Viagem sentimental na terra da tsarina

João Lanari Bo escreve sobre "Viagem de Petersburgo a Moscou, de Aleksandr Radíschev: "A jornada literária de Radishchev é guiada por uma profunda convicção moral – em especial sobre a crueldade da servidão e outras formas de exploração humana."

Imagem: Selo da URSS com imagem de Aleksandr Radíschev em comemoração ao seu bicentenário (1949).

Por João Lanari Bo

Em boa hora a Boitempo disponibiliza um dos tesouros desse manancial que é a literatura russa – Viagem de Petersburgo a Moscou, escrito por Aleksandr Radíschev e publicado pela primeira vez em 1790, ano 1 da Revolução Francesa. Traduzido de forma fluida e competente do russo por Paula Vaz de Almeida – que também é responsável pela apresentação e notas – esse é um livro que, em si mesmo, já é uma peça histórica: produzido numa época conturbada, para dizer o mínimo, veio ao mundo com fúria e força, mas esbarrou na ânsia repressora da tsarina Catarina II, conhecida pelo epíteto “a Grande”: se no início do seu reinado sinalizava reformas e alguma liberalidade, exibida na sua amizade com iluministas franceses – Voltaire, Diderot e Montesquieu – com o tempo e, sobretudo, com a debacle da monarquia francesa que se anunciava no horizonte, o ardor diminuiu. Uma das vítimas desse refluxo foi Radíschev, já que a soberana leu a obra e, enfurecida, começou a escrever notas do tipo: “…o propósito deste livro está claro em cada página: seu autor, infectado e cheio da loucura francesa, está tentando de todas as maneiras quebrar o respeito pela autoridade… para incitar no povo a indignação contra seus superiores e contra o governo”.

Sobre Mirabeau, que é citado elogiosamente, mas numa breve passagem, a tsarina anotou: “merece não uma, mas muitas vezes, ser enforcado”. Não deu outra: nosso autor foi condenado à morte, depois comutada em exílio na Sibéria. A jornada literária de Radishchev, inspirada no clássico de Sterne publicado em 1768, é guiada por uma profunda convicção moral – em especial sobre a crueldade da servidão e outras formas de exploração humana. Na viagem do narrador, cada parada para troca de cavalos e descanso dá margem a ficções sentimentais, discursos alegóricos, poesia, enredos teatrais, ensaios históricos, tratado sobre censura e insights sobre corrupção e bajulação burocrática – em geral, relatos atribuídos a terceiros, viajantes ou locais. Na diacronia do percurso, mergulhamos sincronicamente em mundos à parte, naufrágios, peregrinas videntes, moças maquiadas – a percepção, mais ou menos visível, é sempre da injustiça aberrante, da hierarquia social devastadora. Não é à toa que o livro ingressou na genealogia da revolução soviética de 1917, Lênin e Lunatchárski a frente. Aleksandr Herzen, que se tornou a primeira pessoa a publicar o livro, em 1858, desde que Radíschev havia feito, em 1790, escreveu: “Radíschev simpatiza com as massas sofredoras, ele fala com cocheiros, servos e recrutas, e em cada palavra dele encontramos um ódio de poder arbitrário e um forte protesto contra a servidão… Como pode a memória deste mártir não ser querida para nossos corações?”.

Tempos conturbados, também na indústria editorial: Robert Darnton publicou uma acurada pesquisa sobre o frenesi com que editores corriam à Europa, inclusive à Rússia, contratando e vendendo livros libertários, com um título revelador – Pirataria e Publicação. Uma das estrelas, hoje um tanto esquecida, é Guillaume Thomas François Raynal (1713-1796), padre, jornalista, historiador, filósofo e… best-seller! No livro de Darnton é citado 74 vezes – e nas leituras de Radíschev, um favorito. Raynal escreveu com o mesmo ardor justiceiro e é uma influência indubitável sobre o autor russo. Ele construiu seu texto com contribuições de companheiros filósofos: seu História das Duas Índias tem um terço creditado a Diderot, foi caracterizado por Voltaire como “du réchauffé avec de la declamation“, mas vendeu por toda a Europa divulgando a mensagem emancipatória dos novos tempos. Resta imaginar como seria se Viagem de Petersburgo a Moscou tivesse entrado nesse circuito…


Publicado pela primeira vez em português e com tradução direta do russo, Viagem de Petersburgo a Moscou é a principal obra de Aleksandr Radíschev, considerado o fundador da tradição revolucionária na literatura russa. Em seu relato de uma viagem fictícia de São Petersburgo a Moscou, através de uma rota postal que passa por diferentes cidades, Radíschev retrata um quadro em que sobressaem a injustiça social, a miséria e a brutalidade. Incorporando elementos diversos para construir sua narrativa, o autor, ao expor as mazelas do Império Russo, oferece também uma crítica à servidão, à autocracia e à censura.

Considerado por muitos revolucionários o primeiro de uma linhagem de escritores russos que fizeram de sua obra veículo privilegiado para transmitir uma mensagem de transformação social, o autor cria uma língua literária singular. Lançado pela primeira vez em 1790, no reinado de Catarina II e um ano após a Revolução Francesa, a obra irritou a imperatriz. Condenado, Radíschev foi enviado para um exílio interno na Sibéria, onde passou quase seis anos longe de sua família. Pouco tempo depois do cumprimento de sua pena, Radíschev colocaria fim a seus dias, vindo a falecer em 24 de setembro de 1802.

Viagem de Petersburgo a Moscou, de Aleksandr Radíschev, tem tradução, apresentação e notas de Paula Vaz de Almeida, texto de orelha de Raquel Toledo, capa de Antonio Kehl, sobre projeto gráfico de capa de Rafael Nobre (imagem A queda de Nóvgorod, de Klávdi Lebediev, 1891) e apoio do Instituto Perevoda.

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João Lanari Bo é professor de Cinema na Unb, publicou Cinema Japonês: Filmes, Histórias, Diretores (Giostri, 2016) e Cinema para Russos, Cinema para Soviéticos (Bazar do Tempo, 2019).

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