Gabriela Fero, pintora crítica

A arte de Gabriela Fero, ao se posicionar no centro da contradição das lutas do tempo presente, não apenas não sucumbe a fragilidades típicas do limitado horizonte artístico e cultural da atualidade quanto, ainda, supera as vicissitudes de uma crítica que tradicionalmente não soube lograr um avanço decisivo na disputa ideológica.

ARTE: GABRIELA FERO

Por Alysson Leandro Mascaro

Se a arte política reflete o tempo histórico, em algumas circunstâncias chega mesmo a condensá-lo; no entanto, em épocas que não querem ser condensadas, pensadas ou mudadas radicalmente, como as do capitalismo do início do século XXI, uma arte plena e efetivamente crítica, que capture e exponha as contradições do tempo, é rara e excepcional. Contrastando com o pano de fundo da atualidade, a pintura de Gabriela Fero tem representado um dos mais altos momentos de originalidade da arte política do século XXI. Numa conjunção rara entre alta qualidade de fatura técnica e sofisticada leitura filosófica da política, Fero se libertou das fraquezas e das armadilhas da arte contemporânea e, ao mesmo tempo, superou os tradicionais impasses históricos da arte de esquerda: é a artista mais expressiva do novo marxismo.

A excepcionalidade de uma plena arte crítica, cujo potencial é explosivo, se deve à raridade da articulação entre artista e luta. Via de regra, a arte é construída de modo individualista, como obra de gênio ou voltada diretamente ao mercado consumidor, alheada de uma perspectiva ampla de luta; de outro lado, a arte política guarda os limites da própria política – num arco histórico que foi do realismo socialista até chegar à redução contemporânea às lutas liberais por representação. O artista mal politizado, de leituras padronizadas e de esquemas críticos frágeis – conscientizador pela mera revelação do sofrimento ou pelo despertar da compaixão ou, ainda, ufanista pela exaltação da força dos lutadores –, foi o padrão do século XX. O artista despolitizado, ou politizado pelo modo liberal de esquerda nos tempos neoliberais, é o padrão do tempo de hoje. Somente se se escapar de tais armadilhas é possível alcançar patamares de vanguarda na arte.

Apenas a pergunta a respeito da pertinência da arte crítica atualmente já é a prova da sucumbência das lutas contemporâneas ao campo deglutível do liberalismo. À direita, a arte liberal diretamente ligada aos mercados; à esquerda, a arte que critica para inserir e representar, mas isso dentro da própria reprodução capitalista, sem contestar nem explodir seus marcos. Em face do arco que vai da submissão do ímpeto artístico ao mercado das artes à luta por representação no sistema, mas não contra o sistema, Gabriela Fero avançou para uma posição ímpar: sua arte, dos fragmentos da subjetividade no capitalismo, trata tanto das subjetividades quanto do capitalismo.

A artista, sujeito crítico de seu tempo

GABRIELA FERO

Embora partindo de um patamar comum a muitos artistas de grande inserção do início do século XXI – sua formação na Escola do Parque Lage a situaria, a princípio, num espaço tipificado de ethos artístico contemporâneo –, Gabriela Fero opera um tour de force na ambiência de que provém: não é uma artista de esquerda liberal, é a pintora do marxismo, que alcança o capitalismo como seu objeto e problema central. Mas, ao mesmo tempo, descola-se daquelas que tradicionalmente se apresentaram como artes plásticas marxistas no século XX, engajadas num nível de apelo humanista que redundou numa espécie de reconciliação com o mundo mediante soluções distributivas, desenvolvimentistas ou de regozijo com a própria realidade dada – mais do capitalismo, enfim.

A posição crítica radical de Gabriela Fero parte de uma conjunção peculiar de trajetória pessoal, formação artística de ponta e interpelação política. Paulista de nascimento e fluminense de criação, com decisiva vivência também na Irlanda, Fero teve uma peculiar e destacada passagem ainda como pilota de kart. No plano artístico, advinda de uma família já com inclinação à pintura – mãe pintora e pai aficionado por automobilismo e que, simbolicamente, pintava também capacetes de corrida –, formou-se no Rio de Janeiro no contexto de uma geração de artistas plásticos de destaque nas últimas décadas e que acabaram por ser seus professores. Vivendo na região costeira fluminense, com familiares diretamente ligados às profissões petrolíferas do pré-sal na Bacia de Campos, acabou por diretamente se sensibilizar de modo crítico com as contradições políticas da economia do petróleo e seus impactos sociais e ambientais.

Junto com sua trajetória de artista, Fero articula também uma especial leitura teórica. Sua posição crítica – pessoal e artística – se anela com uma formação marxista de ponta, tanto na teoria política quanto no âmbito filosófico, de que é exemplo sua interface direta com obras e pensamentos incontornáveis como a do teórico da arte marxista Nicos Hadjinicolaou, de quem é uma das tradutoras para o português. Há vários anos também participando de meu grupo de pesquisa na USP – sendo uma pupila querida com a qual por muitas vezes refleti a respeito da arte e da filosofia –, Fero dialoga ainda com as obras mais avançadas da crítica marxista das últimas décadas no âmbito da ideologia e da arte, ocupando-se também da tradução de alguns textos fundamentais na área. Envolvendo-se diretamente no campo teórico que designo por “novo marxismo”, Fero é uma rara artista e pensadora da arte que alcançou um saber filosófico diretamente radical na crítica ao capitalismo.

A arte política no século XXI

GABRIELA FERO

O século XXI representa, na arte, um diapasão distinto no seio das mesmas contradições que afloraram no século XX. No fundamental, as formas da arte e da política são as mesmas – derivadas ou conformadas que são pelas determinações do capitalismo. Mas, em termos médios dentro do próprio modo de produção, o pós-fordismo do quarto final do século XX e do início do século XXI tem regime de acumulação e modo de regulação específicos em face dos momentos que lhe foram anteriores, como aqueles do fordismo dos três quartos iniciais do século XX. Também a arte se mantém, no fundamental, estruturada em determinações, contradições, potências e limites gerais advindos da sociabilidade pela forma mercadoria, as mesmas que perpassaram o século XX e chegam até hoje. Contudo, no plano de termos médios, a arte desdobra alguns horizontes e ideologias específicos nos atuais tempos do pós-fordismo.

No que tange aos termos gerais da determinação, a arte no capitalismo se confronta com o imperativo de superação do sistema a partir da sensibilização dos sujeitos que são constituídos e interpelados ideologicamente pelo capital. Realismo socialista e vanguarda foram e ainda são respostas opostas que partem da mesma constatação a respeito de um fato incontornável: o sujeito que pode fazer a revolução não é revolucionário. Daí, ou se fala sua linguagem para conquistá-lo (realismo socialista) ou se rompe com seus horizontes para incomodá-lo e interpelá-lo para além (vanguarda). Uma terceira solução ao problema, que é a de aceitar o sujeito não-revolucionário sem o envolver nem o confrontar, é própria da arte não-política, aquela que diretamente se assume como de mercado: produzir o que o consumidor imediatamente deseja. As três posições políticas da arte – duas de intervenção e uma de capitulação – continuam as mesmas pelos séculos de capitalismo até hoje.

No que se refere à sua produção e sua circulação nos variados termos médios dentro do mesmo modo de produção, a arte tem específicas estratégias que acabam sempre por ser maneiras de inserir, representar ou reformar o quadro da exploração, das dominações e das opressões. No século XX, a arte política era a de exaltação da classe trabalhadora. No século XXI, é a de representação de identidades, grupos e movimentos. Em ambas, as estratégias passaram por inclusão e, portanto, reforma: o louvor do trabalho e da força do trabalhador no fordismo; o “empowerment” no pós-fordismo. As estratégias da arte política variam os sujeitos conforme os termos médios da reprodução do capitalismo, mas seus dispositivos se mantêm: sensibilização, humanização, inversão das hierarquias, exaltação dos explorados, dominados ou oprimidos. Se assim se dá, a arte política acaba por ser um reinvestimento de reconciliação. O sistema se reabilitará. No fordismo, com o gozo da classe trabalhadora, que então universalizará seus valores de classe explorada; no pós-fordismo, com as identidades dominadas que então serão inseridas no sistema.

A arte política de reforma social é, tipicamente, a arte de inserção. O realismo socialista foi sua estratégia fordista, em tempos de administração estatal da mercadoria; o “realismo capitalista” e o “realismo da identidade” são suas estratégias pós-fordistas, em tempos neoliberais e de individualismo. No caso do realismo socialista, a arte para o povo sofreu os limites das próprias experiências ditas de socialismo real ou dos partidos comunistas oficiais. Ao cabo, administraram sociabilidades de capitalismo de Estado e de nacional-desenvolvimentismo; o realismo socialista foi, na verdade, o nacional-popular reinserido como desenvolvimento das forças produtivas sob mesmas relações de produção. No caso dos tempos atuais, pós-fordistas, o realismo da identidade não rompe com o capitalismo; antes o naturaliza, buscando melhorá-lo com a representatividade. Um dito realismo capitalista, por sua vez, é o ponto mais alto de uma crítica que acaba por também sucumbir na parcialidade: a reação contra o capital ou a recusa da burguesia, neste caso, é uma forma estética de manutenção do mesmo porque nada distinto haverá. Denúncias da crise ecológica, da exasperação psíquica dos sujeitos, da imoralidade da economia, da política e da guerra sem a investigação das específicas formas que as constituem e as reproduzem são uma espécie de estética da negatividade pela manutenção da positividade que se reputa não conseguir – não poder – ser outra. Para esta franja da arte política, o fim do mundo é imagético ou ilustrável, mas não o fim do capitalismo. Duas inserções – os trabalhadores no poder; os sujeitos na ordem – e uma recusa sem horizonte superador: assim são as três articulações possíveis da arte parcialmente crítica.

Uma arte estruturalmente crítica é aquela que não se limita aos modelos da reforma do capitalismo. O humanismo do apelo à compaixão pelos sofredores e vítimas não é seu caminho, porque fácil, moralista e inconclusivo. Os sujeitos são ao mesmo tempo produtores e produtos da reprodução da exploração e das dominações e opressões. Não se trata de proclamar a mirada longínqua pela qual classes e grupos e indivíduos se contrastem olimpicamente – exploradores e explorados, dominantes e dominados, bons e maus, injustiçadores e vítimas. A ideologia do capital a todos perpassa, a concorrência é geral, a mercantilização é total, a acumulação é a lei. A arte plenamente crítica não é, então, nem organicista – louvor das classes, grupos, movimentos – nem individualista – exposição dos exemplares virtuosos e/ou deploráveis. Ela alcança os mecanismos do capital, as formas da sociabilidade, a ideologia que é uma positividade constitutiva e não simplesmente uma negatividade a ser combatida com conscientização ou chamamento ao brio moral. Assim sendo, uma plena crítica, na arte, é tanto a plena negatividade – nada há no capitalismo que escape às suas determinações, formas, leis e dinâmica – quanto a plena positividade – somente o totalmente Outro é sobrepujante ao já dado. Não ideologias – poder de classe, nacionalismo, desenvolvimentismo, representatividades – contra a Ideologia, mas Ideologia sobre Ideologia; Desejo sobre Desejo: socialismo acima de capitalismo.

GABRIELA FERO

A arte de Gabriela Fero, ao se posicionar no centro da contradição das lutas do tempo presente, não apenas não sucumbe a fragilidades típicas do limitado horizonte artístico e cultural da atualidade quanto, ainda, supera as vicissitudes de uma crítica que tradicionalmente não soube lograr um avanço decisivo na disputa ideológica. Fero intervém, com sua pintura, como uma artista crítica sem concessões às reconciliações do capital – afirmando, então, uma plena negatividade – e, ao mesmo tempo, demonstra formas e mecanismos da reprodução social – revelando, assim, uma plena positividade operativa da sociabilidade de nosso tempo e desvelando, ainda, as positividades da Ideologia e das ideologias – inconsciente e desejo para além do eventual clamor moral liberal por consciência de classe e de grupo. Não de inclusão e manutenção, mas de negatividades da exploração e da exclusão e das positividades da ruptura se faz sua arte.

Neste sentido, Gabriela Fero atravessa, a contrapelo, o modelo artístico consagrado do século XXI. Não opõe, de modo reativo, um organicismo a outro – classe contra identidades é o exemplo mais patente desse modelo de reacionarismo pretensamente crítico. Opera de modo positivo a negação de todas as reformas, de classe e de representação individual ou grupal. O todo é o tema da obra de Fero, mas não um todo inespecífico e facilmente rejeitado por razões morais – como um realismo capitalista poderia fazer, baseado na exasperação dos sujeitos e na crise ecológica mundial –, e sim a totalidade estruturada. Sua determinação, sua causa histórica, suas formas sociais, suas formações variadas, suas dinâmicas, sua Ideologia. Ao pintar as especificidades do todo da sociabilidade, Fero deslinda então a crítica implacável a esse todo e a interpelação identificadora de suas razões e mecanismos, o que permite também vislumbrar a possibilidade de um totalmente Outro. A arte assume, em Fero, o papel de anunciante da ciência, tornando-se delineadora do desejo da revolução. A arte crítica não é, diretamente, ciência e revolução, mas é anúncio da primeira e instigadora da segunda.

É o sujeito o mote estratégico da arte de Gabriela Fero. Não são os objetos ou a natureza, como uma crítica fácil engendraria. Objetos são inertes, natureza seria sacralizada para além do humano, de tal sorte que à sociedade se esperaria apenas a passividade de não atrapalhar o transcurso do natural ou do objetal. O sujeito é o problema decisivo da sociabilidade, e, aqui, via de regra, a arte política sucumbe ao desejo já constituído nos sujeitos pelo Sujeito capital. Poder estatal, representatividade ou mesmo eventos catárticos como rebelião são produtos/reações do desejo capitalista já dado. Gabriela Fero vai além da entrega do que se espera: os sujeitos são produtores do capital porque são ao mesmo tempo produtos dele; seus desejos são seus problemas; sua catarse é sua sucumbência ao mesmo; sua vitória parcial, individual, grupal ou de classe é o fracasso da transformação do todo. Pintar o sujeito desejante da ordem que o constitui, o explora e o domina, e fazer de sua denúncia estrutural o desejo de um sujeito totalmente outro, que ainda não há, é a melhor dialética da subjetividade que pode ser promovida pela arte crítica.

Não há ponto idílico de retorno numa sociabilidade totalmente produzida e dominada pelo capital. A natureza é humana. Mas também o humano é natural e objetal porque mercadoria. Na arte de Fero, o petróleo não é restrito à denúncia de seus problemas ecológicos, como uma esquerda liberal típica e confortavelmente poderia considerar, nem tampouco é um dado da petição por industrialização ou somente do resgate do nacionalismo, como as lutas do fordismo apresentaram. O petróleo soma as contradições do fordismo e do pós-fordismo. Nas telas de Fero, pelos bicos de abastecimento do petróleo e do gás os sujeitos são ao mesmo tempo alimentados e aniquilados. Petróleo e carcaças de tubarões e de morcegos são referenciais imagéticos de um capitalismo plenamente financeirizado, no qual a mercadoria enfim a tudo preside, de modo ao mesmo tempo pujante e desgraçado. Para Gabriela Fero, o petróleo é humano, não por ser um distinto a princípio bom e que depois foi conspurcado pelos homens, mas sim porque só é petróleo e se nos impõe porque circula como mercadoria. Mas, por sua vez, o humano é objetal: bomba, mangueira, máquina, gás não são constrangedores externos dos sujeitos, são seus pedaços, suas partes, seus motores, sua alma. Ao pintar os sujeitos cortados e ao mesmo tempo vivos, maquinais e ao mesmo tempo operantes, Fero demonstra o totalmente humano do objetal/natural e vice-versa. Não há oposição pela qual um lado bom salve o outro degradado. Não há desenvolvimentismo ou técnica que salvem o humano nem tampouco humanidade ideal que salve a natureza e os objetos: as forças produtivas são meios e extensões das relações de produção. É então o sujeito, de modo relacional, o problema do capitalismo e o centro da arte de Fero.

As contradições da arte política no Brasil

GABRIELA FERO

Os sujeitos são constituídos e operam sob as mesmas determinações e formas do capital, mas em formações sociais específicas. A arte no Brasil guarda os mesmos dilemas e as mesmas contradições da arte no mundo, a partir, no entanto, de historicidades, circunstâncias e afecções próprias. A arte política, no Brasil, tem as virtudes e padecimentos de sua dinâmica política capitalista. O horror é sua face mais explícita e marcante: suplício, flagelo, escravidão, violência, dor. Mas o arcabouço ideológico historicamente dominante no país, à direita e à esquerda, tende sempre a contrabalancear o horror social com as propaladas virtudes que se lhe são atribuídas: festa, alegria, país do carnaval, homem cordial.

Dada essa fusão ideológica de horror com doçura, a arte brasileira é também afirmadora de tal polaridade cuja implicação é apenas de soma, sem ser dialética. Quando a arte política se pretende crítica, progressista, ela afirma ora a dor, ora o amor. Chora-se, mas também se ri. Com isso, o horror é circunscrito ao momento econômico, político e social. A felicidade também, por sua vez, é circunscrita ao âmbito do lar, da vizinhança, da comunidade, do bairro, do subúrbio, do morro, do interior, do sertanejo, dos povos originários, dos povos negros, dos afetos intersubjetivos. Não há dialética entre os dois polos. Há o horror e a felicidade, mas dão as costas um ao outro, de tal sorte que as duas afecções são reclamadas de modo fragmentário ou quase que isolado, sem que constituam um todo. Guerra e Paz, a exemplar e grandiosa obra de arte de Candido Portinari na ONU, são duas telas.

Também a arte política pós-fordista opera no padrão de bipolaridade sem dialética. O mesmo sujeito dominado e oprimido é aquele que, em outra circunstância, afirma-se, orgulha-se, passa a ser representado. O circuito da negação e da redenção aqui se forja em nível pleno: ao cabo haverá reconciliação. A dor redundará em felicidade. A tessitura social não será abolida nem superada, será antes reconstruída de modo melhor. Os quadros pintados pelos gêneros, raças e grupos dominados serão enfim expostos no museu, ganhando espaço ao lado dos tradicionais quadros feitos pelos homens brancos dominadores que retratam os dominados. Opressão e afirmação. As identidades valerão; a lei do valor será então estendida. A valorização do valor seguirá intacta, apenas agora redentora: do circuito restrito ao circuito ampliado da arte como mercadoria.

Assim, nos Estados Unidos e no Brasil, apenas o escravismo colonial e seus ecos contemporâneos são o polo a ser combatido; o capitalismo enquanto liberalismo e institucionalidade representativa é o polo de redenção. A polaridade não alcança a crítica ao próprio capitalismo. Guerra e paz são dois marcadores independentes, como também o são mal e bem, exclusão e inclusão. O moralismo será seu corolário, o humanismo seu remédio, a reconciliação com o capital seu gozo.

Junto dos artistas brasileiros que operavam a tristeza ao lado da alegria – Portinari, Di Cavalcanti – há os que operavam mais a tristeza – Goeldi, Iberê Camargo – e os que operavam mais a alegria – Djanira, Aldemir Martins. A reputada alma brasileira está intacta na ideologia artística, seja por um polo, por outro ou pelos dois, mas, neste caso, um ao lado do outro. Poucos, como um Segall, foram sombra na luz do trópico, ou, como um Burle-Marx, arrancaram o máximo de modernidade abstrata das cores naturais que brotavam das plantas da terra. A dialética fina que perpassa a mesma linha entre o horror e a felicidade e entre a tradição e o futuro foi rara na arte brasileira do século XX. No século XXI, ela é ainda, até agora, virtualmente inexistente.

Há, na arte política do Brasil, um problema de forma: a narrativa política do Brasil não é de ruptura, mas de continuidade. Não corresponde totalmente à realidade – o Brasil tem uma história de lutas e de sangue –, mas corresponde à ideologia que se afirma. Assim sendo, ideologicamente, não há lutas redentoras, não há superação de um modo de produção por outro mediante atos abertos de confrontação – a abolição da escravatura é simbolizada por uma promulgação jurídica imperial. Quando o pós-fordismo busca corrigir esse quadro, acaba apenas por operar seu diapasão oposto e complementar: a resistência, o quotidiano, o dia-a-dia, o subsistir e o existir resistindo dos sujeitos dominados. Assim, a dinâmica histórica é afirmada, ideologicamente, como ato de modernização, sem ruptura, e a luta é celebrada como ato individual de resistência, cujo marcador e índice é o sofrimento. Saindo-se do polo de uma arte que celebra a modernização de salão, vai-se diretamente ao outro, que celebra os sujeitos atomizados em sofrimento e resistência. Falta, na história da ideologia do Brasil, as massas, o fluxo, a dinâmica do capital por ela mesma, suas contradições, lutas, combates, sofrimentos e desejos no mesmo todo estruturado.

Ocorre, com isso, um enfraquecimento estrutural e histórico da arte política no Brasil. Ela não concorre nem mesmo com aquela de países latino-americanos que celebram heroísmos épicos, como o México. Se a Revolução Mexicana, na primeira metade do século XX, liberou uma historicidade ideológica épica, ela ensejou então um muralismo de alta expressividade, só não mais crítico por conta dos próprios limites e impasses revolucionários desse país naquele tempo. Eugênio Sigaud, de quem se esperava fosse o correspondente brasileiro de Diego Rivera ou de David Siqueiros, não teve ideologia nem materialidade social que o habilitassem a tal. O mesmo com Tarsila do Amaral em face de Frida Kahlo. Portinari não é Picasso não por técnica ausente, mas por mote ideológico. Di Cavalcanti não é Guayasamin porque a subjetivação do brasileiro é sal ao lado do açúcar, e a do equatoriano é do gosto do soro. A arte política brasileira espelha a ideologia política brasileira.

Quando enfim a arte brasileira equivale temporalmente à mesma qualidade da arte das demais regiões do mundo, nos tempos atuais do pós-fordismo, isto se deve porque também o mundo todo perdeu a dialética que habilitasse uma arte política maiúscula e decisiva. Ao se jogar a história na reprodução quotidiana e nas reformas que não abalam estruturalmente o capitalismo e o liberalismo, a arte política se afirma por todo o mundo do mesmo modo, e sua afirmação é exatamente seu fracasso. Já os países de capitalismo central não produzem mais arte de vanguarda; num capitalismo que é de crise como estrutura de sua dinâmica, somente a inserção no mercado é a tônica e o marcador do sucesso.

Está nas bordas entre centro e periferia a possibilidade de produzir tanto a ciência de vanguarda de nosso tempo quanto também sua arte de vanguarda: aproveitando-se das instituições mas não sufocado por elas; valendo-se das rebarbas do consumo do capital mas não se adequando aos seus termos e desejos; afirmando o horizonte futuro não do centro do domínio que não permite a mudança, nem da periferia a partir da qual a crítica não incomoda o todo, mas sim da tangente entre ambos, do centro-periferia, posição privilegiada do Brasil.

Gabriela Fero tem as condições tanto de reposicionar a história da arte política do Brasil quanto, também, a de situar a própria arte política brasileira na vanguarda da arte mundial. Após um século de arte política semicrítica, enfim a possibilidade de uma crítica estrutural; após meio século de arte liberal-individualista, enfim uma arte que tome o sujeito-indivíduo como a questão decisiva de um todo estruturado. Isto será plenamente brasileiro porque é a verdade do Brasil, isto será plenamente mundial porque, no fundamental, nada do que nos atravessa é distinto daquilo que atravessa o mundo. Não é o pitoresco que nos abrirá alas e nos jungirá ao mundo; é a revolução, ausente por todo o mundo e cada vez menos possível de ser pintada e falada no centro do capitalismo, que permitirá jogar luz a quem primeiro a revelar nas condições e clamores do século XXI. Um pedaço desse potencial está nas mãos da artista, pelos seus pinceis; outro pedaço está nas mãos da sociedade, que faça a luta que lhe seja o mote.

A pintura de Gabriela Fero poderá, no século XXI, alcançar enfim as formas da arte política, que foram tangenciadas no Brasil do século XX, mas não conseguiram ser plenamente assentadas. A arte de gabinete, os tamanhos de tela próprios à apropriação burguesa, servindo como elementos na decoração das casas, as temáticas de gosto universalista, o pitoresco e o grotesco como objetos para públicos consumidores cativos, a pintura sempre da moda e que permite a constante circulação do mercado artístico, tudo isso atravessou impavidamente os variados modos de acumulação e os regimes de regulação do capitalismo. É verdade que nos tempos do fordismo, com o nacional-desenvolvimentismo, a arte pública e o muralismo tiveram no Brasil algum incentivo. No entanto, faltou a pedra de toque do que retratar, e como. A crítica insuficiente resultou na forma insuficiente. Eventualmente o século XXI conhecerá, com Fero, a forma mural plena, a narrativa imagética enfim radical do país e do mundo. O extremo que gerou Guernica a partir de uma tessitura de leitura de mundo sólida em sua indignação e grandemente potente em sua imagética e seu posicionamento de mundo poderá ser – de outro modo, em outras circunstâncias e com outras virtudes e propósitos – o combustível para que Fero seja a pintora decisiva de nossa época.

Será o tempo do capitalismo presente – de acumulação exatamente pela sua crise – passível de conhecer uma plena arte crítica? Mais do que a arte ser longa e a vida ser breve, a questão está em que a ocasião é fugidia.

GABRIELA FERO

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Alysson Leandro Mascaro é jurista e filósofo do direito brasileiro, nasceu na cidade de Catanduva (SP), em 1976. É doutor e livre-docente em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo (Largo São Francisco/USP), professor da tradicional Faculdade de Direito da USP e da Cátedra de Educação Advocatícia da ESA-OAB/SP”, além de fundador e professor emérito de muitas instituições de ensino superior. Publicou, dentre outros livros, Estado e forma polític(2013), Crise e golpe (2018), Crise e pandemia (2020) e Crítica do fascismo (2022). Colaborou com as coletâneas Curso livre Marx-Engels: a criação destruidora (2015), Curso livre Engels: vida e obra (2021) e Brasil sob escombros: desafios do governo Lula para reconstruir o país (2023), todos lançados pela Boitempo.

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