Eric Hobsbawm: uma vida na história
Urariano Mota escreve em homenagem a Eric Hobsbawm, que teria completado 106 anos no último dia 9 de junho, destacando seu lugar como maior historiador do século XX, reconhecido por marxistas e não marxistas de todo o mundo.
FOTO: JUAN ESTEVES/DIVULGAÇÃO
Por Urariano Mota
Em 9 de junho, é lembrado em todo o mundo o gênio de Eric Hobsbawm, o maior historiador do século XX, reconhecido por marxistas e não marxistas. Talvez a sua obra se mantenha ainda acima dos demais historiadores, até mesmo nos mais recentes dias deste século.
É uma pena, é lastimável, que em alguns estudos acadêmicos ele seja posto de lado, porque possuiu até o fim da vida uma filiação comunista. A direita e seus liberais não o suportam. E por quê? Antes de taxá-lo e tachá-lo de indivíduo comunista, como se isso fosse um grau menor de ética em um homem, deveriam pelo menos ver as contribuições e conceitos inovadores que a sua obra inaugurou. Como a “invenção da tradição”, sobre a qual Hobsbawm trouxe esta luz: “Muitas vezes, ‘tradições’ que parecem ou são consideradas antigas são bastante recentes, quando não são inventadas. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado… A propósito, deve-se destacar um interesse específico que as ‘tradições inventadas’ podem ter, de um modo ou de outro, para os estudiosos da história moderna e contemporânea. Elas são altamente aplicáveis no caso de uma invenção histórica comparativamente recente, a ‘nação’, e seus fenômenos associados: o nacionalismo, o Estado nacional, os símbolos nacionais, as interpretações históricas, e daí por diante”.
Observe-se a propósito o que o grande historiador Evaldo Cabral de Mello pensa sobre a tradição da história brasileira sobre a Batalha dos Guararapes, até hoje ensinada nas escolas e monumentos cívicos como o cerne da nacionalidade do Brasil. No livro O negócio do Brasil – Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641/1649, o historiador pernambucano escreve que a expulsão dos holandeses não foi resultado de guerra heroica, da Batalha dos Guararapes, mas de um acordo pelo qual Portugal pagou 4 milhões de cruzados (equivalentes a 63 toneladas de ouro) para ter o Nordeste brasileiro de volta. Um fato que não entra na tradição inventada.
Lembremos ainda, de passagem, o conceito de Hobsbawm para “banditismo social”. Em seu livro Bandidos, moderno e clássico à semelhança de poesia, ele fala: “Convém que comecemos com a ‘imagem’ do ladrão nobre, que define tanto seu papel social quanto sua relação com os camponeses comuns. Seu papel é o do paladino, aquele que corrige os erros, que ministra a justiça e promove a equidade social. Sua relação com os camponeses é de solidariedade e identidade totais. O ladrão nobre inicia sua carreira de marginalidade não pelo crime, mas como vítima de injustiça, ou sendo perseguido pelas autoridades devido a algum ato que estas, mas não o costume popular, consideram criminoso”.
Notem que Hobsbawm possuía o talento raro, raríssimo, de extrair o que é universal de características locais. Ele escreve Bandidos a partir do estudo particular de casos de famosos marginais na Inglaterra, China, México, Estados Unidos, Itália, Espanha… Mas é impossível para um nordestino do Brasil não ver no trecho acima um retrato de Lampião! E, de fato, o bandido social do Nordeste é referido em vários pontos do livro, como aqui: “Quando Virgulino Lampião tinha 17 anos, os poderosos fazendeiros Nogueira expulsaram os Ferreiras (da família de Lampião) da fazenda onde viviam, acusando-os falsamente de roubo. Assim começou a rixa que o levaria à marginalidade. ‘Virgulino’, recomendou alguém, ‘confie no divino juiz’, mas ele respondeu: ‘A Bíblia manda honrar pai e mãe, e se eu não defender nosso nome, eu perderei minha humanidade’… (Diante da sua morte) a reação de um sertanejo talvez seja mais típica. Quando os soldados chegaram com as cabeças dos cangaceiros, de forma a convencer todos que Lampião estava realmente morto, um sertanejo disse: ‘Mataram o Capitão porque a reza forte nada adianta na água’. É que o último refúgio de Lampião havia sido o leito seco de um ribeirão, e de que outra forma, senão pelo fracasso da magia, podia-se explicar a derrota de Lampião?”.
Mas esses livros acima, de conceitos inovadores, são apenas duas de suas muitas contribuições publicadas, que vão do jazz à recriação original da história. A sua fama se fez nos livros que se tornaram best-sellers: A Era das Revoluções, que fala da transformação do mundo entre 1789 e 1848, da Revolução Francesa de 1789 à revolução industrial inglesa; A Era do Capital, que trata da expansão da economia capitalista em todo o planeta, de 1848 a 1875; A Era dos Impérios, de 1875 a 1914 ; A Era dos Extremos: o breve século XX, que interpreta o período de 1914 a 1991, do qual fala no prefácio: “o meu tempo de vida coincide com a maior parte da época de que trata este livro e durante a maior parte de meu tempo de vida — do início da adolescência até hoje — tenho tido consciência dos assuntos públicos”.
Trata-se, portanto de um historiador de vista larga e profunda, que refletiu sobre as dores e alegrias dos séculos sobre os quais escreveu. Ou melhor, dos séculos sobre os quais participou escrevendo. Neste momento, tenho diante de mim a biografia Eric Hobsbawm: Uma vida na história, um tijolaço agradável, suave, de 728 páginas, anotado, mastigado e digerido. Pois é, quando um assunto nos interessa, também mastigamos tijolos como a mais apetitosa iguaria. Mas o melhor virá a seguir. Em um resumo da vida de Eric Hobsbawm, o seu biógrafo Richard Evans fala em uma entrevista: “Eric Hobsbawm nasceu em Alexandria, cresceu em Viena e Berlim e se estabeleceu no Reino Unido (nasceu e continuou sendo um cidadão britânico). Hobsbawm passou muito tempo na França na década de 1930 e novamente na de 1950. Seus relatórios escolares indicam que sua língua nativa era inglês/alemão – sua mãe, uma tradutora, insistia que a família falasse em inglês em casa. Ele tinha um francês fluente e, mais tarde, aprendeu italiano e espanhol. Hobsbawm esteve sob vigilância do MI5 desde a guerra – por quanto tempo, não sei, já que não tive permissão para ver o mais recente dos sete arquivos volumosos que compilaram sobre ele. Era um homem totalmente inofensivo – ao contrário dos ‘cinco espiões de Cambridge’, que causaram muitos danos. Mas, como estes eram todos ingleses de classe média alta com origens impecáveis, o MI5 e o MI6 confiavam neles, ao contrário de Hobsbawm, que, de alguma forma, era estrangeiro e não se encaixava naquele perfil”.
Já no prefácio do livro, o biógrafo Richard Evans nos acorda: “Só no Brasil, as vendas de seus livros chegaram a quase 1 milhão de exemplares”. Inacreditável, no fim da ditadura brasileira, houve um tempo que se destacava pelo amor à cultura, pela leitura de um clássico vivo. Mas recuemos um tempo antes, porque importa agora a movimentação de Hobsbawm contra a corrente liberal e reacionária. Em 1943, ele publica em um artigo sobre a Revolução Francesa, durante a Segunda Guerra Mundial: “O Terror tem sido difamado e caluniado desde a queda de Robespierre. Nós, que estamos engajados numa guerra total, podemos julgar o momento com mais visão. Mas, para conseguir a verdadeira perspectiva, devemos aprender a vê-lo, não só com os olhos de lutadores pela liberdade de 1943, mas com os olhos dos soldados comuns que, descalços e famintos, salvaram o seu país porque era um bom país para salvar. Para eles o Terror não foi um pesadelo, mas a aurora da vida”.
Para mim é difícil um ponto da sua biografia, quando ele anota sobre o Recife de 1962: “Uma pobreza desesperadora em toda parte. Os habitantes parecem não ter feito uma refeição decente há dez gerações: raquíticos, nanicos e doentes” Mas “havia sinais de revolta, as Ligas Camponesas tinham aprendido a se comunicar com seus eleitores. O potencial de organização camponesa é imenso”.
Na biografia, há trechos cômicos, ou quase cômicos, na altura em que o nosso historiador marxista, quando estava com 80 anos de idade, resolveu aceitar uma homenagem oficial da rainha. Chega a ser comovente a forma esperta e dialética que ele dá para o recebimento dessa homenagem: “Eu não poderia ter aceitado um título de nobreza. Eu nunca mais conseguiria olhar na cara dos meus antigos camaradas”. Ainda assim, aceitou a nomeação de um Companion of Honor [Companheiro de Honra]. E quando se ajoelhou num tamborete para receber da rainha a fita e a medalha de Companheiro de Honra se desculpou: ‘Minha mãe gostaria que eu fizesse isso’”. Acho que até Robespierre compreenderia.
Em uma palestra na Creighton Lecture, com o poder de síntese em que era mestre, destruiu numa única frase a afirmação vulgar de que a história é escrita pelos vitoriosos. Ele falou: “Os perdedores produzem os melhores historiadores”. Os melhores escritores também, acrescento. E aqui vai uma agradável descoberta da relação entre Eric Hobsbawm e o Brasil. Foi entre os brasileiros que a Era dos Extremos alcançou o maior sucesso em todo o mundo! Desde o fim dos anos 1980, os laços de Eric Hobsbawm com o Brasil se tornaram bem próximos. O biógrafo conta que, em sua chegada em 8 de junho de 1988, ele foi manchete na primeira página da Folha de São Paulo. Na ocasião, ficou na casa do editor brasileiro, Gasparian, em São Paulo. Então o editor o levou junto com a esposa até uma praia. Mas aconteceu um problema: o carro em que viajavam foi parado por um policial. O diabo foi que o editor brasileiro havia esquecido a carteira de motorista. Na agonia, Gasparian explicou ao guarda quem era Eric Hobsbawm, e como prova mostrou a foto do historiador na primeira página da Folha de São Paulo daquele dia. O policial olhou, olhou, comparou a primeira página com as faces ao vivo no carro, magras, inconfundíveis da feiúra de Hobsbawm, e mandou que seguissem viagem. Sem mais explicações. Ótimo foi o comentário de Hobsbawm para o acontecimento: “Essa foi a primeira vez em que meu ofício de historiador me livrou da polícia”.
Sobre o seu estilo claro, agradável em expor as questões mais indigestas de modo que todos entendessem, Hobsbawm declarou em uma oportunidade: “Eu não desenvolvi meu estilo de prosa lendo historiadores. Sempre considerei o escritor Bernard Shaw como um modelo do que um homem inteligente pode fazer com a prosa: eu tive de ler todos os textos dele para minha tese de doutorado”. Que lição para os nossos doutores de prosa mais dura. Sigam Hobsbawm, leiam, degustem, compreendam a literatura, e depois exponham as brilhantes ideias.
Em janeiro de 1999, Eric Hobsbawm foi entrevistado pelo jornalista Antonio Polito, em italiano, que o historiador falava bem. Entre outras perguntas sobre até que ponto a perspectiva de Eric ainda estava enquadrada no marxismo, ele respondeu de modo mais frontal o que acima de tudo era o marxismo: “O marxismo mostra que, ao ter compreendido que um estágio específico da história não é permanente, a sociedade humana é uma estrutura bem-sucedida por ser capaz de mudar, e por isso o presente não é o seu ponto de chegada”. Isso é um conforto para todos nós nestes dias. O fascismo jamais será o ponto final da nossa jornada no Brasil.
Na festa do seu último aniversário aos 95 anos, em junho de 2012, a escritora Claire Tomalin, ilustre biógrafa de Charles Dickens, Thomas Hardy e Jane Austen, contou que Hobsbawm conversou muito com todos, com verve e sabedoria, e com uma presença de espírito não ofuscada pelas dores físicas que sentia. Na ocasião, o historiador fez piadas para os anos que teria pela frente, pois ainda ia ver o fracasso do capitalismo. Naquela idade, e nas condições difíceis de saúde em que se encontrava, a escritora pensou: “Eric é um mágico”. O historiador faleceu em primeiro de outubro daquele mesmo ano de 2012.
É impossível a um leitor, de qualquer país, não se emocionar com a batalha da vida pelo socialismo do pensador Eric Hobsbawm. Eu, que já ando de couro grosso com as perdas que temos visto de companheiros, camaradas e pessoas fundamentais que partem, ainda assim, fui vencido. Senti no mais íntimo de mim um estremecimento na madrugada desta semana, quando li esta fala da sua filha Julia: “Sabe de uma coisa?, houve um momento maravilhoso quando ele já estava perto do fim. Ele falou para mil pessoas, no estande da Barclays Wealth. Ele estava realmente mal, sabe? E foi meio fantasmagórico – ele simplesmente se transformou num homem de 45 anos, bem na nossa frente, no palco. E desempenhou um verdadeiro tour de force. Foi absolutamente maravilhoso”.
Entre as instruções que deixou para o seu funeral, lembrou a filha Julia: “Em meio a todos clássicos que desejava que tocassem, de Mozart, Schubert, ele escreveu que ‘gostaria de uma gravação da Internacional quando eu partir’, um lembrete de seu comprometimento de toda uma vida. No fim, Ira Katznelson se aproximou do caixão e falou: ‘Agora vou recitar a clássica oração judaica, o Kaddish, a pedido de Eric’. E houve uma espécie de surpresa. As pessoas estranharam uma prece judaica numa cerimônia que Eric tinha insistido que fosse absolutamente secular. Mas foi uma recordação da sua mãe, que na infância lhe dissera para nunca falar ou fazer qualquer coisa que o fizesse sentir vergonha de ser judeu. Ele agora estava cumprindo o desejo da mãe em sua memória, possivelmente quando mais importava”.
Ao ler as linhas acima, perdi o sono. Depois, me levantei e fiquei pensando, a lembrar para Eric Hobsbawm estes versos de Manuel Bandeira:
Quando hoje acordei, ainda fazia escuro
(Embora a manhã já estivesse avançada).
Chovia.
Chovia uma triste chuva de resignação
Como contraste e consolo ao calor tempestuoso da noite.
Então me levantei,
Bebi o café que eu mesmo preparei,
Depois me deitei novamente, acendi um cigarro e fiquei pensando…
— Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei.
***
Urariano Mota é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. É colunista do Vermelho. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, de O filho renegado de Deus (Bertrand Brasil, 2013), uma narração cruel e terna de certa Maria, vítima da opressão cultural e de classes no Brasil, do Dicionário Amoroso do Recife (Casarão do Verbo, 2014), e de A mais longa duração da juventude (Editora LiteraRUA) que narra o amor, política e sexo dos militantes contra a ditadura.
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