20 anos de “O ornitorrinco”

No Espaço do leitor, João Marcos Duarte comenta os 20 anos do clássico ensaio de Chico de Oliveira e sua atualidade.

Foto: Penny (Pixabay).

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Por João Marcos Duarte

Na hora fatídica em que é novamente entronizado nosso Ornitorrinco como a salvação da pátria brasileira, a obra homônima de Chico de Oliveira completa 20 anos. A ironia não poderia ser maior. No momento mesmo em que o muro de contenção colocado para que o que resta do país não desmorone, muro de contenção esse tido pelo texto aniversariante como o fim da política e princípio da era da completa administração dos destroços, mais uma vez, o futuro que repõe a situação – nas palavras de Miguel Lago, uma verdadeira contrarrevolução. Apesar da distância, aos que gostam de literatura, o cheiro de família de certo girar em falso identificado por, talvez, o último dos grandes de nossa tradição crítica, Roberto Schwarz, no romance de Cyro dos Anjos.

A ser matizado em seu devido momento se estamos diante do texto inaugural de uma nova fase de nossa combativa tradição ou se trata-se de algo diferente, deixando a pá de cal para certo ensaio do mesmo Roberto – que não por acaso prefacia o livro cujo ensaio que acompanhamos nomeia – sobre engajamento – este último podendo ser lido em par com o “ocaso dos bacharéis” de Luiz Felipe de Alencastro. Mais uma vez, não à toa para nós, os três ensaios mencionados têm uma personagem em comum: Fernando Henrique Cardoso. Eminente personagem que realiza o projeto de nossos bacharéis tornando-o real em seu avesso: ao concretizar o projeto de transformar o Brasil em um país digno de nota internacional, e ter voz e vez nos termos da ordem para o próprio núcleo orgânico do capital, o fez de modo que nos tornássemos reféns dos ventos e mares desse mesmo núcleo orgânico. Mais uma vez, a ser posto em termos verossímeis, no momento mesmo em que somos um país dirigido por um Bacharel puro sangue, estamos mais próximos do que nunca de nosso passado colonial: exportadores de commodities e ativos financeiros, cujo nexo está novamente na circulação e não na produção interna. Independente do lugar que ocupe no panteão de ensaios iluminadores da realidade brasileira, é em O ornitorrinco que temos o diagnóstico fechado: somos “acumulação truncada e uma sociedade desigualitária sem remissão” (OLIVEIRA, 2003, p.150) .

No contravapor da eleição de nosso maior líder popular, Francisco de Oliveira publica seu ensaio em 2003, quando ninguém queria saber de desavenças que pudessem manchar a vitória retumbante que havia se dado em outubro do ano anterior. Apesar das concessões necessárias para ganhar a eleição – que não estavam fora do delineado pelo próprio sociólogo – não era hora de levantar brechas e dizer que os novos mares pelos quais o Brasil iria navegar ou que a direção do barco não eram tão diferentes assim. Pelo contrário, tratava-se de um par com o antecessor, de modo que “o governo de Lula realiza o programa de FHC, radicalizando-o” (OLIVEIRA, 2003, p.147) . No lugar da propaganda ufanista de que o Brasil seria um lugar renovado, em que a burguesia seria domada e enfim teríamos um país minimamente civilizado que parasse de matar as periferias, que realizasse os direitos básicos (e outros mais) de maneira digna para toda a população, dando a todos a oportunidade de terem empregos dignos e constituírem carreira segura, o oposto: aprofundamento do caminho que já estava sendo trilhado por nosso eminente dirigente, que por sua vez também cumpria a cartilha de nosso pacto de reconciliação extorquida. Ingenuidade dos esperançosos, cinismo por parte do núcleo duro dos dois polos antes opostos e agora aliados em busca do “Brasil feliz de novo”.

Começando pelo começo: Francisco de Oliveira havia escrito em 1972 a Crítica à razão dualista, cuja tese central era a de que, à revelia de seus companheiros mais queridos, no Brasil era o atraso reposto que proporcionava certo avanço econômico e suas migalhas sociais – o exemplo mais gritante que o próprio sociólogo nos dá é o das leis trabalhistas que repõem certa acumulação primitiva nos termos de um país independente e querendo fazer sua revolução industrial – e que, apesar da condição desvalida, havia certa brecha para que a nação se completasse nos termos de uma formação social, política e econômica em comparação com o núcleo orgânico do sistema – se fôssemos usar os termos de Antônio Candido, diríamos que tratava-se de um projeto radical. Nas palavras do próprio Chico: “Esse conjunto de imbricações entre agricultura de subsistência, sistema bancário, financiamento da acumulação industrial e barateamento da reprodução da força de trabalho nas cidades constituía o fulcro do processo de expansão capitalista” (OLIVEIRA, 2003, p.130). As coisas foram se dando. Tivemos o Estado Novo, um interregno democrático, a Ditadura Militar e, finalmente, nossa redemocratização. Ao longo do tempo, a modernização brasileira se fez de algum modo. O ponto de inflexão é, sem dúvida, nossos vinte anos de ditadura, em que o projeto de soberania nacional foi finalizado (nos sentidos todos que a palavra permite). Ponto de inflexão diagnosticado por certa teoria da dependência, matriz da intelectualidade orgânica de nosso ornitorrinco e que tem por base nosso “ex-sociólogo e eterno candidato ao Planalto”, nas palavras do nosso ensaísta.

Como continuidade desde o início de nosso processo de modernização, os fundos públicos, o elo que antes servia para fornecer condições para o projeto de soberania nacional. Agora, em plena era das finanças internacionalizadas e mundializadas, o núcleo econômico que permite o surgimento de “uma verdadeira nova classe social” ligando os dois lados dos antes inimigos mortais agora aliados indissociáveis – a razão, é claro, está com os insurgentes que sempre disseram “são todos iguais” – “que se estrutura sobre, de um lado, técnicos e economistas doublés de banqueiros, núcleo duro do PSDB, e trabalhadores transformados em operadores de fundos de previdência, núcleo duro do PT” (OLIVEIRA, 2003, p.147). Passados 20 anos, as coisas estão tão amalgamadas que não é mais possível discernir com tanta clareza quem é quem, ou de onde vem cada membro dessa classe social. E nem precisaria, dada sua unidade de objetivos: a nova classe “trabalha no interior dos controles de fundos estatais e semiestatais e está no lugar que faz a ponte com o sistema financeiro” (OLIVEIRA, 2003, p.148). Ainda uma nota sobre essa novidade: apesar do grito por democracia contra o golpe de 2016, há que se pensar na possibilidade de ter sido uma briga intestina para ver quem tomaria conta do “mapa da mina”. Inclusive, sendo esse um dos possíveis motivos para a insurgência dos jagunços que se emancipam dos seus coronéis, nos termos de Gabriel Feltran (2020), para terem acesso a essa galinha dos ovos de ouro que antes lhes era vedada, dado que essa pedra de toque do Brasil pós-redemocratização ficou intacta – ou melhor, nunca funcionou tão bem, principalmente para aqueles que se locupletam com o câmbio da moeda nacional desvalorizada, mas isso também não é novidade.

Dado o avanço do mundo, com a financeirização e a terceira revolução industrial (que agora já passa da quarta ou quinta, a depender da classificação), à qual aderimos como meros fornecedores de matéria prima para exportação ou circulação de ativos, como dito linhas acima e explicado em detalhes no pequeno escrito luminoso que acompanhamos, nosso impasse: “Não há possibilidade de permanecer como subdesenvolvimento e aproveitar as brechas que a Segunda Revolução Industrial propiciava; não há possibilidade de avançar, no sentido da acumulação digital-molecular: as bases internas da acumulação são insuficientes, estão aquém das necessidades para uma ruptura desse porte” (OLIVEIRA, 2003, p.150). O que nos resta é viver de pequenos ciclos de “acumulações primitivas”, como as privatizações, e os “boom de commodities”, para depois desembocar em outra crise econômica que, como tudo no mundo do capital, dá em crises políticas conjunturais.

A acumulação dessa engrenagem emperrada, depois de anos tem seu ponto de inflexão nos insurgentes que foram tidos como bandalheiros pela mesma esquerda ontem e hoje entusiasmada com certa novidade que tira da cartola, é justamente o momento em que esse ornitorrinco se transforma num monstro e começa a moer a massa de desvalidos que agora são completamente inúteis para qualquer tipo de acumulação de modo afirmativo e sem mais véus que permitem tergiversar a realidade – mas isso também não é nenhuma novidade. Talvez o ponto que Francisco de Oliveira não tenha colocado em seu escrito, pois não seria possível, é justamente o dessa sobreposição que faria com que a engrenagem da máquina de moer gente, já em fim de linha, voltasse a funcionar e começasse a fazer fumaça a partir de seus próprios entusiastas embrenhados de um niilismo que também faz sentir certo cheiro de queimado – que para os que gostam de colocar panos quentes, basta a vitória consecutiva de algumas eleições para acalmar os “ânimos exaltados”.

Seja como for, retomando citação, somos uma sociedade desigualitária sem remissão, fruto da evolução constante de um país da periferia do capitalismo que tinha o ideal de ser núcleo orgânico à sua maneira, e que em alguns momentos teve influxo desse centro do sistema, inclusive para seus interesses mais fundamentais – conferir a esse respeito, o interessantíssimo estudo de José Miguel Wisnik sobre a poesia de Carlos Drummond de Andrade , que coloca a fundação da Companhia Vale do Rio Doce na encruzilhada da Segunda Guerra Mundial e da bomba atômica, início de nosso tempo do fim. Isso nos leva a outra descoberta do crítico e que dá o que pensar sobre certo rumo de nossa intelectualidade: talvez estejamos diante de um momento em que a questão nacional já não leve a dianteira, inclusive para pensar em profundidade ela mesma. Isso muda a configuração dos esforços para uma formação nacional, dado que seriam necessárias expectativas que já não mais grassam do nosso lado do front. Um texto melancólico, por certo. Resta saber se serão necessários mais vinte anos para a que denegação que esse ensaio tenta a seu modo combater, de fato acabe.

Referências bibliográficas
FELTRAN, Gabriel. Formas elementares da vida política: sobre o movimento em curso (2013-). Blog Novos Estudos, 17 jun. 2020.
OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista/O Ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.
WISNIK, José Miguel. Maquinação do mundo: Drummond e a mineração. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.


Publicado primeiramente como um ensaio, em 1972, com o título “A economia brasileira: crítica à razão dualista”, este clássico da reflexão sobre o Brasil foi transformado em livro em 1973. Em 2003, trinta anos depois, foi reeditado pela Boitempo, batizado simplesmente de Crítica à razão dualista. Somam-se a ele neste volume o ensaio “O ornitorrinco”, também de Francisco de Oliveira, e o “Prefácio com perguntas”, de Roberto Schwarz.


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João Marcos Duarte é fonoaudiólogo e doutorando em Linguística (UFPB/NYU).

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