Disputar Junho ontem com as armas de hoje

Sem ceder à armadilha de Chronos, temos um compromisso retroativo com 2013: o passado se faz aqui e agora.

FOTO: MAIKON NERY

Por Rafael Burgos

Muitos leitores provavelmente conhecem um famoso ditado Iorubá, segundo o qual Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje. Nossa dificuldade em alcançá-lo, numa primeira leitura, talvez explique nosso fracasso coletivo em entender o fenômeno Junho de 2013. Ambos decorrem de nossa precária imersão na lógica temporal do Ocidente capitalista, o tempo de Chronos.

Dentro dessa perspectiva, eventos políticos de uma década atrás são apreendidos com o distanciamento de quem, sucumbindo à aceleração capitalista, transforma o passado em elemento solto, sem valor e sem referência de continuidade. Dessa pressa em elaborar o tempo que passou, inevitavelmente, nascem análises preguiçosas, que encerram um evento multifacetado numa caixinha com começo, meio e fim.

Certa vez perguntaram a Mao Tsé-Tung sua opinião sobre a Revolução Francesa e o líder chinês respondeu que ainda era cedo para ter alguma conclusão. Antes crítica do capitalismo que devora nossa experiência subjetiva do tempo e da história, em sua interpretação majoritária de Junho de 2013, a esquerda brasileira cede à aceleração que, por definição, encerra qualquer possibilidade de elaborar traumas, sejam eles individuais ou coletivos.

Passados dez anos daquele acontecimento, prevalece, afinal, a tese do Ovo da Serpente, segundo a qual Junho teria gestado um caldo de transformação que, necessariamente, desembocaria no fascismo brasileiro. Nesse olhar desatento e arbitrário de dez anos depois, encerra-se uma narrativa hollywoodiana em que as ruas parem a antipolítica e o combo de vilões impeachment-Lava Jato-Bolsonaro trata de amarrar um destino previamente concebido.

E assim cedemos à tradição conservadora da política da inevitabilidade, segundo a qual acomodar-se aos pequenos ganhos seria preferível ao ímpeto revolucionário que pode colocar tudo a perder. Por ironia do destino, não é a extrema direita brasileira, mas a esquerda que, em sua reação a Junho, leva adiante o paradigma liberal do fim da história – como quem quer dar um ponto final ao trauma não elaborado.

Se para Francis Fukuyama o liberalismo pós-Guerra Fria representava o fim da história do Ocidente, para a esquerda brasileira pós-Junho, a Nova República representou o fim de uma história possível, marcada, em seu episódio final, por importantes avanços sociais, porém modestas transformações em nossa estrutura de desigualdade.

Desafiar este fim inevitável, segundo essa interpretação, fez germinar o tal Ovo da Serpente. Assim, contamos, dez anos depois, a história de Junho pela gramática que nos ensinaram filósofos da tradição conservadora. Será esse o (modesto) legado que queremos deixar, como esquerda, às gerações futuras diante do mais impactante evento social das últimas décadas?

Se cedermos ao tempo de Chronos, tão amigo do capitalismo liberal, acabaremos, fatalmente, transformando a história em mercadoria, na infantil ilusão de que, diante de um trauma, haja alguma saída além de confrontá-lo. A esquerda brasileira tem pressa e, à diferença de Mao, dispõe de ótimas teses sobre a Revolução Francesa.

Um dos pensadores da filosofia do acontecimento, o filósofo francês Alain Badiou, na mesma linha dos Iorubá, nos ensina algo precioso sobre nossa relação não linear com o tempo, e o potencial político que reside nessa descoberta. Na lógica circular, retroativa, que rege o acontecimento, quebra-se a cronologia de Chronos para fazer emergir uma outra temporalidade, a de um acontecimento cujas causas decorrem do seu próprio desfecho.

Imergir nessa lógica, em nosso caso, implica a coragem de admitir que Junho não somente não acabou como pode ser reconstruído, desde o começo, a partir do que fizermos de agora em diante. Com Badiou, aprendemos que o potencial verdadeiramente revolucionário da ação política não está em superar o impossível, mas, simplesmente, em romper com a medida das coisas de tal forma que o impossível tenha sido possível.

É esse paradigma acontecimental que coloca Junho na mesma distância entre a tragédia e a revolução, entre o começo do fim e o fim dos velhos começos, de onde podemos vislumbrar, retroativamente, uma nova forma de começar, de disputar um passado que ainda não foi – que, a depender do futuro, poderá ter sido.

Contra o conservadorismo dos que se apegam à conciliação de classes da Nova República, a própria extrema-direita pode nos ensinar a acreditar na lógica acontecimental, tendo levado à liderança do país o até então irrelevante, líder impossível, deputado Jair Bolsonaro. Sem ceder às armadilhas de Chronos, talvez haja um caminho: disputar Junho ontem com as armas de hoje, e com a sabedoria chinesa de que eventos recentes não se interpretam – se lutam.

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Rafael Burgos é jornalista e mestrando em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, onde atua como bolsista CNPq. Organizador do livro Escombro: um diário da máquina do ódio (Kotter Editorial)

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