Capitalismo tardio e neocatastrofismos

Os corifeus do capitalismo perderam o seu otimismo histórico. Não só nos mostram com dados um modelo de desenvolvimento neoliberal em declínio, mas também um capitalismo estruturalmente cansado, fissurado, sem um horizonte de esperança capaz de lançar o mundo numa nova etapa de prosperidade. Quase como uma besta irracional que se devora a si própria.

FOTO: EDUARDO KNAPP/FOLHAPRESS

 Por Álvaro García Linera

Houve uma época em que o patrimônio das leituras terminais do capitalismo estava na posse do marxismo. Durante as primeiras décadas do século XX, a crise do liberalismo do século XIX, a Primeira Guerra Mundial, a revolução soviética e o crash bolsista de 1929 alimentaram um extraordinário debate econômico sobre a iminente derrocada da sociedade burguesa moderna. Para a grande revolucionária Rosa Luxemburgo (A Acumulação do Capital, 1913), a saturação dos novos mercados ocupados pelo comércio e pela produção capitalistas anunciava o seu colapso iminente. O que ela não viu foi que o mercantilismo foi capaz de densificar o consumo nos mercados existentes e de ocupar novos espaços exteriores, como as sociedades agrárias ou a unidade doméstica urbana.

K. Kautsky, (Teoria das Crises, 1901), o pai da social-democracia europeia, anunciava que a dissociação entre a produção e o consumo mundiais, a chamada sobreprodução, era o sintoma decisivo da impossibilidade da continuidade histórica do capitalismo. No entanto, a devastação material provocada pelas guerras, e as próprias depressões econômicas, desempenharam o papel de destruição criativa schumpeteriana que voltou a associar produção e consumo. H. Grossman (A Lei da Acumulação, 1929), o grande economista polaco, acreditava que a sobreacumulação de capital, devido às constantes inovações tecnológicas que substituíam o trabalho humano, reduzia a quantidade de trabalho não pago apropriado pelos empresários, relativamente aos montantes de investimento efetuados, o que acabaria por conduzir a um colapso do sistema como um todo.

No entanto, como tem acontecido ao longo de décadas, esta tendência decrescente da taxa de lucro é também acompanhada por um crescimento sustentado da massa de lucro absorvida pelo investimento que dinamiza o investimento. P. Mattick, outro grande economista marxista dos Estados Unidos, acreditava que a saturação excessiva do capital à escala mundial, associada à concorrência entre empresas, conduziria a uma crise mortal do capitalismo, ao limitar o nível de rendimento das classes trabalhadoras (The Permanent Crisis, 1933). Mas não teve em conta que a melhoria da produtividade geral do trabalho aumenta os rendimentos das classes mais pobres, ao mesmo tempo que a mão de obra barata das sociedades periféricas e o trabalho doméstico gratuito ajudam a sustentar aquilo a que U. Brand chama o modo de vida imperial do capitalismo desenvolvido.

Embora muitos dos postulados destas reflexões acabassem por ser ultrapassados pela própria realidade, o grande contributo desta polêmica foi o de chamar a atenção para a recorrente manifestação de limites no desenvolvimento histórico da sociedade capitalista. Embora todos estes autores incorporassem o fator decisivo das lutas sociais para derrubar a ordem econômica, consideravam que a eficácia dessas lutas exigia condições materiais de possibilidade que permitissem o colapso do capitalismo existente e a sua substituição por outra organização econômica da sociedade.

Os trente glorieuses que emergiram após a Segunda Guerra Mundial (1945-75) e que trouxeram as mais elevadas taxas de expansão econômica e de bem-estar social à Europa e aos Estados Unidos, acabaram com o debate sobre o desmoronamento. A implosão do chamado socialismo real em 1989 e o triunfo incontestado do capitalismo de livre iniciativa nos anos que se seguiram encerraram temporariamente qualquer referência aos limites do capitalismo. De fato, desde então, este pôde ser apresentado como o fim intransponível do caminho para o progresso humano. Mas a celebração do fim da história não durou muito tempo.

Primeiro vieram os alarmes sobre os obstáculos naturais a esta forma de produção baseada no lucro permanente. Os efeitos dramáticos sobre o ambiente, aquilo a que Marx chama a fratura do intercâmbio metabólico entre a natureza e os seres humanos, começaram a ser expostos, não só com o risco apocalítico iminente de perturbação do clima, da biodiversidade e da vida terrestre, mas também com os limites materiais naturais a uma expansão contínua da produção e da acumulação capitalistas.

Surgiu, assim, um novo catastrofismo, agora centrado não tanto nas barreiras à acumulação empresarial, mas no esgotamento dos componentes materiais que permitem a produção e a acumulação burguesas. Já não é a organização social capitalista que manifesta os seus próprios limites (de acumulação, desigualdade, lutas sociais, etc.), mas é a natureza que constitui o limite do lucro ilimitado.

Cada novo relatório do Painel Intergovernamental das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas é mais aterrador do que o anterior, uma vez que o relógio do clima indica que estamos a segundos de ultrapassar 1,5°C acima das temperaturas pré-industriais, o que conduzirá a um turbilhão de efeitos ambientais e biológicos desastrosos e irreversíveis para o mundo.

Mas, para já, este neocolapsismo ambiental deu lugar a um fatalismo impotente que não consegue vislumbrar uma ordem econômica e social diferente do capitalismo existente. Propõe-se atenuar o seu desenvolvimento, dirigi-lo ou, na melhor das hipóteses, desdesenvolvê-lo (Latouche, 2023), ignorando o facto de que, se alguma coisa caracteriza o capitalismo, é precisamente a tendência para a acumulação perpétua, acima do bem-estar humano, do ambiente ou da própria vida biológica.

Uma contraparte precoce deste catastrofismo ambiental é o colapso induzido, chamado aceleracionismo (Srnicek, Fisher), que propõe exacerbar ainda mais a expansão capitalista para que as suas forças prometeicas, dissolventes e autoorganizadoras explodam, criando as condições para uma outra sociedade.

Mas o que é verdadeiramente impressionante nos últimos tempos é o catastrofismo analítico das instituições e think tanks do próprio capitalismo global. Eufóricos durante décadas com o imaginado triunfo definitivo do mercado livre, FMI, Banco Mundial, BIS, Rand Corporation, Fórum Económico Mundial, McKensey, etc., passaram nos últimos meses de um pessimismo temporário a um pessimismo catastrofista.

O FMI, esse porta-aviões político, artilhado de dinheiro e de dados econométricos, que durante décadas se encarregou de enquadrar a América Latina e a Europa de Leste no inelutável destino final da humanidade, o mercado livre, lamenta agora o desmoronamento da ordem planetária liberal e prevê que a fragmentação geoeconômica em curso provocará uma contração de até 7% do PIB mundial nos próximos anos (Geoeconomic Fragmentation, janeiro de 2023). Por seu lado, o Banco Mundial, essa cavalaria global do consenso de Washington, está agora aterrado com o futuro incerto e prevê uma década perdida, com o crescimento global a cair um terço em comparação com os primeiros 10 anos do século XXI (Global Economic Prospects, junho de 2023).

E o mais surpreendente sobre o futuro do capitalismo é o McKensey Global Institute. Considerado a mais famosa e influente empresa de consultoria do mundo, e que formou o maior número de CEOs de grandes empresas, acaba de realizar uma análise crítica e calamitosa sobre o futuro do capitalismo mundial capaz de disputar o limiar do fatalismo com as mais furiosas versões catastrofistas do marxismo do século XX. Começa o seu estudo por assinalar que, nos últimos 40 anos, o capitalismo mundial se desenvolveu através de uma perigosa anomalia: a de que o crescimento do valor dos ativos (ações, imobiliário) e da dívida (estatal, empresarial, pessoal) foi mais rápido do que o crescimento do PIB.

Por outras palavras, o valor dos ativos em papel dissociou-se do valor real da economia. Por cada dólar de ativos reais, os ativos fictícios cresceram 1,3 vezes. De 1993 a 2021, refere o documento, o capital não procurou investimentos produtivos, mas riqueza de papel: o valor dos imóveis cresceu 33% acima do PIB. Os ativos 100%; a dívida 90%; e os depósitos 124% (The Future of Wealth and Growth, maio de 2023).

Para agravar os males endêmicos, o investimento produtivo diminuiu em percentagem do PIB. Na União Europeia, 55% mais baixo do que entre 1995-2008. E nos Estados Unidos, menos 40%. A produtividade, por seu lado, abrandou o seu ritmo de crescimento. Se entre 1980 e 2000 aumentou 1,8% ao ano, entre 2000 e 2021 apenas 0,8%. A esperança de que a digitalização e a I&D revolucionem a produtividade falhou devido à falta de competências necessárias na mão de obra e, sobretudo, porque se trata de tecnologias de ciclo de vida curto que só podem absorver poupanças durante períodos muito limitados antes de se tornarem obsoletas ou de transferirem conhecimentos para os concorrentes.

Este abrandamento da produtividade do capitalismo tardio, antigo bastião da sua superioridade histórica, não é um problema passageiro: é um limite estrutural do próprio capitalismo. Criou-se assim um círculo vicioso: a parte dos grandes proprietários na riqueza global aumenta; a parte dos trabalhadores diminui, o que reduz o consumo proporcional, e o valor de papel dos ativos aumenta devido à poupança dos ricos. É um problema de sobreprodução com efeitos de desvio especulativo da riqueza que o próprio Marx subscreveria (O Capital, volume III).

Perante esta catástrofe, quais são as opções que temos pela frente? O instituto mais desejado por todos os licenciados em economia das universidades mais prestigiadas do mundo vê quatro opções, cada uma mais problemática do que a anterior. A primeira, a manutenção do status quo; crescimento fictício, aumento do PIB abaixo de 1%, fraca procura, baixo crescimento da produtividade, maior desigualdade. Em suma, um regresso à estagnação secular.

A segunda, políticas de defesa nacional (nacionalismo econômico): aumento do investimento público, crescimento moderado dos salários e do consumo, inflação acima dos 4%, declínio do valor das ações e do imobiliário, aumento da dívida e diminuição da riqueza das famílias em 8,5%.

A terceira, de recessão prolongada: política orçamental austera, forte contenção fiscal e da inflação, taxas de juro elevadas, queda do valor dos ativos, crise de liquidez, crise da dívida mundial, fraca procura, zombificação das empresas; o PIB cresce menos um ponto percentual do que na década anterior, o valor real das ações e do imobiliário cai 30% ou mais.

Finalmente, o produtivismo baseado no aumento do investimento em novas tecnologias: crescimento do PIB de 1% acima da década anterior, inflação controlada, políticas públicas industriais, estagnação e queda do valor do imobiliário em relação ao PIB, nova vaga de economias emergentes. Esta última opção, a menos conflituosa, é muito semelhante à traçada há mais de 100 anos por Rosa Luxemburgo, só que ela já viu a saturação desse caminho. E, no que diz respeito à produtividade, não há caminho para superar os limites estruturais que o mesmo instituto menciona em relação às tecnologias de rápida obsolescência.

Em suma, os corifeus do capitalismo perderam o seu otimismo histórico. Não só nos mostram com dados um modelo de desenvolvimento neoliberal em declínio, mas também um capitalismo estruturalmente cansado, fissurado, sem um horizonte de esperança capaz de lançar o mundo numa nova etapa de prosperidade. Quase como uma besta irracional que se devora a si própria. É por isso que não há dúvida de que, nestes tempos de incerteza pessimista, devemos voltar a desempoeirar e enriquecer os clarividentes debates marxistas sobre as condições do desmoronamento capitalista.

Tradução de Luís Branco para o Esquerda.net.


Coletânea de seis ensaios produzidos em diferentes épocas, A potência plebeia: ação coletiva e identidades indígenas, operárias e populares na Bolívia reúne pela primeira vez em português importantes momentos da produção intelectual de García Linera. Segundo o jornalista Pablo Stefanoni, autor do prefácio, a trajetória do ex-vice-presidente o coloca no papel de “intérprete do complexo processo político e social iniciado em 22 de janeiro de 2006, após o primeiro indígena chegar à presidência desta nação andino-amazônica, onde 62% dos habitantes se autoidentificam como parte de um povo originário, em sua maioria quéchua e aimará”.

Atraído pela questão indígena por conta da guerrilha guatemalteca, García Linera jamais abandonou esse interesse nas diferentes fases de suas concepções políticas, buscando apoio no marxismo para melhor formular a proposição de um “governo-índio”. Ainda segundo Stefanoni, “dedicou centenas de páginas a esquadrinhar Marx, Engels e Lenin para encontrar respostas ao problema nacional – ou comunitário-camponês”. Esses estudos puderam ser amplamente desenvolvidos no período em que esteve preso, por conta de sua participação em movimentos guerrilheiros.

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Álvaro García Linera foi Vice-Presidente do Estado Plurinacional da Bolívia (2006-19). Pela Boitempo, publicou A potência plebeia: ação coletiva e identidades indígenas, operárias e populares na Bolívia.

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