O grito de Radíschev contra o trabalho compulsório

Raquel Toledo escreve sobre “Viagem de Petersburgo a Moscou”, de Aleksandr Radíschev: “Sua força está justamente no hibridismo criativo que alia cuidado artístico-literário e um ideal urgente a ser publicizado: um grito forte contra o trabalho compulsório, realidade que persiste para muitos ainda hoje.”

Imagem: A queda de Nóvgorod, de Klávdi Lebediev, 1891.

Por Raquel Toledo

Catarina II entrou para a história da monarquia russa como uma “déspota esclarecida”, mas seu comportamento autoritário esteve distante disso e a vida de Aleksandr Radíschev, bem como sua obra, o colocam claramente contra um dos pilares centrais da força tsarista: a servidão.

Radíschev denuncia essa servidão neste Viagem de Petersburgo a Moscou, mistura de ensaio e de diário de viagem, que na origem foi impresso de forma caseira, dando início à tradição, tão russa, de autopublicação clandestina de textos censurados. Muito antes de escrever, porém, Radíschev tomou contato com ideias libertárias que circularam na Europa a partir de Paris na segunda metade do século XVIII. Esses ares de mudança sopraram na Rússia e modificaram, em especial, o comportamento da monarca, que perdeu o verniz de “esclarecida”, proibiu o livro e mandou seu autor de início para a prisão, depois para a Sibéria. Vale mencionar que esse é outro triste ineditismo de Radíschev: o de ter sido o primeiro escritor russo enviado às planícies geladas da Sibéria por conta de uma obra literária.

No gênero híbrido criado por ele, as denúncias da servidão e as reflexões sobre o que é ser livre e sobre quais pessoas teriam então o direito de tirar a liberdade de outras – em diálogo com as teorias de Rousseau – misturam-se a personagens camponeses interessantíssimos e até mesmo à chacota que Radíschev faz dos hábitos da nobreza: as mulheres dessa classe, por exemplo, pintam os dentes com carvão, enquanto as camponesas de Iédrovo possuem sorriso tão branco que causaria inveja a qualquer cortesã. Claro que há certa idealização do campesinato, mas até isso está a serviço da sensibilização do leitor para a brutalidade da servidão, que, segundo o autor, não poderia seguir manchando a Rússia.

A força de Viagem de Petersburgo a Moscou e seu ataque à servidão renderam a Radíschev admiração alguns séculos adiante. Lênin era leitor voraz de seus escritos e, assim que chegou ao poder, encomendou um busto dele para que fosse relembrado pelas ideias que tanto inspiraram os bolcheviques. Essa força está justamente no hibridismo criativo que alia cuidado artístico-literário e um ideal urgente a ser publicizado: um grito forte contra o trabalho compulsório, realidade que persiste para muitos ainda hoje.


Publicado pela primeira vez em português e com tradução direta do russo, Viagem de Petersburgo a Moscou é a principal obra de Aleksandr Radíschev, considerado o fundador da tradição revolucionária na literatura russa. Em seu relato de uma viagem fictícia de São Petersburgo a Moscou, através de uma rota postal que passa por diferentes cidades, Radíschev retrata um quadro em que sobressaem a injustiça social, a miséria e a brutalidade. Incorporando elementos diversos para construir sua narrativa, o autor, ao expor as mazelas do Império Russo, oferece também uma crítica à servidão, à autocracia e à censura.

Considerado por muitos revolucionários o primeiro de uma linhagem de escritores russos que fizeram de sua obra veículo privilegiado para transmitir uma mensagem de transformação social, o autor cria uma língua literária singular. Lançado pela primeira vez em 1790, no reinado de Catarina II e um ano após a Revolução Francesa, a obra irritou a imperatriz. Condenado, Radíschev foi enviado para um exílio interno na Sibéria, onde passou quase seis anos longe de sua família. Pouco tempo depois do cumprimento de sua pena, Radíschev colocaria fim a seus dias, vindo a falecer em 24 de setembro de 1802.

Viagem de Petersburgo a Moscou, de Aleksandr Radíschev, tem tradução, apresentação e notas de Paula Vaz de Almeida, texto de orelha de Raquel Toledo, capa de Antonio Kehl, sobre projeto gráfico de capa de Rafael Nobre (imagem A queda de Nóvgorod, de Klávdi Lebediev, 1891) e apoio do Instituto Perevoda.

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Raquel Toledo é professora, pesquisadora e mestre em Literatura e Cultura Russa pela Universidade de São Paulo, onde também fez a graduação em Letras com habilitação em Português e Russo.

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