o mito do “ódio branco” da classe trabalhadora foi tão popular como suposto eixo estruturador da ofensiva da extrema-direita em escala global.

Tal ódio adviria da combinação entre o ressentimento relacionado aos avanços dos direitos de grupos sociais oprimidos, como negros, mulheres, latinos, LGBTQIA+, etc., e a desaparição dos bons empregos da era fordista que ajudavam a proteger os privilégios da branquitude e do patriarcado. Arlie Russell Hochschild sintetizou a lógica por trás desse ódio numa metáfora conhecida: nos Estados Unidos, os trabalhadores brancos se sentiriam como pessoas diligentes esperando pacientemente na fila para entrar no sonho americano. No entanto, a partir de certo momento, mulheres, negros, latinos e indivíduos LGBTQIA+ começaram a furar a fila, gerando um ressentimento que foi logo explorado por políticos populistas.

Algumas análises buscaram problematizar esse viés interpretativo observando, à exemplo de Paolo Gerbaudo, que aos sucessos da extrema-direita trumpista em atrair os trabalhadores brancos, a esquerda socialdemocrata estaria conseguindo responder por meio de uma aproximação igualmente bem-sucedida do precariado feminino e racializado do setor de serviços. À esquerda socialista caberia elaborar um projeto hegemônico capaz de aproximar a classe operária fabril e rural do precariado dos serviços a fim de assegurar uma “nova coligação social” capaz de recolocar a democracia liberal nos trilhos.

Apesar das diferenças, Hochschild e Gerbaudo concordam em um ponto: ao menos eleitoralmente, a classe trabalhadora “branca” teria sido seduzida pelo “populismo direitista” que culpa os “outros”, isto é, os imigrantes, os trabalhadores racializados e os grupos sociais oprimidos, pelos efeitos deletérios da crise da globalização neoliberal iniciada em 2008. A solução preconizada pelos líderes autoritários seria o retorno ao passado fordista quando os empregos eram bons e a ameaça da globalização econômica inexistia. Em suma, uma saída reacionária supostamente capaz de proteger a fração nacional, branca, adulta e masculina, da instabilidade ocupacional decorrente da mercantilização do trabalho.   

Usualmente, essas análises apreendem os grupos formados por trabalhadores brancos como unidades ocupacionalmente industriais e politicamente nostálgicas do passado fordista. Isso serve também para caracterizar boa parte da literatura que tem se empenhado em interpretar o Brexit e a aproximação de antigas regiões operárias localizadas na Alemanha, na França e na Itália da extrema-direita nacionalista.

No entanto, quando observamos mais de perto esses trabalhadores, percebemos que a narrativa do ódio branco é pouco convincente. Em primeiro lugar, vale observar que parte significativa desses trabalhadores já são parte do precariado do setor de serviços. As trabalhadoras femininas, por exemplo, concentram-se em atividades de cuidados, limpeza, alimentação e hospedagem, enquanto os trabalhadores masculinos dedicam-se à zeladoria predial, à renovação de telhados e ao transporte de cargas.

Mesmo após o ciclo de desindustrialização que castigou inúmeras comunidades de trabalhadores brancos nos Estados Unidos, ainda é possível encontrar operários engajados em fábricas, porém, sob condições salariais bastante inferiores e submetidos a altas taxas de rotatividade resultantes da difusão da estratégia de terceirização empresarial nas fábricas. Ou seja, esses grupos operários já foram absorvidos pelo precariado, não havendo nada em termos ocupacionais que os diferencie significativamente dos trabalhadores racializados que trabalham, por exemplo, nos armazéns da Amazon. Finalmente, quando miramos as comunidades onde vivem os trabalhadores brancos é fácil perceber que a distinção entre operários industriais e precariado do setor de serviços simplesmente não faz sentido, pois os dois grupos vivem nas mesmas famílias.

Assim, restaria à narrativa do “ódio branco” a nostalgia dos bons e velhos tempos. Trata-se de um aspecto central da explicação da suposta natureza reacionária desses trabalhadores. Aqui é importante compreender que mesmo no auge da era fordista a sindicalização no setor privado da economia estadunidense nunca ultrapassou os 33% da força de trabalho. Historicamente, a maior parte da classe trabalhadora do setor privado jamais conheceu a proteção sindical.

Além disso, considerando que a maioria desses trabalhadores vive ainda hoje em pequenas cidades rurais com menos de 25 mil habitantes onde os “bons empregos” sempre foram mais uma promessa do que uma realidade, percebemos que o apelo aos bons tempos fordistas não passa de um ardil para justificar o nacionalismo autoritário, com pouca ressonância na memória dos operários.

Na verdade, a nostalgia verificada entre eles remete ao colapso de seu modo de vida rural, isto é, aos laços de intimidade e de cumplicidade outrora existentes em suas comunidades rurais e que asseguravam uma reprodução social estável. As causas desse declínio são múltiplas, mas se concentram, principalmente, em quatro fatores: a epidemia de substâncias ilícitas que atingiu as comunidades rurais desde o início dos anos 2000, os efeitos econômicos da crise de 2008, sobretudo, em termos do fechamento dos pequenos negócios, a terceirização empresarial e a pandemia do novo coronavírus.

Na realidade, a nostalgia advém da impossibilidade de exercer aquilo que essas comunidades tradicionalmente valorizam, isto é, o sentido de autodeterminação assegurado pelo sistema de solidariedades práticas que garantia sua subsistência. No lugar da solidariedade, esses trabalhadores experimentam a alienação. Não por acaso, o comparecimento às urnas nas pequenas comunidades de trabalhadores brancos é significativamente menor que as médias nacional e dos maiores centros urbanos do país.

Finalmente, o “ódio branco” é uma narrativa assentada na exclusão violenta de um “outro” racializado. Para tanto, os trabalhadores brancos devem se sentir ameaçados pela competição com os trabalhadores racializados. De fato, a composição racial da América rural tem se alterado ao longo dos anos. Porém, em um ritmo muito lento. Em muitos casos, os trabalhadores latinos são valorizados pelos fazendeiros por aceitarem empregos que os brancos recusam, como limpar o confinamento do gado, por exemplo. Os negros são raros em áreas rurais, preferindo ficar nas regiões metropolitanas.

Em suma, se é possível identificar atitudes individuais preconceituosas entre os trabalhadores brancos, não há uma base social realmente sólida capaz de transformar o racismo em um fator politicamente mobilizador. Enganam-se aqueles que imaginam que promessas de recuperação de empregos industrias à base da construção de muros contra imigrantes será capaz de assegurar o apoio eleitoral para posições extremistas de direita nessas comunidades.

Na verdade, os trabalhadores brancos pobres e os trabalhadores racializados convergem em seus anseios: querem manter sua autodeterminação, assegurar reconhecimento para suas tradições culturais, conquistar igualdade de tratamento perante os governos, garantir boas escolas para seus filhos, receber algum apoio para seus pequenos negócios em momentos de crise e ampliar os investimentos na infraestrutura de suas comunidades. Eles desejam prosperar nas cidades onde nasceram, sem precisar se transformar em trabalhadores nômades, buscando empregos em lugares cada dia mais distantes. Não são eles os responsáveis pelo fortalecimento de posições extremistas de direita. Porém, sem eles, não há como superar a crise da democracia liberal.

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Como compreender o comportamento político dos trabalhadores racializados nos Estados Unidos? E dos trabalhadores brancos que vivem em pequenas cidades rurais? A eleição de Donald Trump, em 2016, pode ser interpretada apenas como resultado de uma classe trabalhadora branca ressentida e empobrecida? A angústia do precariado, nova obra do sociólogo Ruy Braga, é fruto de uma pesquisa de campo em pequenas cidades rurais nos Montes Apalaches, região que concentra historicamente a pobreza branca nos Estados Unidos. O estudo coloca à prova a hipótese da eleição de Trump partindo de uma problematização teórica inspirada nos marxismos negro e latino-americano.

Durante sua pesquisa, em vez de comunidades mobilizadas pelo ódio aos imigrantes e aos negros, o autor encontrou grupos de trabalhadores vivendo em constante agonia, em profunda crise sociorreprodutiva, o que os aproximou das condições de subsistência das comunidades negras. Essa confluência indesejada ajudou a criar as condições sociais necessárias para a eclosão de protestos de trabalhadores brancos… Em favor das vidas negras! O livro se dedica a interpretar essa anomalia sociológica por meio da análise do longo processo de reconstrução das identidades coletivas dos trabalhadores precários americanos, desde a crise do fordismo até o advento da pandemia do novo coronavírus.

A angústia do precariado é o último volume de uma trilogia consagrada à formação do precariado global, ou seja, aquele vasto contingente de trabalhadores em situação de insegurança e sub-remunerados. O primeiro trabalho da série foi publicado em 2012, com o título A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista, seguido por A rebeldia do precariado: trabalho e neoliberalismo no Sul global , em 2017. 

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Ruy Braga é professor titular do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP). Pela Boitempo, publicou A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista (2012) e A rebeldia do precariado: trabalho e neoliberalismo no Sul global (2017).

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