Só a integração regional e o socialismo podem salvar a América Latina

Em entrevista a Jacobin Brasil, o ex-presidente equatoriano Rafael Correa falou sobre a crise política em seu país, a perseguição contra Assange e o fortalecimento da segunda onda progressista na América Latina.

Entrevista com Rafael Correa por André Takahashi

No final de março, Rafael Correa, ex-presidente do Equador e líder do movimento Revolução Cidadã, esteve em São Paulo para uma agenda com movimentos populares e organizações de combate ao lawfare. 

Ele foi convidado para o lançamento do Centro de Estudos Latino-Americanos Pela Democracia (CELAD), iniciativa de estudo e prevenção ao Lawfare composta por juristas, acadêmicos e organizações sociais. Também participou de uma agenda com 200 lideranças de movimentos sociais em evento organizado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) no espaço do Armazém do Campo, iniciativa cultural e econômica do MST.

Correa foi presidente do Equador de 2007 a 2017, sendo ao lado de Hugo Chávez e Evo Morales um dos integrantes do núcleo duro bolivariano da primeira onda progressista, período de 2002 a 2014 quando a maior parte dos países sul-americanos estavam sob governos de esquerda, atuando como um bloco na política internacional. 

Após terminar seu seu mandato, Correa passou a sofrer uma forte perseguição via lawfare, o uso estratégico do sistema judicial combinado com a mídia para realizar perseguição política, por seu sucessor e herdeiro político, Lenin Moreno – eleito presidente equatoriano em 2017, com apoio de Correa.

Aproveitando uma janela na sua agenda, a Jacobin Brasil fez uma entrevista onde o ex-presidente discorreu sobre pontos emblemáticos do seu governo e os problemas enfrentados por ele e seu movimento. Também abordou a traição do seu sucessor Lenin Moreno, a campanha de lawfare desencadeada contra ele, o asilo político na Bélgica, o papel de Yaku Perez, as fragilidades da nova onda progressista em andamento, a atuação de Gabriel Boric, presidente do Chile e a encruzilhada política na qual se encontra Guillermo Lasso, atual presidente do Equador.  

Na época da entrevista, Guillermo Lasso ainda não havia dissolvido a Assembleia numa manobra para abortar seu processo de impeachment. Porém, na entrevista, Correa já previa que a dissolução da Assembleia e a convocação de eleições antecipadas seria a opção de Lasso para evitar o juízo político.

André Takahashi Ontem, houve uma atividade para recebê-lo, organizada pelo MST e pelo PSOL. Nessa atividade falaram a respeito do lawfare que ocorre contra você. Há alguma perspectiva que a sua situação se desenrole de forma similar à de Lula? Como uma reversão de parte ou de todas as acusações? 
Rafael Correa Há uma grande diferença entre o caso equatoriano e o brasileiro. No caso brasileiro, eles não conseguiram mudar toda a institucionalidade. E houve juízes que, por sentido de dever ou temor da possível mudança política, fizeram o correto e anularam a Lava Jato, demonstrando que ela havia sido dirigida para perseguir o Partido dos Trabalhadores (PT). Não tivemos isso no Equador. 
No Equador, em 2018, houve um golpe de Estado através de uma consulta popular absolutamente inconstitucional. Então se apoderaram de todas as instituições, inclusive mudaram toda a Tribunal Constitucional. Declararam seis meses de vacância constitucional. Não havia corte e isso atropelou todo o Estado de Direito. E logo nomearam, de forma viciada, a nova corte para agir contra nós. Então não há mais para onde recorrer! 
Espero que esses juízes, com a vitória que obtivemos nas eleições de fevereiro e liberados da pressão, ou sabendo que pode haver uma mudança na situação política, façam o correto. Mas a nossa esperança é a ajuda internacional, para isto entramos no Comitê de Direitos Humanos da ONU – e esperamos que ainda este ano tenhamos uma resolução a nosso favor. 



AT – Como você analisa o processo de impeachment que Guillermo Lasso [atual presidente do Equador] está sofrendo agora? Como analisa isso? Porque esse mesmo Tribunal Constitucional decidiu que o parlamento pode continuar o processo de impeachment. 
RC – Para mim foi uma surpresa. Como eu dizia, esse Tribunal Constitucional foi empossado para nos perseguir. Então, a maneira mais fácil ou menos custosa de salvar Lasso era parar o processo no Tribunal Constitucional. Então, eu acreditava, sinceramente, que tudo ia parar no Tribunal Constitucional e isso iria gerar violência nas ruas. Mas passou, provavelmente porque as provas são muito contundentes e viram que é impossível de salvar Lasso, e com o juízo político assume o vice-presidente e tudo continua igual. 
Vamos ver o que faz Lasso, porque seria o primeiro presidente na história que sofreria um impeachment e é uma pessoa muito vaidosa e soberba. Ele pode, no entanto, adiantar as eleições, dissolver a Assembleia e, com isso, antecipa em seis meses as eleições presidenciais e legislativas, evitando assim o impeachment [é a hipótese da chamada “morte cruzada”, que foi utilizada por Lasso pouco depois desta entrevista, sob muitas críticas].
Qual o problema dessa alternativa? Para Lasso, pessoalmente, talvez isso seja melhor, mas nós provavelmente vamos ganhar essas eleições antecipadas. Então os Estados Unidos e o resto da direita não querem apoiar isso. Querem vender a idéia que Lasso está sendo desestabilizado. Não! Desestabilizador, inclusive em relação à Constituição, é Lasso à frente de um governo corrupto, inepto e mentiroso. E o impeachment seria, perfeitamente, constitucional…



AT – E como está o seu partido, o Revolução Cidadã? Está forte?
RC – Sempre fomos o movimento político mais forte do país, até nos piores momentos. Mas obviamente a perseguição, a difamação e o discurso único da mídia nos causou muitos danos. Mas lembremos que nos tomaram o partido com o qual ganhamos as eleições, o Alianza País. Era a maior legenda e mais exitosa, cujo número era 35, mas ela foi dada para Lenin Moreno. 
Nós tivemos que participar com partidos emprestados ou não participaríamos! Quase ganhamos as eleições presidenciais de 2021. Perdemos por 4% no segundo turno, depois de largarmos na frente no primeiro turno. Também ganhamos a maior bancada legislativa naquelas eleições. 
Mas o que o Brasil e o mundo não sabem é que foi com um partido emprestado. Nos emprestaram o partido com o número de legenda 5 que se chama “Compromisso Social”. Com ele na disputa em 2019 pudemos colocar algumas candidaturas para disputar governos regionais e ganhamos duas das províncias mais populosas, Pichincha e Manabi. 
Em 2021, participaríamos de novo com a legenda 5, mas ela foi eliminada. Disseram que as assinaturas do partido eram falsificadas. Tivemos que concorrer com a legenda 1. Finalmente, apelando, conseguimos recuperar a legenda 5 e fomos com a legenda 1 e também a legenda 5, mas não era nosso partido, estavam apenas nos dando espaço. Já em meados de 2021, conseguimos, oficialmente, a legenda 5 e a chamamos de Revolução Cidadã. 
Esse foi um período muito duro, no qual todos falavam que já havia passado o momento de sermos a principal força política – mas no final, nós crescemos. Eu, sem estar no país, de longe, estou com mais credibilidade, mais apoio e nosso movimento político também. Nós confirmamos isso em 2021 quando, sozinhos e com um partido emprestado, quase vencemos toda a coalizão dos partidos de direita. 
Em fevereiro de 2023, vencemos as eleições regionais como nunca havíamos ganhado, nem mesmo quando éramos governo. Temos quatro das cinco maiores províncias, quatro das cinco maiores cidades, temos nove governos regionais, quando nunca havíamos passado de sete nos nossos melhores momentos, e temos mais de 50 prefeitos.



AT Então vocês estão muito mais fortes que na época do governo?
RC – Não sei se mais forte do que quando éramos governo, mas, obviamente, muito mais fortes do que durante o momento difícil que passamos, quando convenceram as pessoas que éramos corruptos, ligados ao narcotráfico e toda essa bobagem. Agora, ninguém mais crê na mídia. A imprensa abusou tanto da mentira que ninguém mais acredita nela.

AT – Agora há pouco você falou de Lenin Moreno. Por que ele traiu o movimento da Revolução Cidadã? Qual sua análise sobre esse episódio?
RC – A traição acompanha a história da humanidade. Moreno foi um lobo disfarçado de cordeiro por dez anos, e quando ele se tornou presidente, começou a falar que todos somos corruptos, menos ele; que todos fizemos o mal, menos ele. Ele nos perseguiu e a imprensa o apoiou apesar de ser uma mentira grosseira. Por mais inepto que ele fosse, por mais burro que fosse, se havia corrupção por todo lado como ele não sabia disso sendo vice-presidente? 
Moreno chegou a nos acusar de termos criado uma polícia política igual a das ditaduras do Cone Sul. Por mais estúpido que seja um vice-presidente, como ele não percebia que havia uma suposta polícia política? Isso foi uma mentira muito grosseira, mas com o apoio da imprensa as pessoas são capazes de acreditar em qualquer coisa. 
Há hipóteses. Agora se sabe que ele é um corrupto. Na verdade ele já está acusado, já foi ouvido, isso já ocorreu há cinco anos, mas encobriram para que ele continuasse nos perseguindo. Agora falam da conta secreta no Panamá onde ele recebeu dinheiro. Uma das hipóteses é que os gringos descobriram isso primeiro e o cooptaram, o ameaçaram. Entretanto, isso não justifica o ódio patológico que ele desenvolveu contra a gente. E seus assessores lhe diziam: “Não ataque Correa. Ele tem apoio popular, isso vai te prejudicar” e mesmo assim seguiu tentando nos destruir. No final, Moreno destruiu a si mesmo e também destruiu o país.  
Eu, sinceramente, acredito que ele é um psicopata, pois ninguém pode ser tão cínico. Pode escutar suas intervenções no início de sua presidência dizendo que eu era o maior equatoriano de todos os tempos; tirou uma foto minha na troca de guarda, que é um ato muito bonito; quando eu parti para a Bélgica ele falava “Obrigado, Rafael!”, e depois, imediatamente, passa a falar com muito ódio que somos todos ladrões. 

AT – Há uma situação no Equador que é similar em todos os países da região: de repente surge uma espécie de opção à esquerda que se contrapõem ao movimento progressista. Estou falando de Yaku Perez nas últimas eleições. Como você analisa esse fenômeno? 
RC – Yaku Perez não é de esquerda! Yaku Perez é uma criação da embaixada dos Estados Unidos. Uma estratégia inteligente e exitosa de dividir a esquerda com uma suposta “esquerda alternativa”. Se não fosse por Yaku, teríamos vencido já no primeiro turno. Yaku Perez atingiu 19% no primeiro turno. Disso daí pelo menos 8% eram nossos. E com 40% dos votos, poderíamos ter vencido já no primeiro turno. 
Yaku Perez foi quem fez Lasso presidente. E foi uma criação da direita! Yaku apoiou Lasso em 2017 e o apoia agora. Você crê que uma esquerda de verdade, não só com princípios, mas ética, bateria em um governo como o nosso que estava criando a Pátria Grande, a Unasul, atuando de mãos dadas com os demais governos de esquerda? Tenha isso claro: muitos desses grupos de esquerda, os do tudo ou nada, os radicais, são os mais funcionais ao sistema. E estão sendo infiltrados para conservar o status quo! Yaku Perez parece que é de esquerda mas não é de esquerda. É uma criação dos gringos e um verdadeiro perigo.

AT – Yaku Perez explorou muito as contradições que seu governo teve com movimentos indígenas e ambientalistas. Como você avalia a relação que seu governo desenvolveu com esses movimentos? 
RC – Minha resposta foi minha última eleição, a de 2013. Ganhei em praticamente todas as províncias equatorianas e no exterior, inclusive em muitas regiões indígenas, mesmo enfrentando as direções dos movimentos indígenas locais. Qual foi o único lugar onde perdemos? A província de Napo, de grande presença indígena, onde ficamos em segundo lugar para a direita liderada pelo ex-presidente Lucio Gutiérrez – a quem a direção local apoiou!
Muitas vezes, nós enfrentamos uma direção indígena absolutamente corrupta, perdida, oportunista, chantagista e infiltrada pelos Estados Unidos. Essas direções, não é raro, estão sob o controle de fundações financiadas pelo National Endowment for Democracy (NED). Mas, no geral, nós as vencemos e tivemos o apoio do povo indígena, a despeito de muitas direções. Não diferenciar isso é um erro grave. Não somos contra nem o indigenismo, nem o ambientalismo, nem a esquerda. Mas somos contra o ambientalismo infantil, o indigenismo infantil e o esquerdismo infantil porque são os melhores aliados do status quo. 

AT – Ontem, na atividade com os movimentos populares você falou que há uma diferença entre a primeira onda de governos progressistas da América Latina com a atual onda. Que a primeira onda era mais coesa e que a onda atual é mais heterogênea. Você pode desenvolver um pouco mais sobre essa diferença?
RC – Acredito, sinceramente, nisso. A primeira onda progressista foi histórica na América Latina. Provavelmente foi o melhor período da história do nosso continente. Entre 2002 a 2014, tivemos 12 anos de ouro. Em 2008 começou a crise nos Estados Unidos e Europa e nós seguimos crescendo, reduzindo a pobreza, produzindo identidade, integrando-nos, tendo presença como bloco na esfera internacional e sendo um exemplo de campeões regionais em redução da pobreza. Por exemplo: tínhamos um programa de bolsas de dar inveja à Europa. Desenvolvemos um grande programa de eficiência energética. Então, na verdade, demos mostra de um grande avanço na América Latina em torno do Brasil com Lula, que é um estadista respeitado e tido como um exemplo na Europa. Eu digo isso em torno de indicadores, não é questão de opinião, são os dados brutos da época. 
Aí vem a reação conservadora em 2014, mudam as condições do mercado internacional e se complicam um pouco as condições econômicas. Não era que estávamos mal, mas estávamos “menos bem”. Então a direita se aproveita e forma uma direita muito mais coesa, coordenada, com discurso e recursos infinitos, o que chamamos de “restauração conservadora”, e ela aproveitava o espaço democrático para distorcer os fatos.
Veja a Argentina, por exemplo, onde a imprensa teve tanta influência sobre a democracia em 2015: Daniel Scioli não perdeu para Maurício Macri, mas sim para o jornal o Clarín. O mesmo se repetiu em 2016 no Brasil, durante a destituição de Dilma, ou em 2017 no Equador, com a traição de Lenin Moreno e sua fraude contra a democracia. 
Mas havia exemplos na primeira onda e as pessoas podem comparar e por isso não se pode enganar tanta gente por tanto tempo. E aí vem essa nova onda progressista. Mas isso foi conquista desses grandes avanços da primeira onda, porque havia muita coerência, muita coesão e muita fraternidade. Tínhamos diferenças, mas também uma confiança muito grande e uma saudável cumplicidade. Atuamos em conjunto como agora estão fazendo Brasil e Argentina em boa hora com a proposta da moeda do sul, tivemos projetos binacionais com a Venezuela. 
Também havia outros países com governos de direita, mas havia um apoio mútuo muito grande, e uma coisa fundamental era a integração, a resistência ao livre comércio, uma ação conjunta e coordenada. Isso eu não vejo agora. Eu vejo muita heterogeneidade, como Gabriel Boric no Chile, totalmente diferente do próprio Lula que vem da classe trabalhadora. 
É claro, eu também sou diferente de Lula, venho da academia, mas havia muitas coincidências no que é fundamental. Eu não vejo essa consciência hoje de Boric com a Venezuela, de entender que ela está sancionada, está em uma economia de guerra. Boric parece que é um inimigo da Venezuela e tem uma obsessão terrível com ela e Cuba. São nações que estão embargadas. Embargue o Chile para ver o que acontece no país. E a Europa!? Com o conflito entre Rússia e Ucrânia! Pela segurança nacional a Europa proibiu os meios pró-Rússia. Que maior atentado à liberdade de imprensa cometeu senão quem a prega? Mas foi em nome da segurança nacional, eu entendo, mas então não imponha ao outro o que você não pratica! E que tenha lógica em praticar ou não. Então vejo muita heterogeneidade e mais debilidade.  
São governos sem o grande apoio popular que tivemos na primeira onda progressista. Também vejo pouca profundidade, havia muito mais radicalismo na primeira onda. E para conjunturas tão radicais como na América Latina, é quando mais se necessita de radicalismo. Não vejo soluções radicais entre outras coisas por causa da debilidade, pelas restrições que a esquerda enfrenta. 
Mas vamos falar das coisas boas também: se tem mais experiência e é muito mais ampla a atual onda progressista. A Colômbia, que é o país mais conservador do continente, está nas mãos da esquerda e eu creio que Gustavo Petro é o presidente mais competente da América Latina. Nunca tivemos as duas economias mais fortes do continente simultaneamente sob governos de esquerda, mas agora temos as cinco mais fortes: Brasil, México, Colômbia, Argentina e Chile. Então essas são as coisas boas. E temos mais experiência. O problema é que a direita, por outro lado, também tem mais experiência, e vai estar disposta a tudo para evitar qualquer mudança.  



AT – Você crê que na primeira onda progressista havia uma inclinação mais anti-imperialista que a atual ou não devemos analisar sob essa perspectiva?
RC – Eu creio que sim, mas para mim isso nem sequer é o fundamental. Eu não compartilho disso, por exemplo: anti-imperialismo, anticapitalismo. Eu não venho aqui para ser anti, senão para ser a favor da vida, a favor da justiça, a favor da dignidade, a favor da propriedade para todas e todos. Se isso significa rechaçar algo temos que rechaçá-lo, mas você não pode se fundamentar no anti, no rechaço a algo. Se preciso ser anti-algo para que exista, posso cair no dilema de ser nada quando não tiver o que rechaçar? 
É possível o radicalismo sem ser anti-algo: respeitando a soberania dos nossos países, buscando a integração com muito mais afinco na integração latino-americana. Bom, 200 anos de capitalismo liberal e seguimos aqui na América Latina no subdesenvolvimento, devemos buscar alternativas, imposto mais progressivo, aumento de capital com aumento do salário… denunciar com muito mais força o bloqueio da Venezuela ao invés de condenar a Venezuela, apoiar Cuba ao invés de condenar Cuba, eu não vejo isso de forma tão recorrente.


AT – Como você vê o cenário latino-americano diante do lawfare e da restauração conservadora que sofreu um duro golpe com a eleição de diversos governos progressistas? Podemos dizer que o lawfare está esgotado? Não vamos ter novas ofensivas significativas da direita continental? 
RC – Essa é minha grande preocupação. Hoje, todos exigem meu retorno ao Equador, para regressar a Revolução Cidadã. Tudo bem, regressaremos com aplausos e apoio. Depois de três ou quatro anos a imprensa corrupta inventa a mesma mentira e volta tudo de novo. A América Latina, com todo respeito, tem um problema de memória muito fraca e não aprendemos com a história. E sempre voltamos a cair na mesma armadilha.
O grande Bolívar já dizia: “não nos dominarão pela força, mas pela ignorância.” Então, não aprendemos com o passado. O lawfare teve um êxito relativo, mudou temporariamente a história. Se Lula não tivesse sido preso, Bolsonaro não teria sido eleito presidente. E Bolsonaro segue sendo uma liderança política graças ao lawfare. Por causa do lawfare, Lasso foi eleito presidente. Claro, vamos voltar, Lula voltou, mas o tempo perdido ninguém recupera, a dor humana ninguém recupera, dos presos ilegalmente e da sua família. Tempo perdido são coisas maiores. 
Duzentos anos já é uma quantidade suficiente de tempo para ter perdido o desenvolvimento. O custo da destruição dos nossos países, olha como aumentou a pobreza no Brasil, a quantidade de programas sociais que foram destruídos, a questão da segurança. O custo para reparar tudo isso será de muitos anos! E esse tempo de transição nos deixa vulneráveis porque se depois de dois ou três anos não resolvermos tudo a imprensa vai dizer que fracassamos, e vai fomentar um saudosismo do passado. 
Então creio que o lawfare está muito latente. O lawfare se fundamenta no midiático, então se ele está latente, e não se controla a imprensa corrupta, o lawfare ainda é uma arma mortal contra a democracia. Não sou contra a imprensa, sou contra a má imprensa. E a imprensa latino-americana não é má, é muito má, é a pior do mundo. É evidente, mas por terror ou por indiferença as pessoas querem tapar o sol com a peneira sobre o que é evidente. Tem que ver todas as mentiras. Veja que todos os dias se posicionam para perseguir os presidentes progressistas. 
O lawfare seria inaudito, inexecutável, impossível num primeiro momento. Mas com uma imprensa como instrumento de lawfare, de perseguição, de assassinato de reputação, uma imprensa cuja principal bandeira é defender o status quo por parte da elite, e enquanto tenhamos sistemas judiciais tão frágeis, fiscais e juízes tão corrompidos, com certeza o lawfare segue latente e é uma ameaça. 

AT Na situação mundial atual estamos vivendo o que alguns analistas chamam de Segunda Guerra Fria. Temos o conflito no Leste Europeu e a crescente influência da China em uma transição de hegemonia mundial: a transição de um mundo unipolar para um mundo multipolar. Como acha que seria a melhor forma da América Latina se posicionar nesse cenário?
RC Fazer o que mais nos convém: se a China é a principal financista do mundo, e financia inclusive os Estados Unidos, e nós necessitamos de financiamento para o desenvolvimento, então obrigado pelo financiamento chinês. Se os gringos nos dão um financiamento melhor, então obrigado pelo financiamento gringo. Devemos aprender a atuar em função dos nossos próprios interesses. Se tem algo que devemos aprender dos gringos é que eles atuam em função dos seus próprios interesses. 
Lamentavelmente, na cúpula do poder dos Estados Unidos, não manda o povo estadunidense mas o grande capital. Nós temos que atuar em função dos nossos próprios interesses e que dentro dos nossos países mandem as grandes maiorias, mandem nossos povos. Primeiro aprender isso, e não nos meter em lutas que não são nossas. Infelizmente estamos no meio dessa luta geopolítica, na qual governos submissos podem nos destroçar e governos dignos nos beneficiar. 
Com a queda da União Soviética, passado o mundo bipolar para o mundo unipolar, a América Latina não ganhou nada e só perdeu. Porque antes os Estados Unidos tinham que ter certa consideração com seu quintal para não cair na órbita soviética. Uma vez que a União Soviética deixou de existir, eles nos trataram de qualquer jeito. Implantaram o “consenso de Washington”, o neoliberalismo. Então, acredito que perdemos com a passagem do mundo bipolar ao mundo unipolar. Passando do mundo unipolar ao mundo bipolar, ou tripolar. Quanto mais se amplie as polaridades, mais a América Latina ganharia se atuasse de forma inteligente.    

AT – Seu governo deu asilo político para Julian Assange. Um marco da história recente mundial, pois desencadeou uma série de outras denúncias contra o monitoramento global, como a denuncia do Snowden. Como você avalia o processo do asilo concedido à Assange até a situação que ele se encontra atualmente?
RC É escandaloso, é a maior hipocrisia mundial! Imagina como tratariam a gente se nós prendêssemos um jornalista porque ele disse a verdade? Imagina! É isso que estão fazendo com Julian Assange, e às vezes justificam: “Ele disse a verdade, mas nem toda verdade se pode dizer porque pode colocar a vida de agentes em perigo.”
Por acaso ele apresentou esse tipo de informação? Ele revelou ao mundo crimes de guerra! Imagina se nós prendêssemos um jornalista por denunciar crimes de guerra? É exatamente isso que estão fazendo os Estados Unidos e a Europa, mas como são eles, então “tudo bem”. É uma dupla moral escandalosa e Julian Assange é um herói! Estão matando ele em vida.
Por um instante imagine se ele tivesse denunciado um crime de guerra chinês ou russo. Ele já teria um monumento em Washington. Tudo isso é uma dupla moral que me dá náuseas. É um crime o que estão fazendo com Julian Assange diante do mundo e do silêncio dos jornalistas. Dêmos asilo porque vimos que não havia nada de errado com o processo dele e de acordo com o direito internacional temos que cumprir um processo. 
Nesse processo, ainda houve o Reino Unido, que nunca deu um salvo conduto para retiramos ele da embaixada e, depois, vem o Equador – e eu peço desculpas porque foi minha maior vergonha, porque depois de mim veio um traidor – e, pela primeira vez, um governo dá permissão a uma polícia estrangeira para que entre em nossa embaixada e, assim, entrega um refugiado. Rompendo o direito internacional, a instituição centenária do asilo e rasgando a Constituição da República que proíbe expressamente que o Equador entregue um refugiado. 
Então sim, isso marcou de vergonha a história do meu país e da América Latina. No futuro, ninguém mais vai pedir asilo em um país latino-americano. Mesmo assim, tenho uma responsabilidade nisso e peço mil desculpas por ter escolhido um traidor enlouquecido como meu sucessor. Mas em escala global, o caso de Julian Assange, insisto, é o melhor exemplo da dupla moral que pratica um certo país.  

AT Por último, quais conselhos você pode dar para a esquerda brasileira sobre a integração latino-americana?
RC Eu acredito que a integração é nosso destino, é indispensável para o Bem Viver e o desenvolvimento de países pequenos. Não é o suficiente, senão o México seria muito mais desenvolvido por estar integrado com a maior economia do mundo. Mas claramente a integração é altamente desejável. Quanto menor o país latino-americano a integração é mais desejável. 
Então, precisamos de integração integral, em todos os sentidos, como a União Européia, com moeda comum, com sistema financeiro próprio, sistema de Direitos Humanos latino-americano e interamericano – o qual hoje, atualmente, é manejado pela Organização dos Estados Americanos (OEA), que é o ministério das colônias dos Estados Unidos. 
Sempre faço referência à União Europeia, que hoje tem 27 países, com línguas diferentes, religiões diferentes, culturas diferentes, sistemas políticos diferentes. Os europeus se mataram às dezenas de milhões no século XX, em duas guerras mundiais brutais, e mesmo assim tiveram a vontade política de se unir e, assim, se uniram. Mas eles tiveram que explicar aos seus filhos porque se uniram. 
Nós, que somos 18 repúblicas hispano-americanas, 20 com o Brasil e o Haiti, compartilhamos a mesma história, uma cultura parecida, por que não podemos nos unir? Quando nos unirmos nós vamos ter que explicar aos nossos filhos, na verdade, porque demoramos tanto. Eu creio que nosso destino há muito tempo é a integração. 
E sim, socialismo: porque somos socialistas! Não por nossas filiações ideológicas, porque seria desonesto, mas porque seria insano continua fazendo a mesma coisa após 200 anos de capitalismo liberal. Temos que buscar novas propostas para alimentar os nossos povos e na região mais desigual do planeta essa proposta começa com uma palavra mágica: justiça! E o socialismo pode ser resumido em justiça em todas as dimensões como: socioeconômica, etária, étnica, ambiental e etc..
Muitas vezes, a direita se posiciona, e diz que a justiça atenta contra a liberdade quando o Estado se mete a recolher impostos e distribuir riqueza – e que ninguém pode se meter com essa “liberdade”. Para nós a liberdade no socialismo é a não dominação, que ninguém te domine, que ninguém te explore, que as pessoas desenvolvam suas capacidades plenas com acesso à educação, à saúde, ao trabalho digno, direitos trabalhistas e para tudo isso é necessário o Estado e a ação coletiva. 
E esse é o verdadeiro sentido da liberdade, ela não vai contra a justiça, ela é a justiça! Em outras palavras, a América Latina é dos continentes mais desiguais do planeta. Somente através da justiça ganharemos a verdadeira liberdade. Devemos ter isso claro, pois às vezes deixamos a direita roubar esse conceito de liberdade.
Por último, uma mensagem muito forte e muito importante: não há fogo mais mortal que fogo amigo, não há pior fogo que o fogo amigo. A esquerda por vaidades e por ambições é especialista em assumir uma postura crítica total. Mas principalmente os governos de esquerda: “se não é 100% de esquerda, estamos contra você.” Como dizia Inácio de Loyola: “em uma fortaleza sitiada, qualquer dissidência é traição”. Por exemplo, no caso de corrupção de lawfare essa esquerda diz: “ahá! corrupção!” e muitas vezes nem existe prova de corrupção. Quem no mundo não apoia erradicar a corrupção? Por acaso antes não existia corrupção nos nossos países? Mas certa esquerda se agarra às acusações, muitas vezes, para falar que só eles são honestos. Se posicionam acima do bem e do mal e dão razão a quem nunca teve razão. Precisamos de um pouco mais de sensatez, um pouco mais de visão. Sem dar de comer ao inimigo! Essa seria a minha mensagem para uma certa esquerda.

Entrevista publicada no site Jacobin Brasil em 14 de junho de 2023.

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Rafael Correa foi presidente do Equador de 2007 a 2017.
André Takahashi é sociólogo, militante socialista e fundador da Caixa de Ferramentas EAD.

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